terça-feira, 24 de maio de 2011

POEMAS QUE ME OFERECEM

Realidade
Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.


Isabel de Sá, in “Erosão de Sentimentos”, 1997

segunda-feira, 23 de maio de 2011

EXCERTOS QUE FICAM - JULIO RAMÓN RIBEYRO

10
«Olhando para o gato do restaurante: a maravilhosa elegância com que os animais assumem a sua nudez. Há algum tempo comprovei isso nos cães, nos cavalos. Não há nada de rídículo nem de desagradável nos animais. Se alguma vez as suas posições ou acções nos incomodam é pela semelhança com acções ou posições humanas: por exemplo, quando os animais fazem amor.»

in Prosas Apátridas, Edições Ahab, 2011

domingo, 15 de maio de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

Van Gogh, Livros

Real, real porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado! Mas onde encontrar um passado?

Manuel António Pina, Os Livros, Assírio & Alvim





domingo, 8 de maio de 2011

PODE FILMAR- SE A POESIA - MANUEL S. FONSECA


Não sei se pode ou não filmar-se a poesia. Pode. Já vi. Deixem-me mostrar. Invento que, em "Atonement", a acesa boca de Keira Knightley, em que logo apetece humedecer a nossa, é apenas a tradução em filme deste resignado verso de e. e. cummings: "se os teus lábios, que outrora amei, tiverem de tocar noutros." A boca de Keira e o verso de cummings anunciam a separação dos amantes, antecipando a dor que há-de vir. Poesia e cinema coincidem ao incendiarem de imagens cada cérebro que tocam. Na poesia, o verbo é tão actor como Nathalie Wood em "Splendor in the Grass".
No poema as palavras levantam-se como a câmara que sobe para ver o mundo do alto do céu no fim de "Perfect World", de Clint Eastwood.Pergunto: que cineasta poderia ter filmado a explosão verbal de Herberto Helder, o nosso maior poeta? Cukor tinha a elegância, mas não a viril vocação animal. Talvez Preminger, o Preminger de "Bonjour Tristesse", se conquistado pelo romantismo doentio de Godard.
Imagino que todos os poemas foram já filmados. Mesmo os de Herberto. Fui ler:
"Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite."
Já vi estes versos no cinema: homens a correr "pelo orvalho parado da noite". Em filmes de guerra de Samuel Fuller, no "Target", de Arthur Penn, em que Gene Hackman é espião em Berlim. Também num velho filme de Fritz Lang, "Man Hunt", irrompe a exacta imagem do verso de Herberto. É um filme de perseguição, presas humanas e nevoeiro espesso. Diga-se: no cinema contemporâneo, só um actor, Matt Damon, tem fôlego para correr pelo orvalho dentro, atravessando as portas da morte e renascendo de todas as perseguições.
Herberto foi ainda mais narrativo nos contos de "Os passos em volta". "Polícia" é a história de um clandestino que sobrevive de expedientes e foge à extradição numa insuportável Bruxelas. Encontra Annemarie, a "criatura  mais só da terra", num sítio onde "as putas e os chuis eram mais do que as mães". Dorme com ela. Leio e penso: Já vi! Mas onde é que vi dois amantes nus a atravessar a cobertores e café, a chuva de uma noite fria? Num dos filmes de longas conversas de Eric Rohmer? Não, foi no "They live by night", de Nicolas Ray: tenho a certeza de que Farley Granger, o actor, se inspirou no herói clandestino de Herberto. E invento: no filme ideal, Juliette Binoche seria Annemarie, a subversiva amante de Bruxelas.  
O filme ideal, o que juntaria a Binoche e Matt Damon, escreveu-o Herberto, antes dos dois nascerem, no poema destes primeiros versos:
"As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira, às vezes, uma planta
de treva."
O cinema arde quando é dito assim.

in Actual, nº 2010, Expresso, 07 de Maio de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

Roubo, sim, gravo aquele vir.
O movimento exacto em
que a roda da saia
da maré, que já sabia irada,
se levanta em briga
e se prepara
pra cobrir as tuas mãos
que em concha a esperam,
toda fria, a recusar-se líquida.
Gravo o calar do amuo dela
que reconsidera ainda tensa,
acariciar-te os dedos fechados,
e ainda muito branca,
refrescar os teus cabelos quentes
pra lá se deixar secar,
E apenas sentir as tuas mãos passar.