domingo, 25 de julho de 2010

ZONA - MATHIAS ÉNARD


É uma história de guerras, da Europa e do século XX que parte de uma viagem de comboio e da memória ainda sangrenta de segredos, a abarrotar de detalhes marcantes, de um narrador que é um exímio contador de histórias, com quinze anos de actividade como agente de informações na sua Zona (inicialmente Argélia, depois, sucessivamente todo o próximo Oriente. Uma escrita fluida, com frases longas, reflectindo, com o uso exclusivo de vírgulas, uma oralidade excessiva que, sem contenção, nos leva por arrastamento no trajecto das recordações desta personagem, Francis Servain Mirkovic, em quem depositaram os nomes e a memória de muitos homens que contribuíram para a carnificina que é a guerra. Ele próprio se assume como culpado quando a guerra na Croácia e na Bósnia o levou a cometer como os outros actos de violência que nunca esquecerá. A fusão de vários tempos ( o das guerras por que passou, o de todas as guerras desde os primórdios da vida humana, o da sua própria vida privada e íntima, as vidas e histórias dos outros a que assistiu bem como aquelas que lhe contaram os próprios,...) torna esta obra num texto literário único, que reflecte um poder de escrita ímpar e um modelo dos textos pós-modernos. Como diz a crítica, uma epopeia dos nossos tempos. O autor é francês. A tradução de Pedro Tamen para a nossa língua é bem merecedora da nossa atenção e reconhecimento.

Contracapa:

“Num comboio nocturno para Roma, um antigo espião e antigo militar faz desfilar as suas memórias da zona onde exerceu as suas actividades – o contorno do Mediterrâneo: guerras balcânicas, violências na Argélia, guerras do Próximo Oriente… Zona compõe um palimpsesto ferroviário de vinte e quatro «cantos» conduzidos de um fôlego, e magistralmente orquestrados, como uma Ilíada do nosso tempo”.

(…) e quantas vezes dei comigo a tomar um café ao romper do dia com pilotos e maquinistas de vaporetti para quem eu não existia, porque os venezianos têm aquela faculdade atávica de ignorar tudo o que não seja eles, de não ver, de fazer desaparecer o estrangeiro, e este desprezo soberano, esta extravagante nobreza fora de moda do auxiliado que se permite ignorar em absoluto a mão que o alimenta não era desagradável, pelo contrário, era uma grande franqueza e uma grande liberdade, longe da simpatia comercial que invadiu o mundo inteiro, o mundo inteiro excepto Veneza, onde continuamos a ser ignorados e menosprezados como se não precisassem de nós, como se o dono do restaurante não precisasse de clientes, já que é rico com a sua cidade inteira e está seguro, tem a certeza de que outros comensais menos choninhas não tardarão a vir ocupar-lhe as mesas, aconteça o que acontecer, e isso confere-lhe uma temível superioridade sobre o visitante, a superioridade do abutre sobre a carne morta, o viajante acabará sempre depenado, feito em pedaços com ou sem sorriso, para quê mentir-lhe, até o padeiro do outro lado da rua admitia, sem pestanejar, que o seu pão Não era grande coisa e que os seus bolos eram exageradamente caros, esse padeiro viu-me todos os dias todos os dias durante meses sem nunca me sorrir a sua força era a sua certeza do meu desaparecimento, um dia eu ia-me embora de Veneza e da laguna, daí a um, dois, três, dez anos, e ele, ele pertencia à ilha e não a mim, e recordava-mo todas as manhãs, o que era salutar, nada de ilusões, eu só me dava com estrangeiros, Eslavos, Palestinianos, Libaneses, Ghassan, Nayef, Khalil e até um sírio de Damasco que tinha um bar que era o ponto de encontro dos estudantes e dos exilados, era um antigo marinheiro que desertara numa escala, um tipo bastante enrugado que ninguém associaria nunca a qualquer espécie de mar ou de barco, tinha uma verdadeira cabeça de homem da terra com enormes orelhas bastante peludas na minha memória, era muito religioso, rezava, jejuava e nunca bebia do álcool que servia aos clientes, o seu fraco eram as raparigas, sobretudo as putas, coisa que ele justificava dizendo que o Profeta tivera cem mulheres, que gostava de mulheres, e que ao fim e ao cabo a fornicação era um belo pecado (…)

(…) naquele quarto duplo dormia com Marianne, ela despia-se na casa de banho, tinha um corpo, um rosto de rasgar a alma de um homem e a minha não pedia outra coisa senão essa, no perfume de chuva e de mar de Alexandria embriagava-me com os perfumes da Marianne (…)

Belo sítio para esperar pelo fim do mundo comendo peixe frito sob um grande sol de inverno aninhado no céu limpo pelo vento, está muito calor nesta carruagem, vou adormecer, estou já meio a dormir embalado pela Marianne de brancos braços, o seu rosto transforma-se, é deformado pelo crepúsculo que se estende das árvores que desfilam, regressei a Alexandria voltei lá muitas vezes e nem sempre em sonhos, para concluir umas transacções mais ou menos secretas com generais egípcios cuja importância se media pelo número não de estrelas mas de Mercedes, queles generais que lutavam contra o terrorismo islâmico esfregando conscienciosamente a testa com lixa todas as noites para imitar o desgaste da pele contra o tapete da oração até fazerem um calo e parecerem mais piedosos que os seus inimigos, No Egipto é sempre tudo desmesurado (…)”

Mathias Énard, Zona, 2010, Publicações D. Quixote

Sem comentários: