Desaparecer a horas certas, mas para onde?
Sabe-se que Robert Walser era de uma pontualidade excepcional. Considerava a pontualidade uma obra-prima.
Trata-se pois de colocar a delicadeza no ponto certo. Não fazer esperar o outro - arte que deve ser tão valorizada como a escultura ou a pintura. Fizeste o mais belo quadro, sim, mas chegaste atrasado ao encontro com o teu sapateiro. Eis uma falha artística irremediável.
A este propósito, o Doutor Vila-Matas contratou o Doutor Pasavento para averiguar “o que se sentia ao chegar com a máxima pontualidade, mas exactamente com um ano de atraso, a um encontro na Cartuxa de Sevilha”. Uma pontualidade em diferido – semelhante ao som que chega uns segundos depois da imagem correspondente.
Mas o que importa é isto: a pontualidade no desaparecimento. Marcar a hora exacta não de um encontro, não de um desencontro (tu vais por uma rua e eu por outra); mas de um rigoroso desaparecimento. Eis o difícil.
Só quem já desapareceu percebe que é impossível definir com exactidão a hora, o minuto e os segundos em que algo ou alguém desaparece. Porque desaparecer não é apenas deixar de ser visto. No limite, é deixar de se ver a si próprio. (Só tem uma vida boa quem tem um bom esconderijo, dizia o sensato Kierkegaard.)
Desaparecer da frente dos outros requer esforço, mas é possível (o bom esconderijo resolve) – desaparecer diante do espelho, eis o grande obstáculo.
Não se quer sentar na minha cadeira?
Ser grande é saber ceder o seu lugar a outro, escreveu Handke, citado por Vila-Matas. Desaparecer, cedendo o lugar a outro - eis a grandeza deste Doutor Vila-Matas que cede o seu lugar ao colega Pasavento que, por seu turno, o cederá a outro.
Trata-se de uma série de desaparecimentos sucessivos, idêntico a uma série matemática em que uma lógica implacável conduzisse um número grande a números cada vez mais pequenos. Até se atingir o infinitamente pequeno.
Mas como chegar ao zero através de infinitas reduções?
O problema é, pois, este: o infinitamente pequeno dividido ao meio continua a não ser zero. Desaparecer, de facto, não é fácil.
No fundo, o Doutor Pasavento ilustra, em literatura, o dilema sem saída de Zenão.
A mão enorme, o papel minúsculo
Kafka queria continuar existir, mas sem ser incomodado. O Dr. Pasavento também.
A escrita desaparece primeiro através de um método de alturas, tamanhos. A letra vai ficando mais pequena. Se não fores capaz de parar de escrever, pelo menos que os teus textos ocupem menos espaço no mundo. Eis a micro-escrita. Quem escreve muitas letras numa minúscula folha, escreve muito ou pouco? Eis uma questão, apesar de tudo, significativa.
Trata-se de produzir uma escrita Liliputiana.
Podemos até imaginar a mão de um gigante, a mão enorme de um gigante que não pára de se mexer sobre a mesa, segurando no mais velho utensílio da escrita. A mão enorme que escreve letras minúsculas. Eis o génio da redução, dirás.
Michael Issacson, professor de engenharia, escreveu, com um feixe electrónico, num cristal de cloreto de sódio, palavras com dois nanómetros de largura.
Juan de Gurtabay escreveu o Pai-Nosso em castelhano (57 palavras) em 53mm². Em 1930.
No fundo, eis como o escritor desaparece (uma metodologia possível): em 1930 escreve o Pai-Nosso em 53 mm² em 1931 em 52 mm², em 1932 em 51mm², e assim sucessivamente. Aperfeiçoar, simultaneamente, a escrita e o desaparecimento.
Ao mesmo tempo: oração cada vez mais exacta e aperfeiçoamento literário.
O centro do livro
Aos 85 anos, o Doutor Vila-Matas desce do seu cavalo ainda em movimento, senta-se e escreve um livro em 2mm².
Os leitores protestam. Onde está o livro? Aqui, aponta o Doutor Vila-Matas. E coloca o dedo, com precisão, no centro dos dois mm². (Nesse momento, existe a sensação de que se falhou por 2 mm² a perfeição da escrita, a escrita que desaparece no momento em que aparece.)
Voltemos, então, a esse livro minúsculo, imaginado. A primeira letra localiza-se exactamente no topo esquerdo dos 2mm² e o último ponto final do livro localiza-se exactamente na extremidade direita da base inferior dos 2mm².
No meio destes dois limites: o livro.
A velha exigência de leitores diferentes para livros diferentes dá aqui outro passo. Não apenas novos leitores, novos olhos – eis o que se exige.
É que aquilo que parece um risco mínimo na folha (2mm² de traço involuntário) com olhos atentos e aperfeiçoados verifica-se ser o novo livro de quem quer desaparecer.
Contributos para a medicina (considerações finais)
Há no Doutor Vila-Matas essa atracção pela Patagónia em que existe “uma pessoa por quilómetro quadrado e reina o silêncio” e por esses países em que não se publicam livros.
Mas felizmente o Doutor Vila-Matas é um médico generoso e um inventor reputado – no meio da descoberta de novas doenças (a Angústia do Pasavento (APS), o Mal de Montano (MM), entre outras), consegue manter essa infinita delicadeza Walseriana de procurar nunca incomodar os outros mesmo que os outros sejam portadores de uma guilhotina e o seu pescoço seja o alvo. Provocar danos na lâmina, nada envergonharia mais o pescoço do homem discreto e delicado que quer desaparecer.
Mas o mais importante é o inverso: ainda não foi inventado (e jamais o será) a lâmina capaz de encontrar o sítio onde esta literatura colocou o pescoço.
Sabe-se que Robert Walser era de uma pontualidade excepcional. Considerava a pontualidade uma obra-prima.
Trata-se pois de colocar a delicadeza no ponto certo. Não fazer esperar o outro - arte que deve ser tão valorizada como a escultura ou a pintura. Fizeste o mais belo quadro, sim, mas chegaste atrasado ao encontro com o teu sapateiro. Eis uma falha artística irremediável.
A este propósito, o Doutor Vila-Matas contratou o Doutor Pasavento para averiguar “o que se sentia ao chegar com a máxima pontualidade, mas exactamente com um ano de atraso, a um encontro na Cartuxa de Sevilha”. Uma pontualidade em diferido – semelhante ao som que chega uns segundos depois da imagem correspondente.
Mas o que importa é isto: a pontualidade no desaparecimento. Marcar a hora exacta não de um encontro, não de um desencontro (tu vais por uma rua e eu por outra); mas de um rigoroso desaparecimento. Eis o difícil.
Só quem já desapareceu percebe que é impossível definir com exactidão a hora, o minuto e os segundos em que algo ou alguém desaparece. Porque desaparecer não é apenas deixar de ser visto. No limite, é deixar de se ver a si próprio. (Só tem uma vida boa quem tem um bom esconderijo, dizia o sensato Kierkegaard.)
Desaparecer da frente dos outros requer esforço, mas é possível (o bom esconderijo resolve) – desaparecer diante do espelho, eis o grande obstáculo.
Não se quer sentar na minha cadeira?
Ser grande é saber ceder o seu lugar a outro, escreveu Handke, citado por Vila-Matas. Desaparecer, cedendo o lugar a outro - eis a grandeza deste Doutor Vila-Matas que cede o seu lugar ao colega Pasavento que, por seu turno, o cederá a outro.
Trata-se de uma série de desaparecimentos sucessivos, idêntico a uma série matemática em que uma lógica implacável conduzisse um número grande a números cada vez mais pequenos. Até se atingir o infinitamente pequeno.
Mas como chegar ao zero através de infinitas reduções?
O problema é, pois, este: o infinitamente pequeno dividido ao meio continua a não ser zero. Desaparecer, de facto, não é fácil.
No fundo, o Doutor Pasavento ilustra, em literatura, o dilema sem saída de Zenão.
A mão enorme, o papel minúsculo
Kafka queria continuar existir, mas sem ser incomodado. O Dr. Pasavento também.
A escrita desaparece primeiro através de um método de alturas, tamanhos. A letra vai ficando mais pequena. Se não fores capaz de parar de escrever, pelo menos que os teus textos ocupem menos espaço no mundo. Eis a micro-escrita. Quem escreve muitas letras numa minúscula folha, escreve muito ou pouco? Eis uma questão, apesar de tudo, significativa.
Trata-se de produzir uma escrita Liliputiana.
Podemos até imaginar a mão de um gigante, a mão enorme de um gigante que não pára de se mexer sobre a mesa, segurando no mais velho utensílio da escrita. A mão enorme que escreve letras minúsculas. Eis o génio da redução, dirás.
Michael Issacson, professor de engenharia, escreveu, com um feixe electrónico, num cristal de cloreto de sódio, palavras com dois nanómetros de largura.
Juan de Gurtabay escreveu o Pai-Nosso em castelhano (57 palavras) em 53mm². Em 1930.
No fundo, eis como o escritor desaparece (uma metodologia possível): em 1930 escreve o Pai-Nosso em 53 mm² em 1931 em 52 mm², em 1932 em 51mm², e assim sucessivamente. Aperfeiçoar, simultaneamente, a escrita e o desaparecimento.
Ao mesmo tempo: oração cada vez mais exacta e aperfeiçoamento literário.
O centro do livro
Aos 85 anos, o Doutor Vila-Matas desce do seu cavalo ainda em movimento, senta-se e escreve um livro em 2mm².
Os leitores protestam. Onde está o livro? Aqui, aponta o Doutor Vila-Matas. E coloca o dedo, com precisão, no centro dos dois mm². (Nesse momento, existe a sensação de que se falhou por 2 mm² a perfeição da escrita, a escrita que desaparece no momento em que aparece.)
Voltemos, então, a esse livro minúsculo, imaginado. A primeira letra localiza-se exactamente no topo esquerdo dos 2mm² e o último ponto final do livro localiza-se exactamente na extremidade direita da base inferior dos 2mm².
No meio destes dois limites: o livro.
A velha exigência de leitores diferentes para livros diferentes dá aqui outro passo. Não apenas novos leitores, novos olhos – eis o que se exige.
É que aquilo que parece um risco mínimo na folha (2mm² de traço involuntário) com olhos atentos e aperfeiçoados verifica-se ser o novo livro de quem quer desaparecer.
Contributos para a medicina (considerações finais)
Há no Doutor Vila-Matas essa atracção pela Patagónia em que existe “uma pessoa por quilómetro quadrado e reina o silêncio” e por esses países em que não se publicam livros.
Mas felizmente o Doutor Vila-Matas é um médico generoso e um inventor reputado – no meio da descoberta de novas doenças (a Angústia do Pasavento (APS), o Mal de Montano (MM), entre outras), consegue manter essa infinita delicadeza Walseriana de procurar nunca incomodar os outros mesmo que os outros sejam portadores de uma guilhotina e o seu pescoço seja o alvo. Provocar danos na lâmina, nada envergonharia mais o pescoço do homem discreto e delicado que quer desaparecer.
Mas o mais importante é o inverso: ainda não foi inventado (e jamais o será) a lâmina capaz de encontrar o sítio onde esta literatura colocou o pescoço.
in http://www.enriquevilamatas.com/escritores/escrtavaresgm1.html
Sem comentários:
Enviar um comentário