quarta-feira, 28 de abril de 2010

FERNANDO PESSOA RESPONDE A ANA MOURA - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

Ilustração de Pedro Vieira
Ana Moura gostava que eu fosse vivo. Vivo, escreveria versos para fados que depois ela cantaria. Disse-o recentemente em entrevista ao jornal Público. Eu, que nem tenho a certeza de ter estado vivo alguma vez, da mesma forma que não tenho a certeza, agora, de estar realmente morto, escreveria de boa vontade os tais fados, contando que fosse numa taberna – e não pelos fados, Ana, mas pelo vinho.
Estar ao serviço de Ana Moura, na Mouraria, nem sequer me parece fado atroz, ao contrário de tantos outros que me têm imposto desde que naquele dia 30 de Novembro de 1935 me deixei arrebatar pelo sonho e parti (sempre gostei de sonhar; sonhar sem o receio de despertar, eis a perfeição do sonho). A minha silhueta passeia-se hoje por toda a parte, e serve, sem cobrar nada, a tudo e a todos: promove campanhas turísticas, assinala as retretes masculinas, frequenta galerias de arte e livros para crianças, na sua maioria muito maus. Os meus versos servem a todos os fins. Ouço-os nas bocas de cardeais e de maçons, nas bocas de mulheres virtuosas e de putas; nas bocas de generais e de outros comprovados canalhas. Com os meus versos se contestam políticas e se defendem as mesmas. Com os meus versos exaltam uns o futuro da língua portuguesa e outros o lamentam.
Ah, o tédio de ser Pessoa. Fui-o por distracção, é verdade, como as pedras no seu sossego de pedras, e a erva crescendo e sendo erva, e passarem pássaros neste límpido céu de Verão. Tentei ser muitos para escapar de ser nenhum, e não consegui.
Chama-se alma ao interior oco de uma arma de fogo, que vai da parte anterior da câmara da carga até à boca – ou seja, é por onde sai a bala. A minha alma foi sempre algo assim, um espaço oco por onde disparava os sentimentos com que atingia, ou tentava atingir, o coração dos outros.
Ninguém consegue tornar-se um bom cantor, um bom dançarino, um bom pintor, um bom amante enquanto não se esquece de que está cantando, dançando, pintando ou amando. Entregar-se implica esquecer-se de si. Eu nunca me entreguei por completo à vida. Pensei-a sempre, e pensar demais a vida é não a viver.
Talvez tudo isto lhe pareça contraditório e confuso, e ainda bem. É contraditório e confuso e além disso estou morto. Bastante morto. Não exija coerência a um morto. A um morto exige-se que se decomponha o mais depressa possível, ou seja, que se desorganize. Estar morto é render-se por fim à entropia, desistir. Ah, como sabe bem desistir! Ao longo da vida preparei-me muito para a morte. Fui um campeão em desistência. Comecei, bastante jovem, por desistir do amor e da aventura; desisti das mulheres e depois da humanidade inteira (que é o que acontece normalmente aos homens que desistem das mulheres); desisti do dinheiro e da glória; desisti de uma carreira, qualquer carreira, inclusive a literária. Quando por fim a morte me estendeu a mão foi já sem lastro, sem um pensamento a prender-me, que me deixei ir.
Ria-se, Ana, ria-se comigo, de todos aqueles que a criticam por ter dito que me queria ao seu serviço. Lembre a essa gente aquela outra moira que cativou Camões, sendo dele escrava, e doce e bárbara, e de como tal sujeição só favoreceu a poesia.
Existe em Lisboa uma casa com o meu nome. Lá dentro há bonecos com o meu rosto, e alguns dos livros da minha biblioteca. Encontrará também todos os títulos que após a minha morte se foram publicando, tentando juntar os versos que deixei dispersos. Dir-lhe-ão que pode cantar esses versos, pois tem versos para cantar até ao fim da vida. É verdade. E não, não é verdade. Não são os versos que escrevi para si. São os versos que escrevi para si.
Ah, Ana, cante você a dor que minha alma teve e será sua essa dor – não a invejo. Queria a sua alma para sentir os sentimentos meus que você com tanta verdade canta, mentindo. Mas queria-a, sobretudo, para os não sentir.




Crónica publicada na revista LER.

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