quinta-feira, 22 de julho de 2010

MITOLOGIAS - ROLAND BARTHES

O ESCRITOR EM FÉRIAS
(...) O que prova a singularidade maravilhosa do escritor é que durante estas famosas férias, que partilha fraternalmente com os operários e os caixeiros, ele não deixa, se não de trabalhar, pelo menos de produzir. Falso trabalhador, ele é também um falso veraneante. Um escreve as suas memórias, um outro corrige provas, um terceiro prepara o seu próximo livro. E aquele que nada faz confessa-o como se se tratasse de uma atitude verdadeiramente paradoxal, uma proeza de vanguarda, que só um espírito forte pode permitir-se exibir. Reconhece-se, através desta última fanfarronice, que é muito «natural» que o escritor escreva sempre, em todas as situações. Antes de mais, isso assimila a produção literária a uma espécie de secreção involuntária, e portanto tabu, dado que escapa aos determinismos humanos: para falar num estilo mais nobre, o escritor está possuído de um deus interior, que fala a a todo o momento, sem se preocupar, o tirano, com as férias do seu médium. Os escritores estão em férias, mas a sua Musa vela, e dá à luz sem parar.

A segunda vantagem desta logorreia é que, em razão do seu carácter imperativo, ela faz-se passar muito naturalmente pela própria essência do escritor. Este admite, sem dúvida, que possui uma existência humana, uma velha casa de campo, uma família, uns calções, uma filha pequena, etc., mas contrariamente aos outros trabalhadores, que mudam de essência, e que não são na praia mais do que meros veraneantes, o escritor conserva, quanto a ele, onde quer que se encontre, a sua natureza de escritor; provido de férias, ele exibe o signo da sua humanidade; mas o deus permanece, e é-se escritor como Luís XIV era rei, mesmo sentado numa cadeira esburacada. Assim, a função do homem de letras está um pouco para o trabalho do comum dos mortais como a ambrósia está para o pão: uma substância miraculosa, eterna, que condescende em assumir a forma social para melhor se fazer apreender na sua prestigiosa diferença. Tudo isto nos introduz à mesma ideia de um escritor super-homem, de uma espécie de ser diferencial que a sociedade põe em destaque, a fim de mais perfeitamente se servir da singularidade factícia que lhe concede.
A imagem bonacheirona do «escritor em férias» não é mais do que uma destas mistificações retorcidas que a boa sociedade põe em prática para melhor submeter os seus escritores: nada manifesta tão bem a singularidade de uma «vocação» como o facto de ser contraditada – mas não negada, bem longe disso – pelo prosaísmo da sua encarnação: é um velho truque de todas as hagiografias. Deste modo, podemos ver este mito das «férias literárias» ganhar um grande alcance , estendendo-se para lá do Verão: as técnicas do jornalismo contemporâneo empenham-se cada vez mais em dar do escritor um espectáculo prosaico. Mas seria errado tomar-se isso por um esforço de desmistificação. Antes pelo contrário. Sem dúvida que pode parecer-me tocante e mesmo lisonjeiro, a mim, simples leitor, participar através das confidências na vida quotidiana de uma raça seleccionada pelo génio: não deixaria de sentir como deliciosamente fraterna uma humanidade em que sei pela leitura dos jornais que determinado grande escritor usa pijamas azuis, e que certo jovem romancista gosta «das raparigas bonitas, do queijo Reblochon e do mel de alfazema». Isto não impede que o saldo da operação seja tal que o escritor se torna ainda um pouco mais vedeta, trocando um pouco mais esta terra por uma habitação celeste em que os seus pijamas e os seus queijos não o impedem de forma alguma de retomar o uso da sua palavra nobre e demiúrgica.
Dotar publicamente o escritor de um corpo bem de carne e osso, revelar que ele gosta do vinho branco seco e do bife bem passado, é fazer-me julgar ainda mais miraculosos, de essência mais divina, os produtos da sua arte. Longe de estes pormenores da sua vida privada me tornarem mais próxima e mais clara a natureza da sua inspiração, é toda a singularidade mítica da sua condição que o escritor denuncia, através de confidências desse género. Porque eu não posso atribuir senão a uma super-humanidade a existência de seres com uma envergadura tal que vestem pijamas azuis no preciso momento em que se manifestam como consciência universal, ou que exprimem o amor do queijo Reblochon com a mesma voz com que anunciam a sua próxima Fenomenologia do Ego. A aliança espectacular de tanta nobreza e de tanta futilidade significa que se acredita ainda na contradição: se esta é totalmente miraculosa, cada um dos seus termos é-o de igual modo: ela perderia evidentemente todo o seu interesse num mundo em que o trabalho do escritor fosse dessacralizado ao ponto de parecer tão natural como as suas funções gustativas ou vestimentares.


Roland Barthes, Mitologias, pp.77, 78, 79

1 comentário:

Anabela disse...

Doçura:
Adorei o extracto que colocaste daquele ensaio (acho?)! Vem mesmo a propósito das férias! Sabes que a ideia de se ser ou sentir contraditório tem-me ocupado muitas vezes os meus pensamentos... e este querer estar onde não se está e depois de lá estar ... enfim...
Gostei ainda da forma como o autor/narrador (não sei bem?) caracteriza um escritor como sendo uma fonte que espontaneamente brota palavras! Esta imagem da fonte aparentemente inesgotável e que está constantemente a lançar palavras é belíssima...
Tanto que dizer amiguinha... e tão po~uco tempo para aquilo de que gostamos...

beijos
anabela