Deste livro, escolhi três excertos das cartas que nos oferecem o mais íntimo de Kafka e que (tal como com Pessoa) nos levam a confundir a sua vida com a literatura. Milena foi identificada como a personagem Frieda da obra mais complexa que escreveu, O Castelo. Também o marido de Milena Jesenská (Ernst Polak) parece projectar-se na personagem «senhor Klamm», assim como a relação de inteira dependência que se criou entre os dois casais. Max Brod afirma mesmo que «a trama do romance (…) constitui a projecção simbólica e romanesca do drama vivido por Kafka na vida real.» A escrita demorada d' O Castelo, que ocorreu entre os anos de 1921 e 1922, parece reflectir alguns dos dramas pessoais deste autor, vividos no ano anterior à sua criação, 1920.
Interessante é a forma como Kafka e Milena se conheceram e aproximaram: através da literatura. O primeiro contacto deste par deu-se no ano de 1919 quando ela, impressionada com a qualidade excelente da escrita deste homem, lhe envia uma carta a pedir autorização para traduzir alguns dos seus textos mais famosos. Esta carta é o marco da abertura de uma longa correspondência entre este par. O tom amigável e sério com que a relação começa acaba por se transformar gradualmente numa relação epistolar apaixonadíssima, relação esta que terá a duração de 2 anos. Cada um deles passará por muito sofrimento pois se Milena é casada e vive em Viena com um marido que pouco lhe liga, e um pai que a renega precisamente por esta ter casado com ele, Kafka é noivo da judia Julie Woryzek, contrariando igualmente o desejo de seu pai. Assim, depreende-se que a paixão de Milena e Kafka acontece num contexto emocional tempestuoso e muito complicado. Kafka vai depositar em Milena, que considera como a sua alma gémea, os seus mais profundos segredos, mostrando-se tão humano e interessante como qualquer uma das personagens que prodigiosamente inventou.
“(…)As mais belas das tuas cartas (e isso é dizer muito, pois são, no seu todo, quase linha por linha, o que de mais belo aconteceu na minha vida) são aquelas em que justificas o meu «medo» e simultaneamente procuras explicar que não tenho de o ter. Pois também eu, por muito que às vezes pareça um defensor subornado do meu medo, no fundo o justifico, provavelmente, mais, sou feito dele e ele talvez seja o que eu tenho de melhor. E já que ele é o melhor de mim, talvez seja também a única coisa que te agrada. Porque, de outro modo, que se poderia encontrar em mim que fosse tão digno de ser amado. Isto é, no entanto, digno de ser amado.”
“ É tão triste a tua carta hoje e sobretudo encerra de tal modo a dor em si que me sinto completamente excluído. Quando por vezes tenho de sair do quarto, subo e desço as escadas a correr para apenas estar de novo lá e encontrar o telegrama em cima da mesa: «Também eu estarei no sábado em Gmund . (…)”
in Três Cartas a Milena Jesenská, Franz Kafka
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