sexta-feira, 16 de setembro de 2011

...em dia de felicitação...

FELIZ ANIVERSÁRIO!

...és parte de mim...

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

«Törless olhava vagamente pela janela para o jardim vazio, onde já ia anoitecendo.
Beineberg falava. Da Índia. Como de costume. O pai, que era general, prestara aí serviço no exército britânico, ainda jovem oficial. E não se limitara, como a maior parte dos europeus, a trazer de lá esculturas, tecidos e pequenos ídolos fabricados em série; sentira e guardara também em si alguma coisa do misterioso, bizarro e já crepuscular budismo esotérico. E passara ao filho, desde a infânca aquilo que aprendera e mais tarde ainda fora lendo sobre a matéria.
Era, aliás, um caso singular no que às leituras se refere.
Era oficial de cavalaria e não apreciava livros. Desprezava igualmente romances e filosofia. Quando lia, não queria ser obrigado a reflectir sobre opiniões e polémicas, mas sim, logo ao abrir o livro, entrar, como por uma porta secreta, no âmago de conhecimentos específicos. Tinham de ser livros cuja simples posse fosse já uma espécie de sinal iniciático de uma ordem e garantia de revelações sobrenaturais. E só encontrava isso nos livros da filosofia indiana, que para ele não pareciam ser apenas livros, mas revelações, coisas reais - chaves de mistérios, como os livros de alquimia e magia da Idade Média.
Este homem sadio e activo, que cumpria rigorosamente os seus deveres e para além disso montava quase diariamente os seus três cavalos, isolava-se com esses livros, quase sempre ao cair da noite.
Escolhia então uma página ao acaso e pensava se seria nesse dia que o seu mais secreto sentido se lhe iria revelar. E nunca ficava decepcionado, ainda que muitas vezes tivesse de reconhecer  que não passara do propileu do templo sagrado.
Assim, pairava à volta deste homem enérgico, queimado do sol e do ar livre, qualquer coisa como um mistério solene. A sua convicção de que a cada dia se encontrava nas vésperas de uma revelação grandiosa e retumbante dava-lhe uma secreta superioridade. Os seus olhos não eram sonhadores, mas tranquilos e duros. A sua expressão tinha sido formada pelo hábito de ler livros em que nenhuma palavra podia ser retirada do seu lugar sem alterar o sentido oculto, pela ponderação prudente e atenta de cada frase em busca de sentidos e duplos sentidos.»

Robert Musil, As Perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote

sábado, 10 de setembro de 2011

SYLVIA BEIRUTE - UMA PRÁTICA PARA DESCONSERTO

Gosto dos poemas frios de Sylvia Beirute. Gosto particularmente deste poema que distancia o leitor do poeta pelo decreto (ou intuição) de uma morte mais rápida, mais inteira para com aquele que apenas lê. Gosto da imodesta sinceridade deste eu poético que afirma querer tudo para si no presente. Que atira o futuro para trás das costas, irreverente e insaciável.

LEITURA EXPLÍCITA
{talvez um dia regresse à voz do leitor.}
o leitor morre mais depressa que o poeta.
quero os meus poemas a morrerem
daqui a cem anos
no último fio de voz do primeiro leitor imediato
e numa altura em que todos os livros
subirão aos céus.
não quero o prazer de haver sido distante
num tempo distante. quero o prazer
de ser imediata e soberba
num tempo imediato e arrogante.
quero manufacturar tudo o quanto de pescoço há
na representação.
porque o tempo futuro é um encolher de ombros,

e nos meus poemas as razões se limitam
a retirar razões a outras razões.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

ABRO A PORTA


Abro a porta à minha rua muitas vezes por dia.
Ela acaba por ser convidada como tantos outros.
Gosto dela e dos passeios cobertos de árvores chiantes
(que mais não são do que museus de pássaros que espreito)
que por acaso também entram e se sentam frondosas de melodias
no sofá comigo. Deixo-a percorrer a casa de memórias e de vento dos vales
 pois a rua não é só estrada, tem passeios de histórias e uma vida intensa
 que vem de longe. Uma verdadeira calçada de espasmos. 
Sei que se prostitui na noite e não a julgo. Sei que a solidão lhe dói e não sabe ser
senão de todos. Vejo-a delicada na entrada comum, depois de tocar à campainha.
 Insinuante mas educada na invasão que me impõe.
 Convido-a a entrar intrusa e imensa e vejo-lhe a infância quando se levanta e corre
 à varanda a espreitar o vazio que deixou lá fora. Ao longe vê outras ruas vizinhas
que não a reconhecem mais perto do sol, mais alta de ruídos, mais livre de passantes.
De noite custa-me mais deixá-la entrar pois não a vejo bem em alcatrão e
temo que com ela assaltem estranhos esta casa que lhe abro só a ela, à minha rua,
na montanha distante. Mas há noites que se sinto o seu silêncio  mais restrito
a abraço com uma palavra que corta a mágoa da pouca luz que traz. Sim, deixo-a
entrar vadia e só.  A casa fica outra com a rua deitada dentro e essa dispersão
 confusa faz-me adormecer mesmo sem saber se estou dentro ou fora dela.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

NO MEU PEITO NÃO CABEM PÁSSAROS


Linda amiga,
no meu peito não cabe o encanto que encontro  neste livro de estreia de Nuno Camarneiro(graças à tua generosidade!), um físico que, como tu, deve ter um deslumbramento pelo CERN, onde já trabalhou (tens a certeza de que nunca foi ele que te recebeu nas tuas visitas?) .
Partindo da beleza deste título que, de resto,  é um verso genial de Pessoa (a selecção de um verso bom entre tantos bons também tem o que se lhe diga!), não encontrei pedregulhos de decepção em nenhuma das páginas que percorri...Acho que contorno um senhor autor da língua portuguesa.
Entre as vidas fabuladas de Karl Rossman (personagem de "América" de Kafka) e dos escritores Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa há um grande espaço de dominação de uma linguagem literária feita da nossa língua que convém destacar como soberbo e que remete (juntamente com um ideário original e inteligente) as histórias e o seu entrecruzamento para um segundo plano. Vejo mestria em muitos momentos desta narrativa. Sinto a leitura como uma verdadeira bebida literária.Muito poética também em muitas rectas da escrita.
É uma felicidade encontrar Pessoa refeito pelas mãos de alguém que merece reescrevê-lo. Vejo muita coragem nisto. Obrigada linda amiga por quereres ouvir de mim o que te digo com tanto gosto e alegria.


Deixo o excerto que nos situa juntinhos à chegada  de Fernando Pessoa à nossa capital. Tive dificuldade em escolher o excerto pois cada um me pareceu melhor do que outro, assim que apostei neste por ser um dos primeiros. Espero que também tu gostes de ler. Sei que sim:




Lisboa

Uma outra vida à espera no cais. Tias engalanadas em lenços de seda e luvas brancas como mãos de porcelana. Vamos lá ser menino com um sorriso que é de cara e não é de mais nada.

A viagem chegou ao fim e Lisboa é o fim do mar.

Junto às tias e a esta terra, tudo volta a ser pequenino. O sufixo parece ser anterior às palavras, o menino está cansadinho, a viagem foi boazinha, está tão branquinho, coitadinho. Portugal é assim diminutivo e manso. O que foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas, os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?

Os passageiros descem as escadas e alteram-se a cada passo, passam a ser filhos, sobrinhos, maridos e mães. No barco cada um foi o que quis e pôde, feito à medida de sonhos e frustrações, personagem entre actos, entre o ter partido e o ainda não ter chegado. À saída a vida não permite já devaneios e um nome dito por quem o diz é um grito de realidade.

Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça de inventar filosofias. Agora é sobrinho das tias e dá beijos e abraços. Há um grande conforto no encontrar o que se espera e uma coisa deve ser sempre aquilo que é. Lisboa é Lisboa, as tias são as tias e faz calor porque o Verão ainda não morreu.

A capital é um país de boca aberta para o rio, uma cidade a cantar modas de outro tempo, sempre de outro tempo. Em Portugal inventou-se o viajar no tempo, mas sempre para o passado, sem nunca se sair de onde um dia se partiu.

As ruas passam pela janela do carro, há gente que caminha, gente que vende e gente que leva objectos de um sítio para outro. Há muitos pobres mal vestidos e há também muito ruído de vozes gritadas e rodas na calçada. As tias fazem perguntas que se vão respondendo com sim, não e mais ou menos. As tias têm medo de um silêncio que não existe, são mulheres educadas e boas que penteiam os cabelos de Fernando quando lhes faltam ideias ou palavras.

Os cavalos puxam o carro e Fernando sente-se puxado pelas tias, levado a trote para uma casa que ainda não é sua e nem chegará a ser. Os cavalos e as tias conduzem-lhe o destino sem lhe perguntar nada, é uma surpresa para o menino embrulhada numa rua de Lisboa. As tias são mulheres sérias que lhe imaginam uma vida direita.

A rua das tias tem árvores a todo o comprimento e há beleza nisso, as árvores são próximas do silêncio. Os cavalos param, o carro pára e durante alguns segundos tudo fica tranquilo como um quadro antigo que se pode e deve admirar.

O cocheiro sobe as escadas com a mala apoiada nas costas, seguem-no as tias e depois Fernando que conta os degraus. Habituou-se a medir as distâncias em passos para que o corpo as possa entende. As milhas e os metros são unidades da cabeça, já os passos são quedas pequenas que o corpo aprendeu a aparar. Da rua ao vestíbulo são vinte e oito degraus e duas pernas cansadas de tanta viagem.

A casa cheira a sopa e a alfazema, os móveis têm formas austeras e por todo o lado se encontram rendas e bordados de mulheres sem marido. Fernando senta-se e olha em volta, aturdido. Bebe da água fresca que lhe trazem e permanece imóvel e tímido à espera de que alguém diga alguma coisa. As tias sorriem porque estão contentes e estão em casa e Fernando sorri também.



Nuno Camarneiro, No meu Peito não Cabem Pássaros, D. Quixote, 2011