domingo, 17 de julho de 2011
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
ARTE POÉTICA
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
Adília Lopes, Um Jogo Bastante Perigoso
domingo, 10 de julho de 2011
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
Magritte, Os Amantes
Sonho
Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Num poço ou num cristal me debrucei.
Só no teu rosto a morte me alcançava.
De quem a morte, por terror de mim?
De quem o infinito que faltava?
Numa casa de vidro vi meu fim.
Numa casa de vidro me esperavas.
Numa casa de vidro as persianas
desciam lentamente e em seu lugar
a noite abria o escuro das entranhas
e o teu rosto morria devagar.
Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Fiz do teu corpo sonho e não olhei
nas palavras a morte que guardavas.
Descemos devagar as persianas,
deixámos que o amor nos corroesse
o íntimo da casa e as estranhas
cerimónias do dia que adoece.
Numa casa de vidro. Num espelho.
Na memória, por vezes amargura,
por vezes riso falso de tão velho,
cantar da sombra sobre a selva escura.
Numa casa de vidro te sonhei.
No vazio dessa casa me esperavas.
Luís Filipe Castro Mendes, Os Amantes Obscuros
sexta-feira, 8 de julho de 2011
TRÊS POEMAS QUE FALAM DE AMOR
ESTA AREIA FINA - FERNANDO ASSIS PACHECO
Não sei
se o que chamam amor é este apaziguamento.
Não sei se comias fogo. Tuas abelhas
voam agora em círculos tranquilos.
Mães serenam seus filhos no ventre,
não sei se o que enfim chamam
amor é esta areia fina.
Agora estamos um dentro do outro,
fazemos longas visitas deslumbradas
porque «o nosso prazer lembra um rio vagaroso
no meio de juncos ao cair da tarde.»
As palavras tornam-se esquivas. Com o silêncio
falaríamos melhor de tudo isto.
Não sei se o que chamam amor
é a cama desfeita o sol fugindo,uma vontade louca de beber
a grandes goles a noite entorpecente.
Com o silêncio, o silêncio sem nome:
morrermos a meio do filme
simples, calada, delicadamente.
Eras tu, amor? — Era eu, era eu!
Um barco junto à margem. E cegonhas.
FLORES DO VERÃO - GASTÃO CRUZ
Estás no meio das árvores dos
pássaros das
sombras no regresso da praia
as flores do verão também estampadas
na solidão da saia outras crescendo
naturais sendo umas o futuro e as da
natureza
o momento presente a estampa que
te envolve saindo
dos arbustos movidos pla leveza
imperceptível quase do espírito
arque virá um dia
transformar-te
como do rés da terra um vento baixo
subindo ao peitoril onde te inclinas
para as
flores do verão ainda
CÂNTICO - JOSÉ RÉGIO
Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa... nua
ante a minha vigília, a noite, e a lua,
ela, agora, descansa, adormecida. Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
sobre funduras e confins da vida.
Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...
enquanto o luar a numba, inerte, gasta
da ternura feroz do meu amplexo.
Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
e eu pouso a boca, religiosa e casta,
sobre a flor esmagada do seu sexo.
in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores
quarta-feira, 6 de julho de 2011
CONTOS DE CABECEIRA
Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das arvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou- o espantada.
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?
- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
- Não há remédio, minha senhora.
- E se eu pagasse?
- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
- E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?
- É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até à benção da morte.
A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.
in Contos de Clarice Lispector, Relógio d' Água
terça-feira, 5 de julho de 2011
ÁGUA - POEMAS DE ÁGUA
ÁGUA
Procuro a água que tens. Água na pele.
Por vezes oculta antes de transpirares os sentidos,
latente como palavras que não dizes mas sei que enternece aí
arriscadamente escorregadia
Trazes nos olhos as ondas a que nos lançámos no primeiro verão e
quando mas devolves há verdade e muitos peixes a rolarem
pela tua face abaixo…
Parecem meninos quando descem do pomar que roubaram
cheios de susto.
E a língua tão dormente que trazes deitada dentro da boca
ruborizada manda os olhos falarem,
os dedos tocarem no meu joelho
mas sei que guarda belas cascatas para me beijar
E recompor na água que tens.
Procuro a água que tens. Água na pele.
Por vezes oculta antes de transpirares os sentidos,
latente como palavras que não dizes mas sei que enternece aí
arriscadamente escorregadia
Trazes nos olhos as ondas a que nos lançámos no primeiro verão e
quando mas devolves há verdade e muitos peixes a rolarem
pela tua face abaixo…
Parecem meninos quando descem do pomar que roubaram
cheios de susto.
E a língua tão dormente que trazes deitada dentro da boca
ruborizada manda os olhos falarem,
os dedos tocarem no meu joelho
mas sei que guarda belas cascatas para me beijar
E recompor na água que tens.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA
OS DOMINGOS DE LISBOA (de Pedro Mexia)
«Os domingos de Lisboa são domingos
terríveis de passar», mais terrível
este verso ter quarenta anos.
Tenho menos de quarenta, prazo
de alegrias, mas ao domingo
é plos domingos que tenho tristeza.
Os domingos em que não soube
e se soubesse não seria diferente,
os domingos de pó e naftalina.
Os domingos sem pão e sem
correio, dia do Senhor
que morreu à sexta-feira.
Os domingos de arrumações,
de matutinos do mês passado,
da sesta hipocondríaca na cama maior.
Os domingos decrescentes,
dia em que se envelhece, missa
para os que são de missa,
futebol para os da bola,
e para as famílias almoços
em melancólicos restaurantes,
parques e lojas onde também
estou, passeando com os olhos
os filhos, saudáveis, dos outros.
in Menos por Menos, D. Quixote, 2011
sábado, 2 de julho de 2011
CÁ DENTRO
Cá dentro é escuro
tão escuro que não chego a vós
a quem prometi dar vida até um fim.
Cá dentro é escuro
e nisso sinto que tudo está para lá
dos órgãos do meu corpo meu entrave.
Se estendo os braços arrepiam vozes
quando entra o vento pela janela
e para lá de qualquer célula que ainda
vos desenha ausentes dentro de mim
chega cada vez mais perto uma solidão
de ser, a incongruência de amar e afinal ser um,
Cá dentro é escuro
sem rasgos de um caminho para aí.
Cá dentro é escuro
sem acesso exclusivo a quem se
ama - poderia nascer entre mim e vós
uma cave interdita, uma gruta secreta cheia de vozes
enleadas e perigos marítimos e mãos trémulas
em soluços de existir.
Cá dentro é escuro
e de tudo isto sobrevive apenas o ar frio
dentro desta ideia cercada de placenta,
cheia de um sangue que é a verdade
de me saber incapaz de ser num mesmo tempo
por dentro dos outros.
Especialmente daqueles
que quero para sempre também ser.
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