Linda amiga,
no meu peito não cabe o encanto que encontro neste livro de estreia de Nuno Camarneiro(graças à tua generosidade!), um físico que, como tu, deve ter um deslumbramento pelo CERN, onde já trabalhou (tens a certeza de que nunca foi ele que te recebeu nas tuas visitas?) .
Partindo da beleza deste título que, de resto, é um verso genial de Pessoa (a selecção de um verso bom entre tantos bons também tem o que se lhe diga!), não encontrei pedregulhos de decepção em nenhuma das páginas que percorri...Acho que contorno um senhor autor da língua portuguesa.
Entre as vidas fabuladas de Karl Rossman (personagem de "América" de Kafka) e dos escritores Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa há um grande espaço de dominação de uma linguagem literária feita da nossa língua que convém destacar como soberbo e que remete (juntamente com um ideário original e inteligente) as histórias e o seu entrecruzamento para um segundo plano. Vejo mestria em muitos momentos desta narrativa. Sinto a leitura como uma verdadeira bebida literária.Muito poética também em muitas rectas da escrita.
É uma felicidade encontrar Pessoa refeito pelas mãos de alguém que merece reescrevê-lo. Vejo muita coragem nisto. Obrigada linda amiga por quereres ouvir de mim o que te digo com tanto gosto e alegria.
Deixo o excerto que nos situa juntinhos à chegada de Fernando Pessoa à nossa capital. Tive dificuldade em escolher o excerto pois cada um me pareceu melhor do que outro, assim que apostei neste por ser um dos primeiros. Espero que também tu gostes de ler. Sei que sim:
Lisboa
Uma outra vida à espera no cais. Tias engalanadas em lenços de seda e luvas brancas como mãos de porcelana. Vamos lá ser menino com um sorriso que é de cara e não é de mais nada.
A viagem chegou ao fim e Lisboa é o fim do mar.
Junto às tias e a esta terra, tudo volta a ser pequenino. O sufixo parece ser anterior às palavras, o menino está cansadinho, a viagem foi boazinha, está tão branquinho, coitadinho. Portugal é assim diminutivo e manso. O que foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas, os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?
Os passageiros descem as escadas e alteram-se a cada passo, passam a ser filhos, sobrinhos, maridos e mães. No barco cada um foi o que quis e pôde, feito à medida de sonhos e frustrações, personagem entre actos, entre o ter partido e o ainda não ter chegado. À saída a vida não permite já devaneios e um nome dito por quem o diz é um grito de realidade.
Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça de inventar filosofias. Agora é sobrinho das tias e dá beijos e abraços. Há um grande conforto no encontrar o que se espera e uma coisa deve ser sempre aquilo que é. Lisboa é Lisboa, as tias são as tias e faz calor porque o Verão ainda não morreu.
A capital é um país de boca aberta para o rio, uma cidade a cantar modas de outro tempo, sempre de outro tempo. Em Portugal inventou-se o viajar no tempo, mas sempre para o passado, sem nunca se sair de onde um dia se partiu.
As ruas passam pela janela do carro, há gente que caminha, gente que vende e gente que leva objectos de um sítio para outro. Há muitos pobres mal vestidos e há também muito ruído de vozes gritadas e rodas na calçada. As tias fazem perguntas que se vão respondendo com sim, não e mais ou menos. As tias têm medo de um silêncio que não existe, são mulheres educadas e boas que penteiam os cabelos de Fernando quando lhes faltam ideias ou palavras.
Os cavalos puxam o carro e Fernando sente-se puxado pelas tias, levado a trote para uma casa que ainda não é sua e nem chegará a ser. Os cavalos e as tias conduzem-lhe o destino sem lhe perguntar nada, é uma surpresa para o menino embrulhada numa rua de Lisboa. As tias são mulheres sérias que lhe imaginam uma vida direita.
A rua das tias tem árvores a todo o comprimento e há beleza nisso, as árvores são próximas do silêncio. Os cavalos param, o carro pára e durante alguns segundos tudo fica tranquilo como um quadro antigo que se pode e deve admirar.
O cocheiro sobe as escadas com a mala apoiada nas costas, seguem-no as tias e depois Fernando que conta os degraus. Habituou-se a medir as distâncias em passos para que o corpo as possa entende. As milhas e os metros são unidades da cabeça, já os passos são quedas pequenas que o corpo aprendeu a aparar. Da rua ao vestíbulo são vinte e oito degraus e duas pernas cansadas de tanta viagem.
A casa cheira a sopa e a alfazema, os móveis têm formas austeras e por todo o lado se encontram rendas e bordados de mulheres sem marido. Fernando senta-se e olha em volta, aturdido. Bebe da água fresca que lhe trazem e permanece imóvel e tímido à espera de que alguém diga alguma coisa. As tias sorriem porque estão contentes e estão em casa e Fernando sorri também.
Nuno Camarneiro, No meu Peito não Cabem Pássaros, D. Quixote, 2011