Élia Laranja, Vida e Morte
IHoje debrucei-me sobre uma ponta de morte,
no branco desmaio de uma mulher combalida
com os mesmos cabelos longos
os mesmos olhos fechados
a mesma distância do grito
que a do meu sono à vida.
Estava ali uma alma muito fechada, uma mancha escura,
um fulgor subtraído àquele rosto
de cujos cinco sentidos tão úteis não via rasto.
Sim. O corpo que antes se torcia para cima,
(um corpo a agitar vida é sempre girassol)
Que subia e que descia a escadaria da escola
por onde também eu subo e desço os meus dias
o corpo que desprendia frequentemente
a simpatia de um sorriso vindo mesmo de dentro,
cheio da força de dentes sãos ,
Estava agora mudo,
Era um inverno breve naquele
instante em que a ponta da morte se instalou
nos pulsos estendidos pelo cimento fora –
E foi tudo à minha frente como
uma paisagem de mar que não esperava.
Incompreensível como pudera ter caído
naquele chão frio,
uma campa quase a abrir-se. Vi.
Sei que empurrei a morte, apaguei-a várias vezes do chão,
com os dedos, muito rapidamente,
porque a entendi como um perigo
a desenhar-se em letras
(Aqui jaz fulana que já viveu, que já ensinou como eu).
Dei-lhe água com açúcar numa colherzinha metálica
Que lembrava a hora do café, o vício do cigarro,
E alguém que visse, percebia uma floreira
branca quase a instalar-se por detrás dos gestos
que movia esperançada na vida, que
novamente bela e a piscar os olhos, chegaria.
Esperei aflita num silêncio rugoso.
E a morte insistia naquele chão,
agachada como eu, a olhá-la de perto,
bem nos olhos uma estrela em lume
a esfriar-se, perdendo a luz aguda, emudecendo (para sempre?)
Li-a como a um livro urgente. Muito silente.
Fiquei contente descompassadamente
quando aos poucos a vida inteira,
por ela guardada certamente na garganta,
veio em palavras bem soletradas,
penosas e vagarosas, sem sinais de entoação -
estou bem estou bem –
repetidas frases que a ligavam à vida
Fez-se tarde para entender aquilo,
Tocou a entrada e o rebuliço nos pavilhões de pedra,
Ela foi embora, inteira como uma pomba a voar
ferida e eu lembrei-me que mesmo na escola
a morte é impertinente, insiste
assim, à hora em que começa a aula.
4 comentários:
Algumas poesias me deixam em silêncio e não há nada que eu possa fazer além de ficar aqui dentro de mim. Lembrou-me os dias de verão chegando ao fim...
bacio
Adorei o seu blog e adorei esta poesia. Indico a você que leia Adélia Prado, é simplesmente mravailhoso tudo o que ela escreve.
Obrigada à Menina no Sotão pela resposta tão cheia de beleza e verdade que me dá...fico também dentro de mim perante o espanto que algumas palavras que encontro me causam.Fico mais perto de mim (no fundo de mim) quando leio, quando escrevo poesia.
Patrícia
Olá Marina,
agradeço a sua simpatia pelo blogue e pelo poema.
Tive a sorte de estudar literatura brasileira na universidade com a orientação do professor Arnaldo Saraiva e admito que tenho uma forte paixão pela escrita de muitos autores brasileiros. Conheço a poesia de Adélia Prado e adoro-a - o seu lirismo amoroso, a visão desiquilibrada que passa da sua vivência do religioso, todo o quotidiano dramático que faz chegar aos nossos olhos, tão plástico que emociona cabalmente...
Gosto mesmo muito da poesia brasileira (e da prosa também!) e há muitas poetisas que nunca me canso de ler e reler. Cecília Meireles, Hilda Hilst, Josely Vianna Baptista, Duda Machado, Ana Cristina Cesar, ... maravilhosas!
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