sexta-feira, 26 de março de 2010

Três Sonhos - Gonçalo M. Tavares



1º sonho de Calvino

Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega no chão, impecável.


2º Sonho de Calvino

De súbito, uma borboleta. Calvino fecha as janelas: não quer que ela saia.
A borboleta pousa na sua sombra como se esta fosse uma superfície – um tapete negro finíssimo – e não uma ilusão.
Mas, de imediato, a borboleta sobe, pousa nas pernas de uma mulher, cuja saia é mínima; aproxima-se depois da mesa e pousa nas páginas abertas do livro de álgebra. Calvino vê: ela está com as pequenas patas numa equação de 2° grau. Calvino olha para ela, para a
equação, e depois para a borboleta, mas esta voa de novo, agora em direção à cozinha. Calvino segue-a e, depois, o calafrio. Em cima da mesa um bife cru, a borboleta rodeia a carne, mas a mão de Calvino afasta-a a tempo – certas combinações dão azar. Ela sai dali, foge,
pousa depois num quadro e logo a seguir voa de novo e aproxima-se da orelha esquerda de Calvino.
Calvino sente as cores aproximarem-se do seu ouvido e sorri, continua a sorrir, enquanto a borboleta entra, pela orelha, passo a passo, asa a asa, para dentro da cabeça. Está agora lá dentro e esvoaça, as pequenas asas abrem e fecham delicadamente e Calvino sente-se bem, muito bem: como se a partir dali já não precisasse de pensar em mais nada, como se o mundo estivesse, finalmente, pensado e resolvido, sem a necessidade de qualquer renúncia humana. Calvino sente-se feliz.
Porém, ainda no sonho, Calvino acorda. Uma forte dor de cabeça, e parece não querer passar.

3º sonho de Calvino


Com o seu sócio está tão envolvido na discussão das percentagens de algo, que não dá pelo que acontece: são engolidos por uma baleia. Dentro do estômago da baleia Calvino continua a discutir percentagens. Percebe, agora qual o negócio, trata-se da venda de petróleo e de livros. Quem fica com o quê? A discussão está cessa e Calvino empenha-se nela cada vez mais; vira depois as costas ao seu sócio e sai para a rua: observa as pessoas a andarem de um lado para o outro. Os poucos que não estão com pressa, aqueles que param, discutem entre si, percentagens também: 30, não, 37! Todos discutem, ele próprio não consegue deixar de repetir, para si próprio: 43%, pelo menos 43%!

Mas ao mesmo tempo existe aquela sensação de que estão todos dentro do estômago da baleia, de que aquelas pessoas que ele vê na cidade, cheias de pressa, de um lado para o outro, a discutir percentagens, e ele próprio, há muito foram comidos.

in Desacordo Ortográfico

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