quarta-feira, 31 de março de 2010

Joschen Lempert e o episódio do pássaro


                                            1.
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                                  4.
Deixo as fotografias deste fotógrafo que me encanta, talvez por valorizar, como eu, os animais e suas expressões e intuitos e os recantos da natureza que parecem esquecidos da gente que passa.

Esta semana impressionou-me o embate de um pássaro contra o vidro do bar dos alunos. Caiu de imediato, após um estrondo que fez as cabeças de todos virarem na direcção desse acidente aéreo completamente imprevisto para aquele pequeno ser alado. Com comoção foi socorrido por um aluno que se baixou a medo para o apanhar e lhe concedeu a última oportunidade de escapar à morte ou ao desmaio, ninguém sabia ao certo, estremecendo a mão onde ele estava estendidamente estático, com as penas cinzentas a lembrar as cinzas em que, num instante tão fugaz como aquele do embate, ele se podia novamente metamorfosear...
Por mim, pensei com força que ele ainda se encontrava vivo, acho até que com a mesma força que Peter Pan e os seus amigos gritaram que acreditavam em fadas para que a Sininho sobrevivesse... e, ao fim e ao cabo, a minha força resultou no despertar do pássaro que já com a janela aberta esvoaçou, por instinto, no preciso momento em que abriu os olhos. Reparei no descolar repentino de assustado.
Deixei que todos se ausentassem depois do novo toque de campainha para a entrada nas aulas e, por fim, reabri o janelão com muito cuidado para não embater nele, tão limpo estava que se imiscuía na natureza. Espreitei para ver sinal dele e nada.
De repente, no ramo de uma árvore próxima reparei num ponto escuro pousado num extremo do equilíbrio e num acenar de asas que compreendi perfeitamente que só podia ser para mim.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Os cães coloridos

"Era uma vez um cão amarelo que era muito gozado por ser amarelo. Uma vez apareceu um cão que não gozou com ele porque era vermelho, e depois apareceu outro que também não gozou com ele porque era verde, e ainda apareceu outro azul e no fim um laranja.
Todos os cães coloridos explicaram ao amarelo que ele tinha sorte por ser amarelo, era a cor do sol e do limão.
O cão verde explicou ao vermelho que este tinha sorte, era da cor do morango e da cereja.
O laranja disse ao verde que este tinha sorte, era da cor da erva e das folhas.
Todos eles se juntaram e disseram ao cão laranja que tinha sorte, que era da cor do pôr-do-sol.
Os cães coloridos ficaram amigos."

Nuno Lobo Antunes, Mal-Entendidos

Este é um texto que me diz muito pois foi escrito por um jovem com SA (Síndrome de Asperger), que tal como o meu sobrinho (e primeiro filho por isso, desnecessário será acreccentar, uma das pessoas que mais amo no mundo - só o faço para aproveitar o parênteses), deixa bem claro o que um ser um ser humano VERDADEIRAMENTE VERDADEIRO, sem instinto domado pelo factor social,  pode ensinar aos outros.

The Divine Comedy - Tonight we Fly



A noite permite-nos voar e a música também.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Três Sonhos - Gonçalo M. Tavares



1º sonho de Calvino

Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega no chão, impecável.


2º Sonho de Calvino

De súbito, uma borboleta. Calvino fecha as janelas: não quer que ela saia.
A borboleta pousa na sua sombra como se esta fosse uma superfície – um tapete negro finíssimo – e não uma ilusão.
Mas, de imediato, a borboleta sobe, pousa nas pernas de uma mulher, cuja saia é mínima; aproxima-se depois da mesa e pousa nas páginas abertas do livro de álgebra. Calvino vê: ela está com as pequenas patas numa equação de 2° grau. Calvino olha para ela, para a
equação, e depois para a borboleta, mas esta voa de novo, agora em direção à cozinha. Calvino segue-a e, depois, o calafrio. Em cima da mesa um bife cru, a borboleta rodeia a carne, mas a mão de Calvino afasta-a a tempo – certas combinações dão azar. Ela sai dali, foge,
pousa depois num quadro e logo a seguir voa de novo e aproxima-se da orelha esquerda de Calvino.
Calvino sente as cores aproximarem-se do seu ouvido e sorri, continua a sorrir, enquanto a borboleta entra, pela orelha, passo a passo, asa a asa, para dentro da cabeça. Está agora lá dentro e esvoaça, as pequenas asas abrem e fecham delicadamente e Calvino sente-se bem, muito bem: como se a partir dali já não precisasse de pensar em mais nada, como se o mundo estivesse, finalmente, pensado e resolvido, sem a necessidade de qualquer renúncia humana. Calvino sente-se feliz.
Porém, ainda no sonho, Calvino acorda. Uma forte dor de cabeça, e parece não querer passar.

3º sonho de Calvino


Com o seu sócio está tão envolvido na discussão das percentagens de algo, que não dá pelo que acontece: são engolidos por uma baleia. Dentro do estômago da baleia Calvino continua a discutir percentagens. Percebe, agora qual o negócio, trata-se da venda de petróleo e de livros. Quem fica com o quê? A discussão está cessa e Calvino empenha-se nela cada vez mais; vira depois as costas ao seu sócio e sai para a rua: observa as pessoas a andarem de um lado para o outro. Os poucos que não estão com pressa, aqueles que param, discutem entre si, percentagens também: 30, não, 37! Todos discutem, ele próprio não consegue deixar de repetir, para si próprio: 43%, pelo menos 43%!

Mas ao mesmo tempo existe aquela sensação de que estão todos dentro do estômago da baleia, de que aquelas pessoas que ele vê na cidade, cheias de pressa, de um lado para o outro, a discutir percentagens, e ele próprio, há muito foram comidos.

in Desacordo Ortográfico

quinta-feira, 25 de março de 2010

Florence and the machine



A música é uma grande companheira quando o trabalho sobeja...

quarta-feira, 24 de março de 2010

Black Smoke - Tindersticks



Música para dançar muito, muito, muito...

Bernardo Sasseti



Música para sonhar...



Música para amar...

domingo, 21 de março de 2010

primavera em síntese

Gustav Klimt


rouco e quente

trazes a primavera
por detrás das costas
                             muito encolhida
em jacintos e rosas
e depois da trovoada
lanças toda a tua terra
                              em vasos verdes
sobre as minhas mãos
que ensinas
que tratas
                               como se fossem raízes
                               beijos de plantar
e aguardas pelo sol
para as colheres
já duas flores
com o odor
               do amor.





Se tanto me dói que as coisas passem - Sophia de Mello Breyner Andresen


Se tanto me dói que as coisas passem

É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
Sophia de Mello Breyner Andresen


Uma sugestão do Hélder "neste dia de palavras belas":

Não te Arruínes, Alma, Enriquece


Centro da minha terra pecadora,
alma gasta da própria rebeldia,
porque tremes lá dentro se por fora
vais caiando as paredes de alegria?
Para quê tanto luxo na morada
arruinada, arrendada a curto prazo?
Herdam de ti os vermes? Na jornada
do corpo te consomes ao acaso?
Não te arruínes, alma, enriquece:
vende as horas de escória e desperdício
e compra a eternidade que mereces,
sem piedade do servo ao teu serviço.
Devora a Morte e o que de nós terá,
que morta a Morte nada morrerá.


William Shakespeare, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira

As Rosas Amo dos Jardins de Adonis - Ricardo Reis

Rosa Meditativa, Salvador Dali

As Rosas amo dos jardins de Adonis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.


Ricardo Reis, in "Odes"

O poema que o Hélder nos oferece, como uma rosa:


Para a Construção da Alma


Regressemos às flores:
Cada rosa é uma hora perdida da infância.

E temos grandes viagens interrompidas
(em cada rosa beijaremos a boca das manhãs)

E somos um dos lugares intermináveis da noite
(cada rosa é um coração do silêncio)


E adeus. Nos encontraremos, só, em nossa ausência,
como as rosas se encontram na noite.


Vítor Matos e Sá

Braille - Nuno Júdice

Picasso

Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.

No Dia da Poesia

Marc Chagall

"Ut pictura poesis"

"A poesia é como a pintura"
Horácio, A Arte Poética

sábado, 20 de março de 2010

Lull - Dianogah (Daytrotter version) 2009 - Andrew Bird

Viver sem música é um autêntico desconsolo. Sinto que o blogue necessita tanto dela como das nossas palavras. Esta que empurrei para aqui é muito bonita: traz mar, uma história singular e a voz de um homem que transporta dentro dele música infinita.
Ouve-se com o volume bem alto e um sorriso por ser a primeira noite de primavera.




À Volta de Epígrafes



Do mesmo romance de Tabucchi, Tristano Morre:

"Quem testemunha pela testemunha?"
Paul Celan

É caso para perguntar Afinal onde está a verdade absoluta?  A testemunha final, irredutível, iniludível? Onde está a justiça das coisas? A tua palavra vale mais do que a minha? É necessário pesar as palavras em balanças várias? Quem são os juízes dos juízes dos juízes? Poderemos ser testemunhas de nós próprios? É útil olharmos para dentro de nós num momento crucial de crime ou pecado? Testemunhar será apenas ver? Afinal, quem é a última testemunha? Só as palavras testemunham, cegas? E as palavras que se perdem pela sala de audiência? E aquelas que ficaram no local implicado? Neste caso, há que convocar os sítios? Os objectos? Os animais circunstantes? Os pedintes ou apenas os polícias? As crianças e os velhos poderão testemunhar sem lhes medirem cada palavra soletrada e insegura? E os vidros dos cafés onde parte da verdade se reflectiu? Levam-se vidros sujos para o Tribunal? Poderão eles espelhar a decisão final? O arvoredo com os seus pássaros escondidos, calados só para ouvirem passar o abominável? Arranca-se pela raíz, carrega-se cantante aos ombros dos homens que nada sabem para testemunhar pela testemunha? De quem é a última questão? De quem é a última palavra? O último ponto final? É sempre bom perguntar.

sexta-feira, 19 de março de 2010

o meu pai
o meu iap
o meu api
o meu pia
o meu ipa
o meu aip
              é especial.









William Kentridge
            

Os pássaros nascem na ponta das árvores - Ruy Belo

  William Kentridge

As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
Quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
Mas deixo essa forma de dizer ao romancista
É complicada e não se da bem na poesia
Não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo

quarta-feira, 17 de março de 2010

William Kentridge - Man Turning into a Tree

Num dia cinzento e gelado  ocorreu-me deixar de desejar muito. Abstrair-me de qualquer um dos meus pensamentos mais insólitos.
Quebrar a rotina era um vício. Uma pena a cumprir. Como uma paixão que crescesse tanto que mesmo que  os outros não a entendessem, ela era óbvia. 
 Confesso que o meu corpo sempre obedeceu à fantasia que costura rente à pele. Ri-se com ela, abraça-a na sua sensualidade irrecusável. Até que um dia.
Até que um dia se escarpa. Rebenta em galhos a cabeça. Estalam abrolhos no lugar das mãos macias. E no lugar dos pés não há raízes que consigam estacar essa loucura.

Solidão - Rainer Maria Rilke

Um poema de Rainer Maria Rilke que o Hélder nos ofereceu, nos bastidores do LEITORAS.SOS com uma foto que acho magnífica no retrato da solidão salteada de chuva:




Solidão


A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...


Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"

A Maldade das Mulheres - Ivete Baptista

Pedi à Ivete para publicar no nosso blogue a crónica que ela me disponibilizou gentilmente para o jornal do nosso agrupamento de escolas e ela respondeu-me: "Faz com ela o que quiseres, ela já não me pertence." Com esta crónica abri uma rubrica nova à qual dei o nome Crónica sem Vergonha. Os professores e alunos que a leram na 2ª edição de O Plátano adoraram-na simplesmente. E eu também.
Mulheres Sublimes
Luís Sepúlveda, um grande escritor chileno, diz num dos seus livros que “Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”. Por isso devemos continuar a falar daqueles que amamos e que já partiram, deixando-nos o coração mais pequeno. Ao recordar o sorriso, o olhar, as palavras e os gestos, eternizamos cada momento passado na sua companhia, como se de um filme se tratasse, sem fim.
A minha mãe morreu a 4 de Janeiro de 2006. Não consegui, durante muito tempo, imaginar o que seria o resto da minha vida sem ela. Não se ultrapassa a morte de uma mãe pois não há nada neste mundo que a substitua. Comemos rebuçados de mentol para compensar a falta do cigarro, trocamos de carro, de casa, de emprego, de cidade, de amigos e até de amores, mas não trocamos a nossa mãe por nada. A nossa mãe sabe sempre o que nos vai na alma, faz o nosso prato preferido quando a visitamos, acende aquela magnífica fogueira ou o fogão a lenha, e nada se iguala ao cheiro que emana dos seus cozinhados, do calor do lume e dos seus braços. Ela é o alicerce, a casa, a força que empurra e faz andar as nossas vidas e o mundo.
Com tenra idade, a minha mãe deixou a aldeia e partiu “servir” para Lisboa. Os tempos eram difíceis e cabia aos irmãos mais velhos ajudar a sustentar a família. A minha avó, viúva com sete bocas para alimentar, não viu outro remédio senão aceitar que os filhos, ainda crianças, fossem trabalhar nem que fosse por uma tigela de caldo e um abrigo. As raparigas tinham mais sorte e normalmente eram requisitadas para criadas nas grandes cidades, nas grandes casas dos grandes senhores. Era assim a sociedade de então, já tão estratificada e injusta, onde a infância era roubada e maltratados os meninos a quem era exigido que fossem adultos ( o trabalho do menino é pouco e quem não o aproveita é louco, diz a sabedoria popular…).
Só muito mais tarde decidi arrumar o quarto dela: dei as roupas e guardei os óculos de ver. Tentei arrumar na minha cabeça que a tinha perdido. Como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe?
Deixamos sempre para mais tarde as decisões difíceis. É uma forma de adiar os problemas, esperando que uma força superior os resolva, sem dor, sem lágrimas, sem perdas, nem arrependimentos.
Alguém me diz como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe? Como se aceita que não a voltamos a ver, a ouvir, a beijar? Só nos resta o filme incessante a passar à frente dos olhos, as memórias e as fotografias…
Em Lisboa a minha mãe sofreu imenso. Era uma pobre rapariga da aldeia que nada entendia de cozinhados, rendas ou ferros de engomar. A patroa era uma mulher dura, exigente, que adoptou como método para educar os filhos, as criadas e o marido, uma espécie de regime militar. O Toninho e o Zezinho não podiam pisar o risco, pois esta mãe ditadora não perdoava e transformava-se no pior carrasco da triste história da Humanidade. Com as criadas não se atrevia a tanto mas também as castigava, humilhando-as, fazendo repetir vezes sem conta a mesma tarefa até ficar perfeita. “ Isaura, esta camisa está mal passada. O senhor não pode andar na rua com uma camisa neste estado”, mergulhava-a novamente no tanque de lavar a roupa e a Isaura tinha de recomeçar a operação, desde o início. “Ficava-lhe com um ódio, nem imaginas”, confessava muitos anos depois, “ O que será feito dos meninos? Que pena que eu tinha deles, levavam tanta porrada…”, concluía.
Agora já consigo falar dela. Sem raiva de a não ter ao meu lado, sem revolta por me ter deixado tão depressa, quase de surpresa. Consegui arrumar o quarto e deposito flores na sua campa, no dia do seu aniversário, no dia da mãe e no Natal, agora sem magia, sem luzes, sem gargalhadas…
(Mas dói, continua a doer esta ausência imposta, cruel – esta terrível saudade.)
A minha mãe era uma mulher muito bem-disposta. Na sua mesa havia sempre lugar para mais um e partilhava generosamente o que tinha. Adorava estar rodeada de gente feliz que escutava atentamente as suas histórias e as suas canções. Mesmo quando a doença a impediu de ter uma vida com qualidade, presenteava os filhos com as “modas” aprendidas na sua mocidade, em Lisboa. Recordo a quadra de uma em particular, a que ela chamava de “A maldade das mulheres”. Não conheço a autoria da letra mas imagino-a cantada por uma voz e um estilo únicos, ao jeito do Marceneiro:


As mulheres são interesseiras
Falsas e coscuvilheiras
Não se engana quem disser
Sempre a falarem da vida
Não há língua mais comprida
Do que a língua das mulheres
Os risos soltavam-se à sua volta e as cantigas lá continuavam, noite fora, como se o tempo tivesse ali parado, como se mais nada interessasse para além daquele lugar, daquelas gentes simples, da mesa, cúmplice da nossa alegria…A minha mãe brilhava mais do que as estrelas reluzentes das noites de Verão… e sabia-o.
“Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”

Ivete Baptista





Cartas a um Jovem Poeta - Rainer Maria Rilke

Em S. Paulo, Teatro adapta texto clássico de poeta Rainer Maria Rilke

"Cartas a um Jovem Poeta" é a obra mais celebrada de Rainer Maria Rilke, nascido em Praga em 1875 e um dos mais importantes poetas do século 20. O livro, uma reunião de cartas trocadas entre Rilke e Franz Kappus -um jovem admirador de sua obra-, é uma elegia à solidão e à reflexão necessárias para o ofício literário.
A existência de Deus, a importância do autoconhecimento e do contacto com a natureza são outros temas esmiuçados pelo poeta na obra, na qual aparecem as suas influências artísticas, como o escultor Auguste Rodin.
O livro de Rilke é adaptado pela primeira vez para o teatro. A produção, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, é uma parceria entre Domingas Person e Ivo Müller -a ideia surgiu quando o actor, que dava aulas numa escola pública, encontrou na biblioteca volumes intocados da obra de Rilke.


in folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha
 
P.S: Obrigada Anabela, por todas as páginas culturais de interesse que me envias do teu Twitter.

terça-feira, 16 de março de 2010

William Kentridge

      

                                                                          Sleeper Red, 1998

Que pena a nossa língua não conhecer a palavra dormidor. 
O dormidor de William Kentridge deixa o seu sonho invadir o real de vermelho. Sangra por fazer do dormir quase um ofício, um meio de se encontrar fora dos limites do real. A realidade, essa apoderou-se do seu corpo,  cravando-lhe na pele os tons do cimento urbano, dos jornais cheios dos relatos dos acontecimentos mais trágicos, das datas, das horas, dos nomes próprios que já não interessam e se rasgam para pôr fora. O dormidor faz sangrar tudo o que o cerca só porque quer outro mundo, um mundo em que nunca haja vontade de dormir, onde o sonho se viva de olhos bem abertos.

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Obrigada ao nosso leitor e ao seu esclarecimento tão rápido (Que descuidada eu fui!!!):

dormidor:

adjectivo e nome masculino
que ou aquele que dorme muito; dorminhoco.
(Do lat. dormitóre-, «id.»)
in http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/dormidor

sábado, 13 de março de 2010

Este mês não resisti à capa da revista Os meus Livros e trouxe-a cheia de céu para casa. Dou os parabéns a quem conseguiu uma capa tao feliz e inteligente.
Se de cada nuvem espreitassem os escritores idos de que gostamos e delas caissem as palavras que eles não tiveram tempo de  inventar sob a forma de precipitação (ou neblina, orvalhada, névoa, chuvisco, chuvada,  enchurro, granizada, neve), estariam sempre molhados os meus cabelos...

P.S: Só foi pena chamarem Isabel LLansol a Maria Gabriela LLansol, ainda que achem o primeiro nome mais bonito...

À Volta de Epígrafes


Jacques-Louis David, The Death of Marat

"É difícil contradizer os mortos"
Ferruccio

Esta é uma das epígrafes do romance Tristano Morre de Antonio Tabucchi . 

Gosto de reflectir sobre isto...as palavras dos mortos são definitivas pelo simples motivo deles já não as poderem modificar, ainda que elas estejam erradas. Não é impossível contradizê-los, é apenas difícil. A dificuldade de contradizer os mortos virá do facto dessa contradição ferir a recordação que temos deles em vida...Talvez se trate da nossa parte de uma espécie de tentativa de prolongamento desse alguém que morreu através da repetição da consistência ou da insignificância das suas palavras... por simples afecto ou mera questão moral. E no campo científico?  Na ciência, as palavras dos mortos não são poupadas quando não podem ser comprovadas como verdade.  Que achas, linda amiga?
O quadro que escolhi para esta epígrafe foi também polémico por ser um retrato da morte (o quadro é de  1793 e levantou questões do tipo: Desde quando a morte deve ser representada pela arte como se fosse bela? Como se não ferisse a dignidade daquele que está prestes a morrer... ).
A Poesia é a linguagem natural de todos os cultos.

A.-L.-G.  Necker , Madame de Staël

Os da minha rua - Ondjaki


O Voo do Jika

O Jika era o mais novo da minha rua. Assim: o Tibas era o mais velho, depois havia o Bruno Ferraz, eu e o Jika. Nós até às vezes lhe protegíamos doutros mais-velhos que vinham fazer confusão na nossa rua.
O almoço na minha casa era perto do meio-dia. Às vezes quase à uma. Ao meio-dia e quinze, o Jika tocava à campainha.
- O Ndalu tá? – perguntava à minha irmã ou ao camarada António.
-Sim, tá.
-Chama só, faz favor.
Eu interrompia o que estivesse a fazer, descia.
-Mó Jika, come?
-Ndalu, vinha te perguntar uma coisa.
-Diz.
-Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa?
-Deixinda ir perguntar à minha mãe.
Entrei. O Jika ficou ansioso na porta, aguardando a resposta. Quase sempre a minha mãe dizia sim. Só se fosse mesmo maka de pouca comida, ou muita gente que já estava combinada para o almoço. Se a avó Chica viesse, ia trazer também a helda, e assim já não ia dar. Mas normalmente a minha mãe dizia mesmo <>. E ficava a rir
-A minha mãe disse que podes.
-Ah é? – ele pareceu surpreendido. – E a que horas é que vocês vão almoçar?
-Ao meio-dia e meia, Jika.
-Então vou pedir a minha mãe.
Deixei a porta aberta. O Jika devia voltar sem demora quase nenhuma. Gritou contente, cá de baixo, na direcção da janela do quarto da mãe dele:
-Maaaaãe, a tia Sita me convidou pra almoçar na casa dela. Posso?
-Podes. Mas vem mudar essa camisa suada.
O Jika deu uma esquindiva, fingiu que já tinha mudado, veio a correr numa transpiração respirada. Contente. Olhos do miúdo que ele era. Fosse o melhor programa da semana dele. E eu, mesmo miúdo candengue, fiquei a pensar nas razões do Jika não gostar nada de almoçar na própria casa dele.
O Jika estava habituado a muita gasosa. Nesse tempo, se houvesse gasosa na minha casa era para dividir. Como nós éramos três, eu e duas irmãs, quando o Jika vinha almoçar, até a divisão corria melhor. Ele por vezes queria fugir desse ritual:
-Tia Sita, posso beber uma gasosa sozinho?
-Sozinho, bebes na tua casa – a minha mãe respondeu. – Aqui divide-se.
Depois do almoço, o Jika disse que ia à casa dele buscar uma coisa; Eu fiquei à espera, no portão aberto. Prometeu não demorar. Voltou com a tal coisa escondida debaixo do braço, e entrámos rapidamente na minha casa. Subimos ao primeiro andar, fomos até ao quarto da minha irmã Tchi, e saltámos da varanda para uma espécie de telhado. Aproximámo-nos da berma. Lá em baixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu um muito, muito pequenino guarda-chuva azul.
-Põe a mão aqui – ensinou-me. – Agora podemos saltar
-Tens a certeza? – olhei para baixo
Saltámos.
A infância é uma coisa assim bonita: caímos juntos na relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudo rimos. O Jika teve outra ideia.
-Calma só, mô Ndalu. Vou na minha casa buscar um maior.
-Nem num bem grande que tenho, daqueles da praia, anti-sol e tudo, colorido tipo arco-íris?
-Nem esse!
O Jika ficou desanimado. Sem outras propostas para brincadeiras perigosas, decidiu ir para casa. Ao cruzar o portão, falou ainda:
-Posso te perguntar uma coisa?
-Diz, Jika.
-Amanhã num queres me convidar pra almoçar na tua casa?

quinta-feira, 11 de março de 2010

À volta de Epígrafes

 Sinto um deslumbramento pelas epígrafes de alguns livros que tenho em casa ou abro por aí nas livrarias, em bibliotecas, em casa de amigos ou familiares... por isso me lembrei de registar algumas no nosso blogue. A de hoje retirei-a do livro de poesia de  Fernando Pinto do Amaral Pena Suspensa e coloco-a  abaixo desta fotografia que roubei descaradamente neste mundo virtual onde tudo se permite (mesmo o roubo ao lado da poesia). A magia das epigrafes passa muito pelo facto de nos depararmos com frases ou versos da literatura mundial que os escritores não esquecem. São uma espécie de amostras de ideias ou arranjos linguísticos que o escritor que as seleccionou não se importaria nada que lhes pertencesse... mostram normalmente os gostos literários dos autores que as querem exibir. São escolhas que devem ser uma espécie de ilhas por onde os autores passaram e ficaram, deslumbrando-se. Muitas vezes, por isso, pela sua genialidade, apetece-me mais ler o livro donde a epigrafe tombou do que aquele que seguro nas mãos com a intenção de ler.
"Poetry is not a turning loose of emotion, but an escape from; it is not the expression of personality. But, of course, only those who have personality and emotions know what it means to want to escape from this things."  
T.S. Eliot




Alice no País das Maravilhas


Vale bem a pena ver o filme de Tim Burton para apreciar sobretudo duas personagens: a   Rainha de Copas e o Chapeleiro Maluco. O País das Maravilhas materializa uma infância que arrastamos até sermos adultos e faz-nos sentir vontade de nos dedicarmos exclusivamente às nossas fantasias... a transformação que operamos como espectadores ao colocarmos os óculos 3D ajuda a termos a sensação de que também nós andamos perdidos num mundo sério demais...  o que é uma pena pois conforme nos diz tão bem  Alice "os loucos são sempre as melhores pessoas".
Fiquei com muita pena de uma das passagens que mais me emocionam não ter sido produzida no ecrã. Apago um pouco dessa desilusão deixando um pequeno excerto:

"(...) porque eu nunca fui assim tão pequenina, nunca! E digo que isso é demasiadamente mau, é sim!"
Enquanto dizia essas palavras, o seu pé escorregou e, num instante, splash!, estava mergulhada at´ao queixo em água salgada. A sua primeira ideia foi a de que tinha caído ao mar, "nesse caso, posso regressar de combóio", disse Alice para si mesma. (Alice tinha ido para a praia apenas uma vez na vida e concluíra que, para qualquer lugar da costa inglesa que se fosse, haveria sempre algumas barracas de praia, crianças a escavar na areia com  pás de madeira, lá atrás uma fileira de pensões, e mais atrás ainda, a estação do comboio). Mas logo percebeu que estava no lago de lágrimas que derramara quando estava com dois metros e meio de altura.
-Quem me dera não ter chorado tanto! - disse Alice enquanto nadava, tentando encontrar a saída. -Deve ser que o meu castigo por isso é afogar-me nas minhas próprias lágrimas, suponho eu!"

Faltaram entre Alice, o Chapeleiro e a Lebre de Março os diálogos tão engraçados que põem à prova a polissemia das palavras, as constantes charadas que mostram como o mundo pode ser virado do avesso dependendo quase exclusivamente da disposição das palavras nas frases, enfim da nossa capacidade de imaginar e estilhaçar o real:
"- Que relógio tão engraçado! - comentou [Alice]. - Ele mostra o dia do mês mas não as horas!
- Por que razão deveria? - resmungou o Chapeleiro. - Por acaso o teu relógio mostra o ano em que estás?
- É claro que não! - relicou Alice prontamente. - Mas isso é porque o ano permanece o mesmo muito tempo.
- Esse é exactamente o caso do meu - disse o Chapeleiro.
Alice sentia-se terrivelmente confusa. O comentário do Chapeleiro soava-lhe completamente absurdo (...)
- Já resolveste a charada? - perguntou o Chapeleiro, virando-se novamente para a Alice.
-Não, eu desisto - respondeu Alice. - Qual é a solução?
- Não faço a mínima ideia - disse o Chapeleiro.
-Nem eu - disse a Lebre de Março.
Alice suspirou enfastiadamente.
-Penso que deveria usar melhor o seu tempo -disse- , em vez de o gastar com charadas que não têm resposta.
- Se conhecesses o Tempo tão bem como eu conheço - disse o Chapeleiro -, não falarias em gastá-lo, como se fosse uma coisa. Ele é uma pessoa.
-Eu não sei do que estás a falar - disse a Alice.
-Claro que não! - retorquiu o Chapeleiro, sacudindo a cabeça desdenhosamente. - Poderia jurar que tu nunca falaste ao Tempo!
- Talvez não - disse Alice, cauteosamente -, mas eu sei que tenho de marcar o tempo quando aprendo música.
-Ah! Isso explica tudo concluiu o Chapeleiro. - Ele não suporta ficar a marcar o compasso, mas, se estiveres de boas relações com ele, poderás fazer o que quiseres com o relógio. Por exemplo, supõe que são nove horas da manhã, aquela hora a que começam as aulas, apenas tens de segredar uma sugestão ao ouvido do Tempo e lá vão os ponteiros num abrir e fechar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!(...)

Este é um dos livros que me apetece ter repetidamente pois há edições muito variadas que são autênticos convites à entrada neste mundo fantástico (tanto das potencialidades semânticas da linguagem, como das imagens, como das sucessivos motivos da intriga) ... Saiu mesmo há pouco tempo, uma nova edição, fruto da parceria entre o Círculo de Leitores e a Arte Plural, daquelas que eu invejo, apesar de já não ser criança. É uma adaptação de Harriet Castor  com ilustrações do croata Zdenco Basic. Que linda capa!


quarta-feira, 10 de março de 2010

Paulo Kellerman, contista

No fim desta mesa-redonda, não me contive e comprei o livro de contos de Paulo Kellerman - o que foi premiado, "Gastar Palavras", com vontade de testar a crítica. Acabo sempre por ver uma ponta de razão nos livros que ganham prémios. Gostei muito de alguns contos.
Li-o em viagem, em voz alta, com a estrada a ameaçar-nos brilhante da chuva que caía, e gostei da escrita dele, projectada pela minha voz contra as luzes dos outros carros, em surdina contra o vidro da frente, quase a deixar-se de ouvir quando o granizo alvejava com violência, enfim,  morrendo aos pés de cada ponto final.
Cabe num bolso este livro que graças ao vidro e ao tejadilho não encharquei.

Excerto de uma entrevista:
"Nos últimos anos fui acumulando estórias, que espalhei por inúmeras edições de autor. Quando surgiu a oportunidade de publicar este livro, peguei nalgumas das minhas preferidas e dei-as ao editor. Ele eliminou metade, por questões de espaço, e transformou as outras em livro. Foi ele que escolheu o título, a minha sugestão era “Um destes dias, morro”. A estória “Gastar palavras”, que parece ser a preferida de toda a gente, era a única que eu eliminaria sem hesitação; tinha outro título, chamava-se “O dia em que fiz trinta e dois anos”, mudei para “Gastar palavras” no último momento. Só depois do António Luís Catarino, o editor, ter decidido que seria esse o título é que comecei a perceber o encanto da expressão.

Quanto à estória em si, foi escrita num momento menos bom e ficou excessivamente pessimista. Sou uma pessoa silenciosa e tento usar as palavras com moderação; não temo que, um dia, se me acabem mas receio que deixem de produzir efeito. A banalização das palavras é uma coisa terrível, assustadora. A minha filha, que tem cinco anos, diz frequentemente que me adora; das primeiras vezes era um deslumbramento; agora, com a repetição, e tendo ela consciência do poder da palavra e das possíveis consequências do seu uso, percebo que é apenas mais uma palavra que ela aprendeu e usa. De certo modo, gastou-a. A estória é, em parte, sobre isto: as palavras que se dizem e não significam nada."

in http://www.ruadebaixo.com/paulo-kellerman.html

terça-feira, 9 de março de 2010

Mulher com pássaro de Vítor Moinhos

- Segue sempre em frente, rodeia-te de azuis e espera que o pássaro levante voo a partir da tua mão em prancha. Se o seguires, saberás onde fica a liberdade.
(surto de escrita)

CONTO DE SARAMAGO ADAPTADO AO CINEMA

Embargo, de António Ferreira

SINOPSE

Nuno é um homem que trabalha numa roulotte de bifanas, mas que inventou uma máquina que promete revolucionar a indústria do calçado - um digitalizador de pés. No meio de um embargo petrolífero e deparando-se com uma estranha dificuldade, Nuno tenta obstinadamente vender a máquina, obcecado por um sucesso que o fará descurar algumas das coisas essenciais da sua vida. Quando Nuno fica estranhamente enclausurado no seu próprio carro e perde uma oportunidade única de finalmente produzir o seu invento, vê subitamente a sua vida embargada…

Realização: António Ferreira
Produção: ZED FILMS – CURTAS E LONGAS
Co-Produção: Vaca Films (Espanha), Diler e Associados (Brasil), Sofá Filmes (Portugal)
Produtores: Tathiani Sacilotto e António Ferreira
Produtores Associados: Borja Pena, Emma Lustres, Diler Trindade.
Elenco: Filipe Costa, Cláudia Carvalho, Pedro Diogo, Fernando Taborda, José Raposo, Miguel Lança, Eloy Monteiro.
Argumento: Tiago Sousa, a partir da obra homónima de José Saramago
Fotografia: Paulo Castilho
Música Original: Luís Pedro Madeira
Produção Executiva: Tathiani Sacilotto
80 min - Portugal/Espanha/Brasil 2010


Vê o trailer aqui:
 http://www.youtube.com/watch?v=z0fgM_cQvH0

O bom humor de Saramago

A estreia de Embargo, a adaptação ao cinema de um conto de Saramago, deverá ocorrer apenas no Verão. Mas nós já vimos e gostámos do filme, que só está terminado há duas semanas, e passou em ante-estreia mundial, no Fantasporto.
Nós já vimos, mas José Saramago ainda não. Com algum nervoso miudinho, estão à espera da estreia para mostrar o filme ao Nobel. E depois logo se vê. Esperamos que goste. E o António Ferreira, claro está, também. A estreia de Embargo, a adaptação ao cinema de um conto de Saramago, deverá ocorrer apenas no Verão. Mas nós, privilégio dos privilégios, fomos dos poucos que já vimos o filme, que só está terminado há duas semanas, e passou em ante-estreia mundial, no Fantasporto, no Pequeno Auditório do Rivoli (onde só cabem 150 pessoas). E, imagine-se lá, António Ferreira, o autor de Esquece Tudo o que te disse, fez da história de Saramago uma comédia. "O conto tem aquela ironia do Saramago, mas é muito mais sério do que o filme", explicou o realizador ao Final Cut.



Nós rimo-nos quase do princípio ao fim, graças aos excelentes diálogos de António Ferreira e a interpretação dos actores (os principais são pouco conhecidos), com destaque para Filipe Costa, no papel principal. É que, apesar de ser visivelmente uma comédia, também o humor de António Ferreira é inteligente e nada alarve. E coseu as pontas da história original, com apenas 12 páginas, para se manter fiel ao conceito, e não ao texto. O mais importante está lá: Embargo é uma reflexão sobre a dependência do petróleo e do automóvel, criando duas situações extremas - um embargo petrolífero que faz com que a gasolina seja racionada e um homem que, por mistério, não consegue sair do seu automóvel.






António Ferreira lembrou-se de adaptar Saramago muito antes de Fernando Meirelles. Há 15 anos, ainda estudante de cinema, pegou no texto e até filmou algumas cenas para uma curta. "Era tudo muito diferente, eu próprio era o actor", explica. O projecto ficou na gaveta, até que, com a greve dos camionistas, ocorreu-lhe ressuscitá-lo. Ganhou o subsídio para a curta-metragem, mas dois meses antes de filmar resolveu passar a longa. "Um filme não é um livro e tivemos de acrescentar muitas coisas, pois o conto só tem12 páginas. Tivemos de dar uma história ao Nuno".

Embargo é uma co-produção ibero-brasileira, filmada em digital, que tal como em Esquece Tudo o que te disse, encontra um caminho alternativo para o cinema português: uma obra de qualidade acessível ao grande público. Tem tudo para ser o grande filme do próximo Verão.

http://aeiou.visao.pt/o-bom-humor-de-saramago=f550579