
"Este livro, pretenso diário, baseia-se no caderno pessoal de Enrique Vila-Matas. Trata-se de um diário literário com origem na leitura, uma obra escrita desde o próprio centro da escrita.
Combina os comentários sobre livros lidos com a experiência e a memória pessoal, e vai propondo o desaparecimento de certas fronteiras narrativas e abrindo caminho para a autobiografia ampla, sempre na busca de que o real seja visto como espaço idóneo para albergar o imaginário e assim romancear a vida. Diário Volúvel não se afasta, de resto, dos procedimentos literários mais habituais em Vila-Matas, onde as diferenças estilísticas entre livros de ficção e colecções de ensaios são cada vez menos relevantes e mais fieis a uma feliz linha de literatura híbrida e fragmentária na qual os limites se confundem sempre e a realidade baila na fronteira com o fictício, e o ritmo apaga essa fronteira. (...)"
Combina os comentários sobre livros lidos com a experiência e a memória pessoal, e vai propondo o desaparecimento de certas fronteiras narrativas e abrindo caminho para a autobiografia ampla, sempre na busca de que o real seja visto como espaço idóneo para albergar o imaginário e assim romancear a vida. Diário Volúvel não se afasta, de resto, dos procedimentos literários mais habituais em Vila-Matas, onde as diferenças estilísticas entre livros de ficção e colecções de ensaios são cada vez menos relevantes e mais fieis a uma feliz linha de literatura híbrida e fragmentária na qual os limites se confundem sempre e a realidade baila na fronteira com o fictício, e o ritmo apaga essa fronteira. (...)"
O excerto (das moscas) prometido e mais alguns que valem bem a pena:
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- “De novo na esplanada do café de Perec, espero, em vão como sempre, que passe Catherine Deneuve, que vive na praça. Mas, uma vez mais, ela não aparece. Surpreende-me, um pouco mais tarde, ler na revista Lire que Vargas Llosa também vive nessa praça, tem um dúplex num edifício do século XVIII: «Neste bairro, sinto-me como em casa. É um bairro muito literário. Umberto Eco também vive na praça. Há quinze anos que espero ver Catherine Deneuve, mas ela nunca aparece.»
Nesse momento, aparece Deneuve. Fico mudo de surpresa e pergunto-me se, durante um momento, Deneuve não foi «o que se passa quando não se passa nada».”Sophie Calle, Fiction
- «E Sophie Calle? aceitei a sua proposta de lhe escrever uma história que ela depois procurará viver. Prometi-lhe no Café de Flore. E umas horas mais tarde voltei a prometer-lho, desta vez mentalmente, no meio dessa maravilhosa estação de correios que fica na rue Litré, na esquina com a rue de Rennes: estação de ambiente descontraído, potente aquecimento central, cordialidade, e hoje, ainda por cima, com Billie Holliday como portentosa música ambiente. Digam o que disserem, a França é fantástica.»
«As moscas são todas diferentes, mas são tão parecidas entre si que há quem acredite que , na realidade, só existiu uma mosca em toda a história do universo. Nunca conheci melhor especialista em insectos do que Augusto Monterroso, que escreveu em certa ocasião: «A mosca que hoje poisou no teu nariz é descendente directa da que ficou parada no nariz de Cleópatra.» O mundo das moscas sem lei atraiu-o sempre e planeou uma antologia universal sobre esse emaranhado universo. Finalmente, acabou por abandonar o projecto, porque viu que o volume teria de ser forçosamente infinito. Mas em Movimiento Perpétuo ofereceu aos seus leitores uma pequena mostra da história mundial das moscas. Movimiento Perpétuo começava assim: « Há três temas: o amor, a morte e as moscas.» Um categórico início para um livro inclassificável, escrito muito antes de haver tantos livros híbridos ou inclassificáveis, como agora. Nele, Monterroso ziguezagueia entre um e outro género, passa do ensaio ao conto, e deste à digressão ou ao divertimento. O ziguezaguear está ao nível do melhor voo da melhor mosca mundial. Os diferentes fragmentos estão unidos por citações literárias em que as moscas têm o seu protagonismo. Não há um único escritor profundo que nunca tenha dito qualquer coisa sobre as moscas. Assim, temos, por exemplo, Ludwig Wittgenstein, que escreveu em Investigações Filosóficas: «O que é que nos propomos com a filosofia? Ensinar a mosca a sair do frasco.» Sobre os mosquitos escreveu-se menos. Quem melhor se aproximou deles foi um escritor da sua mesma espécie, um escritor-mosquito, Ramón Gómez de la Serna: «Ainda bem que os mosquitos não se lembraram de tocar saxofone.» No Verão as moscas – que não costumam falar com os mosquitos – reúnem-se em termas, apartamentos e hotéis. No seu esmerado concerto, bailam à meia-noite. Ou atacam, sem unhas. O zumbido da sua música é inconfundível. Marcel Proust dizia que elas compunham pequenas sinfonias que eram como a música de câmara do Estio. Escrevo no Hotel Charleston, de Cartagena das Índias, frente ao Pacífico e sitiado por moscas tropicais, rodeado por um mundo alucinante de moscas sem lei. «Alguma vez ouviu as moscas tossir?», perguntavam os irmãos Grimm num conto que li quando era criança e cujo título esqueci, mas não aquela pergunta que me tem acompanhado sempre me persegue agora, aqui na esplanada do Charleston, enquanto uma mosca me zumbe à orelha e tenta poisar no meu nariz. Uma enorme chatice, até que começa a afogar-se, imprevisivelmente, num sumo de tomate. Acabo com ela como um criminoso, mato-a com toneladas de sal e pimenta. Não sou Cleópatra, digo para comigo, satisfeito. A mosca morreu às doze e cinco da manhã.
- "Na verdade (dizia o doutor), o tempo que passamos fora é delicioso e, ao mesmo tempo e de certo modo, instrutivo; mas parece ausente da nossa existência substancial e autêntica e nunca se liga bem a ela. Para o Doutor Johnson, os que desejam esquecer ideias dolorosas fazem bem em ausentar-se durante um tempo, mas só podemos dizer que cumprimos o nosso destino no lugar que nos viu nascer. Por isso, gostaria muito de passar o resto da minha vida a viajar pelo estrangeiro, se noutro lugar pudesse pedir emprestada outra vida, para depois a passar em casa."
Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel, Ed. Teorema
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