Declaração de amor a uma romana do século segundo
Um dia passaste pelos meus versos
Como eu agora passo por diante destas esculturas
que não merecem mais que um apressado olhar
Mas na tua presença eu tenho de parar
dama desconhecida com certeza viva mais aqui
que no segundo século em Roma onde viveste
Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar
decerto impressionante para que uns dezoito séculos mais tarde
te pudesse encontrar quem mais que tu morreu
mas te ama ó mulher perdidamente
Não mais te esquecerei hei-de sonhar contigo
sei que te conquistei e libertei
de qualquer compromisso que tivesses
Ninguém sabe quem eras nem eu próprio
não tens sequer um nome uns apelidos
nada se sabe acerca do teu estado civil
Sei mais que tudo isso porque sei
que atravessaste séculos na forma de escultura
só para um dia nós nos encontrarmos
Tenho mulher e filhos sou de longe
a lei é rígida e severa a sociedade
Não te importes mulher deixa-te estar
não penses não te mexas podes estar certa
de que me deste mais do que tudo o demais que me pudesses dar
pois para ser diferente de quem era
bastou-me ver teu rosto e mais que ver olhar
Ruy Belo, Transporte no Tempo
(Hoje faria78 anos, o nosso poeta Ruy Belo)
domingo, 27 de fevereiro de 2011
sábado, 26 de fevereiro de 2011
Imogen Cunningham
Subjectividades
1.Surpresa da juventude perante a velhice e vice-versa ...
2.Uma troca de olhares, providenciada pelo acaso, mostra repentinamente uma mulher velha que revê o passado e uma jovem muito bela a projectar-se num tempo futuro.
3.A identificação de uma com a outra desencadeia espanto, pudor.
4.O tempo e a voracidade da sua passagem está aqui fotografado.
5. Pretensão da velhice em querer roubar a beleza através da fotografia.
6. A Natureza guarda um modelo para todas as idades e todos os tempos se desenvolvem nela e a partir dela.
7. Nunca encontramos o nosso tempo total, o nosso ritmo temporal absoluto - passado, presente e futuro - em nós mesmos, mas dominamo-lo na observação dos outros.
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Fotografia e Subjectividades Patrícia F.
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Na página da Quetzal lê-se o seguinte sobre este livro:
«Uma série de "receitas" em belíssimos textos, traduzidos pelo poeta Pedro Tamen, para ajudar à cura dos "males de que padecem as mulheres, ou a identidade feminina", que vão da infelicidade à traição, à frigidez, ao receio de ficar velha, ao nervosismo, ao medo das sogras, ao mau hálito, etc., etc., através duma sabedoria que vem de trás e que conhece o "feminino" em profundidade. Isto apesar de o autor ser um homem. Mas que teve cinco irmãs, ou seis mães, como ele diz, e a quem dedica esta obra. Ele, Hector Abad Faciolince, apenas "gostava de ser (...) um bom boticário, um farmacêutico, o senhor das receitas que te perfumem (mulher triste) a fantasia." Experimente, para ver se resulta.»
Um excerto como um retalho de felicidade:
« Se algum dia te enjoares de palavras, como acontece a todos, e estiveres farta de as ouvir, de as dizer... Se uma qualquer que escolhas te parecer gasta, sem brilho, inválida...Se sentires náuseas quando ouvires «horrível» ou «divino» a propósito de qualquer assunto - é evidente que a cura não estará numa sopa de letras.
Deves fazer o seguinte: cozinha al dente um prato de esparguete que vais condimentar com tempero mais simples: alho, azeite e pimento. Por sobre a massa mexida com a mistura anterior, rala uma camada de queijo parmesão. Do lado direito do prato fundo cheio de esparguete temperado com o que indiquei, coloca um livro aberto. Em frente, um copo cheio de vinho tinto seco. Não é recomendável qualquer outra companhia. Passa ao acaso as páginas de um e outro livro, mas ambos terão de ser de poesia. Só os bons poetas nos curam da fartura das palavras. Só a comida simples e essencial nos cura dos excessos de gula.»
Outro excerto cheio de humor e surpresa, onde obrar é também receita para combater a tristeza:
«Saudável costume é obrar diariamente e à mesma hora. Esttejas onde estiveres, ao menos durante seis minutos (e não mais de quarenta, que o excesso provoca hemorróidas), sentada ou agachada, mas em paz. Com um bom livro ou um bom pensamento. Não existe fórmula mais sábia para que sejas visitada pelo bom humor que os os antigos situavam, com razão, entre o estômago e os intestinos. Se alguma coisa correr mal, considera aquilo que comeste dezasseis horas antes, e suprime-o. Se, em contrapartida, de nada sofreres, considera o mesmo e toma alimento de costume.»
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Receitas da Literatura Patrícia F.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
CITAÇÕES
Federico Faruffini, A Leitora
«A leitura é uma experiência sensível que se situa no mundo real em que nos expomos a ferimentos, em que a alma sofre lesões.»
Lévi-Strauss
domingo, 20 de fevereiro de 2011
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
Desta edição bilingue da Assírio & Alvim, com tradução de Maria de Loourdes Guimarães, destaco As Tulipas, poema que comove pelo despojamento dos nexos da vida, pela desesperança e pelo desencanto que o sujeito poético, hospitalizado, imprime nas suas palavras. As tulipas, da cor da sua grave ferida interior, espiam-na, sugam-lhe todo o oxigénio (referência arrepiantemente irónica, para quem sabe que a própria Sylvia, se suicidará na cozinha de sua casa com a libertação premeditada do gás do fogão).
As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
meu corpo.
Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.
Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.
Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.
Sylvia Plath, Pela Água, Assírio & Alvim
E essa imagem poderosa das tulipas cor-de-sangue, da sua ferida exposta à luz do sol, a contrastar com as paredes brancas do quarto onde repousa, encontrando no auto-abandono a sua verdadeira libertação - essa imagem gritante da cor sangrenta das tulipas, de seres vivos, como animais perigosos e asfixiantes à solta, perturbadoras por este visualismo pleno de vitalidade, figura anímica que destrói a própria vida ao sujeito poético pelo simples facto de respirar o mesmo ar daquele quarto, esculpe intensamente um drama puramente humano. Inesquecíveis, As tulipas, da imortal poeta Sylvia Plath:
As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
meu corpo.
Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.
Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.
Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.
Sylvia Plath, Pela Água, Assírio & Alvim
domingo, 13 de fevereiro de 2011
POEMAS QUE FICAM (O EXCESSO MAIS PERFEITO - ANA LUÍSA AMARAL)
Rubens, Bain de Diane
Um poema que é uma arte poética, este de Ana Luísa Amaral. Lê-se tensa e fulgorosamente como se fosse um quadro. Um quadro de Rubens. É Fátima Freitas Morna que o apresenta como um dos mais significativos da poesia do século XX e o lê criticamente na antologia "Século de Ouro". É para ler e reler, para ficar para sempre:
O EXCESSO MAIS PERFEITO
Queria um poema de respiração tensa
O EXCESSO MAIS PERFEITO
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente da pureza do granito,
e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo.
E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão) preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos,
de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguraçãodo seu olhar.
Dourado.
Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu,
carregada de nada.
Ana Luísa Amaral, Século de Ouro, Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX, Cotovia
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
NEM DIÁLOGO, OU QUASE
Um tempo pouco apetecido – ou muito apetecido, igual a esta nuvem, a este rio que vai e vem, mas não fica nunca. «Escreve», disse.
Imagino-te, minha mão,
numa sala cheia de sol,
as cortinas transparentes ao lado,
uma mesa ampla.
Dizes-me: «escreve».
Desejar uma onda,
uma avalanche de paixão entre os dedos,
o tempo: este papel pequeno.
Escuto, mas há coisas com gume de espada
e não consigo obedecer como gostava.
Estão impressas na memória,
as palavras,
mas era aqui que um verso do avesso,
sons transparentes,
haver bolhas de sons
Como uma sala a sol,
os grãos de luz
na mesa muito ampla
não formam um padrão que se organize.
«Escreve»,
continua a minha mão.
Mas o céu repete-se tão claro,
o rio é como roda que não pára,
bicicleta com aros de metal fundente.
E o frio sente-se aqui.
«Não sei», respondo-lhe.
«Comprei agora este caderno, a sua capa é verde,
não conheço esta mesa, nem o seu mármore,
não há família entre mesa, caderno, esta nova caneta,
onde se esconde a mesa que conheço?,
o verde carregado?,
não sei», insisto.
«Só te conheço a ti, ó minha mão.
E até hoje me pareces longínqua.
Onde está essa onda?
Onde a avalanche de que eu precisava?»
Toca-te devagar a outra mão.
Conhecem-se a calor.
Mas, eu?
Entre verde e caderno, tudo novo,
o azul quase gume,
as espadas de gume circular,
o tempo em vidro,
é tão fácil perder-te.
«Talvez virando aí à tua esquerda», digo-te,
«descendo-me do ombro.
Talvez aí eu te consiga ver ao longe,
acenar-te sem sons».
«É por aqui», repito.
Mas tu não vês a luz
que passou a vermelho e de repente.
E moves-te entre carros, sons de carros,
de vozes.
E só agora, e afinal, reparo
que a minha mão nunca saiu daqui,
ficou entre cadeiras, sossegada.
Não está dispersa,
não era sua a voz,
por isso essa avalanche lhe pareceu serena.
Chamei-vos «minha mão»,
mas sois os monstros largos que me assaltam.
Já não é sol o sol,
é deste tempo o tempo.
E todavia, pesadelos meus,
podemos tomar chá, se desejardes,
vós que não me sois mão,
mas lhes sabeis da forma, a imitais,
vos transformais em dedos,
unhas, sangue.
Vinde,
ressuscitados em carne e gente,
e sentai-vos aqui.
Olhai: as minhas duas mãos,
as duas:
preparam-vos o espaço.
Não sei como chamar-vos, por que nome.
Parcas, moiras, melopeias de brilho.
Não sei como chamar-vos.
Mas finalmente escrevo.
Ana Luísa Amaral, Raízes
Um tempo pouco apetecido – ou muito apetecido, igual a esta nuvem, a este rio que vai e vem, mas não fica nunca. «Escreve», disse.
Imagino-te, minha mão,
numa sala cheia de sol,
as cortinas transparentes ao lado,
uma mesa ampla.
Dizes-me: «escreve».
Desejar uma onda,
uma avalanche de paixão entre os dedos,
o tempo: este papel pequeno.
Escuto, mas há coisas com gume de espada
e não consigo obedecer como gostava.
Estão impressas na memória,
as palavras,
mas era aqui que um verso do avesso,
sons transparentes,
haver bolhas de sons
Como uma sala a sol,
os grãos de luz
na mesa muito ampla
não formam um padrão que se organize.
«Escreve»,
continua a minha mão.
Mas o céu repete-se tão claro,
o rio é como roda que não pára,
bicicleta com aros de metal fundente.
E o frio sente-se aqui.
«Não sei», respondo-lhe.
«Comprei agora este caderno, a sua capa é verde,
não conheço esta mesa, nem o seu mármore,
não há família entre mesa, caderno, esta nova caneta,
onde se esconde a mesa que conheço?,
o verde carregado?,
não sei», insisto.
«Só te conheço a ti, ó minha mão.
E até hoje me pareces longínqua.
Onde está essa onda?
Onde a avalanche de que eu precisava?»
Toca-te devagar a outra mão.
Conhecem-se a calor.
Mas, eu?
Entre verde e caderno, tudo novo,
o azul quase gume,
as espadas de gume circular,
o tempo em vidro,
é tão fácil perder-te.
«Talvez virando aí à tua esquerda», digo-te,
«descendo-me do ombro.
Talvez aí eu te consiga ver ao longe,
acenar-te sem sons».
«É por aqui», repito.
Mas tu não vês a luz
que passou a vermelho e de repente.
E moves-te entre carros, sons de carros,
de vozes.
E só agora, e afinal, reparo
que a minha mão nunca saiu daqui,
ficou entre cadeiras, sossegada.
Não está dispersa,
não era sua a voz,
por isso essa avalanche lhe pareceu serena.
Chamei-vos «minha mão»,
mas sois os monstros largos que me assaltam.
Já não é sol o sol,
é deste tempo o tempo.
E todavia, pesadelos meus,
podemos tomar chá, se desejardes,
vós que não me sois mão,
mas lhes sabeis da forma, a imitais,
vos transformais em dedos,
unhas, sangue.
Vinde,
ressuscitados em carne e gente,
e sentai-vos aqui.
Olhai: as minhas duas mãos,
as duas:
preparam-vos o espaço.
Não sei como chamar-vos, por que nome.
Parcas, moiras, melopeias de brilho.
Não sei como chamar-vos.
Mas finalmente escrevo.
Ana Luísa Amaral, Raízes
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
XXV
Eu gosto disto aqui, da reserva com que escrevo
e lanço fogo sobre o indiviso fogo da escrita.
Eu gosto de cidades que se desenham, sobre a mesa
do sangue dispostas e repetidas no pretérito,
como se de massas escuras se tratasse,
tomadas de assalto pela linguagem, mas não são
linguagem tais cidades amadas, nem sequer
erva tumultuada pelo vário vento da terra.
Eu ainda sei o que é o nó desatando-se,
o mesmo que Frost disse estar na garganta
e que nos persegue como motivo e enigma,
como disparos de células nervosas transparecendo
[o obscuro desejo.
Eu gosto disto aqui, deste lugar, desta clarividente
margem dos dedos pensando sobre o rosto fechado.
Luis Quintais, Riscava a palavra dor no quadro negro, 2010
Eu gosto disto aqui, da reserva com que escrevo
e lanço fogo sobre o indiviso fogo da escrita.
Eu gosto de cidades que se desenham, sobre a mesa
do sangue dispostas e repetidas no pretérito,
como se de massas escuras se tratasse,
tomadas de assalto pela linguagem, mas não são
linguagem tais cidades amadas, nem sequer
erva tumultuada pelo vário vento da terra.
Eu ainda sei o que é o nó desatando-se,
o mesmo que Frost disse estar na garganta
e que nos persegue como motivo e enigma,
como disparos de células nervosas transparecendo
[o obscuro desejo.
Eu gosto disto aqui, deste lugar, desta clarividente
margem dos dedos pensando sobre o rosto fechado.
Luis Quintais, Riscava a palavra dor no quadro negro, 2010
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
JANELAS DO MUNDO
Luis Brea Martinez, Taller de Mascaras
Máscaras gessos lascas formas esgares enfeites suspeitos dissimulados
de ti
de ti
seres desdobrados
seres bem cavos
seres bem cavos
onde dentro de ti és outras
e o teu mais fundo interior
as expulsa junto à superfície
previsível desgastada do teu rosto.
Assim ninguém sabe ninguém te adia
essa outra vida essas outras vidas
desejadas recalcadas que dormem enroladas
como um caracol no teu cérebro - sonho
- deixando um rasto um corrimento
de desejos de outras tu - noutros lugares
desejadas recalcadas que dormem enroladas
como um caracol no teu cérebro - sonho
- deixando um rasto um corrimento
de desejos de outras tu - noutros lugares
Dissimulados suspeitos enfeites esgares formas lascas gessos
máscaras de ti.
surto de escrita
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
A BIBLIOTECA INFERNAL - UM CONTO
Um pequeno grande livro que aconselho a todos aqueles que vêem na biblioteca um lugar de culto e de prazer. De um autor natural da Sérvia, escritor de uma vasta obra de ficção que tem vindo a ser traduzida em muitas línguas, considerado um dos mais interessantes autores da narrativa contemporânea. Com este livro de contos, editado pela Cavalo de Ferro em Setembro de 2010, ganhou o Worl Fantasy Award, em 2003. A tradução para o portugês é deArijana Medvedec.
Zoran Zivkovic, A Biblioteca, Cavalo de Ferro, p.65
Transcrevo um excerto do 4º conto deste precioso livrinho:
"(...) Lá também existem bibliotecas, claro, mas para que é que elas servem quando quase ninguém as usa? Como se nem sequer existissem. Olhe veja outra vez o seu exemplo. Alguma vez pelo menos entrou na biblioteca de uma das muitas prisões em que esteve?
- Nem sabia que existiam, retorqui com sinceridade.
- Eu não lhe disse? Mas não se apoquente, em breve lhe daremos a oportunidade de recuperar o tempo perdido. E muito mais do que isso, aliás. Diante de si está, literalmente, toda uma eternidade de leitura.
Estive a fitar o homem durante um tempo, sem dizer nada.
- É este, então, o meu castigo? Ler?
- A sua terapia.
- Terapia, sim. Não haverá mais nada? - tentei cortar o tom de alívio na minha voz, mas não o consegui.
- Não, não haverá, claro. Ficará sentado na sua cela a ler. É tudo. Não terá mais nenhuma obrigação. Queria, entretanto, chamar a sua atenção para o facto de a eternidade ser um tempo muito longo. A leitura pode aborrecê-lo num certo momento. Isso acontece a muitos dos nossos internos que se tornam, então, extremamente engenhosos. Que truques passam a utilizar para deixar a impressão de que estão a ler, embora não o estejam! Mas nós temos meios para desvendarmos todas essas aldrabices astutas. Nesses casos temos de, infelizmente, aplicar medidas de coacção para os levarmos a voltar a ler. No caso dos mais persistentes e mais teimosos, elas são bastante dolorosas, receio.
- E direitos humanos? Humanidade?
- Nisso não tocamos sequer. Trata-se exclusivamente do bem deles. Não podemos deixar que por causa de preguiça espiritual façam mal a si próprios, não é?
- Talvez - respondi, não completamente convencido.
- É o essencial que deve saber. Em breve aprenderá a conviver com as nossas condições. No início ser-lhe-á provavelmente mais difícil, até se habituar, mas por fim perceberá que a leitura oferece prazeres inigualáveis. Todos o percebem durante a eternidade, alguns mais cedo, outros mais tarde. Espero que entretanto se comporte de maneira madura e sensata, e que não nos obrigue a usar medidas de coacção. Será mais agradável e mais fácil para todos."
domingo, 6 de fevereiro de 2011
CORRENTES D'ESCRITA 2011 - 23 a 26 de Fevereiro na Póvoa de Varzim
Dia 23 (quarta-feira)
17h00 – 1.ª MESA: «Falta futuro a quem tem no presente as ambições/passadas»
- Aida Gomes
- Almeida Faria
- Eduardo Lourenço
- Fernando Pinto do Amaral
- Maria Teresa Horta
- Ricardo Menéndez Salmón
Moderador: José Carlos de Vasconcelos
Dia 24
10h30 2.ª MESA: «Eu começo depois da escrita»
- Ignacio del Valle
- João Paulo Cuenca
- Júlio Conrado
- Karla Suarez
- Maria João Martins
- Miguel Miranda
Moderador: Carlos Vaz Marques
15h00 3.ª MESA: «A minha arte é uma espécie de pacto»
- David Toscana
- Juva Batella
- Luís Represas
- Manuel Jorge Marmelo
- Mário Lúcio Sousa
- Ricardo Romero
Moderador: Rui Zink
17h30 4.ª MESA: «Nua de símbolos e alusões é a poesia»
- Ana Luísa Amaral
- Carmen Yáñez
- Conceição Lima
- Gastão Cruz
- Ivo Machado
- Uberto Stabile
Moderador: Francisco José Viegas
Dia 25
10h30 5.ª MESA: «As palavras são apenas uma memória»
- César Ibáñez París
- Ignacio Martínez de Pisón
- João Paulo Borges Coelho
- Mário Zambujal
- Nuno Júdice
- Rui Zink
Moderador: João Gobern
15h00 6.ª MESA: «Espalho sobre a página a tinta do passado»
- Alberto Torres Blandina
- António Figueira
- Francisco José Viegas
- Inês Pedrosa
- Maria Manuel Viana
- Paulo Ferreira
Moderador: José Mário Silva
17h30 7.ª MESA: «A obra que faço é minha»
- Álvaro Magalhães
- David Machado
- Francisco Duarte Mangas
- João Manuel Ribeiro
- José Jorge Letria
- Vergílio Alberto Vieira
Moderador: Ivo Machado
Dia 26
10h30 8.ª MESA: «Não há palavras exactas»
- José Manuel Fajardo
- Kirmen Uribe
- Nuno Crato
- Pedro Vieira
- Raquel Ochoa
- valter hugo mãe
Moderador: Onésimo Teotónio Almeida
16h00 9.ª MESA: «Nada no mundo deve ser subestimado»
- António Victorino d’Almeida
- Luis Sepúlveda
- Manuel Rui
- Mário Delgado Aparaín
- Onésimo Teotónio Almeida
- Yvette K. Centeno
Moderadora: Maria Flor Pedroso
(Programa retirado do blogue bibliotecáriodebabel.com)
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
TRABALHO DE CASA
O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas?Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
uando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs.Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.
Nuno Júdice, A Fonte da Vida
O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas?Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
uando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs.Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.
Nuno Júdice, A Fonte da Vida
JANELAS DO MUNDO
Da minha casa vigio atenta o tamanho do mar
e é sempre imenso o manto branco de que se encobre
como se se fizesse num vestido de noiva ondeante
e despertasse vontade de mergulhar dentro do seu corpo -
de amor de pétalas de flores de arroz - de passado
em que o mar certamente és tu - és tu o tamanho líquido
de tudo o que vejo tacteio ou pressinto intimamente afora
os outros não existem senão como apontamento do nosso
amor molhado abençoado por ti que me inundas de eternidade.
Da minha casa vigio atenta o tamanho do mar - e és tu
és tu que chegas a rebentar alto na única onda iluminada.
in Surto de escrita
SÉCULO DE OURO - ANTOLOGIA CRÍTICA DE POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX
Deixo a sugestão de Maria Alzira Seixo, "Poema de Amor" de Edmundo de Bettencourt, e a de Carlos Reis, "As Palavras", de Eugénio de Andrade pois também são para mim, poemas-bandeiras do século dominado por Fernando Pessoa.
POEMA DE AMOR
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas.. .
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...
Edmundo de Bettencourt
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
Para mais informações sobre esta antologia:
sábado, 5 de fevereiro de 2011
THE PHANTOM BAND - INTO THE CORN / WALLS
Só mais uma:
O CD "The Wants" de 2010 tem temas muito bonitos. P. mostrou-me os melhores. Em troca, literatura.
Rui, esperamos que gostes.
ANTOLOGIA POÉTICA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Uma Antologia Poética (da Relógio D'Água) que vale a pena ter para ler muitas vezes e dizer apaixonadamente (para dentro e para fora de nós). Três poemas dos poemas:
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
INFÂNCIA
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia histórias de Robison Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robison Crusoé.
O LUTADOR
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui 8
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, Relógio D'Água
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
INFÂNCIA
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia histórias de Robison Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robison Crusoé.
O LUTADOR
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui 8
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, Relógio D'Água
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR
Um conto que nunca esqueci. Inadiável, entre os restantes contos de Clarice Lispector, este impressiona, especialmente quem gosta muito de livros, quem não sabe viver sem ler:
«Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os
dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me
a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que,
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que,
finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.»
Clarice Lispector, Felicidade Clandestina
Clarice Lispector, Felicidade Clandestina
A FIDELIDADE DO PINTOR
«Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir - digamos - de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia o que fazer agora da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º - peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.»
Herberto Helder, Retrato em Movimento
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
A exposição de textos, fotografias e outros objectos com que aqui se evoca a vida e a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) surgiu como um prolongamento natural da doação do espólio, pela sua família, à Biblioteca Nacional de Portugal, primeiro passo para a abertura do acesso de um público amplo a uma parte importante, de quase todos desconhecida, dessa vida e obra. A colecção mais volumosa do espólio é constituída por manuscritos de textos publicados e inéditos, de poesia e de prosa, inacabados ou em mais de uma versão, e por reflexões sobre poética ou sobre a experiência de escrever. Vale ainda a pena notar a relativa escassez de poemas inéditos, dos quais muitos não são mais do que esboços, inícios de qualquer coisa que não surgiu, ou até simples apontamentos de ideias. Sophia guardou muitas versões de trabalho, mas, para ela, o destino natural do poema acabado era a publicação. Se a poesia foi a sua maneira de viver, não a tratava como coisa sua. Escrevia para si e para o mundo.
in http://www.wook.pt/ficha/sophia-de-mello-breyner-andresen/a/id/10400190
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