quinta-feira, 29 de abril de 2010

À volta da Epígrafe

Paul Delvaux

«What we want», said Harris, «is a change»

Jerome K. Jerome, Three Men on the Bummel

Esta é a segunda epígrafe escolhida por Mário de Carvalho para abrir o seu cronovelema " A arte de morrer longe".
A mudança, seja ela interior ou exterior, é uma necessidade primária do ser humano e não passa de uma tentativa de ficar mais perto de uma ilusória perfeição. Neste caso alude à necessidade de separação das personagens, Bárbara e Arnaldo.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

A ARTE DE MORRER LONGE - MÁRIO DE CARVALHO

O novo livro do fabuloso Mário de Carvalho está nas livrarias e abre uma nova classificação na literatura (só um autor como ele teria esta ousadia e sentido de humor!): cronovelema (uma mélange de crónica, novela e poema ). Que tal? Deixo um excerto desta novidade literária:
A esmagadora maioria dos vizinhos de Lisboa não tomou conhecimento daquelas pavorosas ocorrências que, aliás, lhe provocariam horror e repulsa. Tampouco um certo jovem casal desavindo, morador ao Lumiar, convencido, por esses dias, de que a sua "comunhão de vida" (luminosa formulação legal) estava a dar as últimas. Antes da fase do divórcio, de que anteviam maçadas burocráticas e tortuosidades jurídicas, ocupavam-se com os termos da sua própria separação física e material.

Ela ficava muito séria, sorrindo, numa sua maneira peculiar de conflituar as feições, contrastando lábios e olhos, para bom entendedor; ele tamborilava com os dedos e fingia regressar a si, após sobressaltos de distracção, como se não estivesse, na verdade, a fazer nada de importante. E assim se aplicavam naquela noite, sobraçando livros, discos e bebelôs, elaborando listas, tratando-se com uma cortesia glacial, depois de terem jantado cada um para seu lado. Subentendiam que cada qual amesendara com seu par, quando, em boa verdade, ela tinha vindo do balcão despovoado dum centro comercial e ele duma tasca escondidinha com bifanas a um euro.


Chamavam-se Arnaldo e Bárbara, andavam pelos trinta anos, eram empregados de escritório, e cada qual estaria, segundo informação mais aludida que confessada, "interessado" n'outrem.


Classificavam e inventariavam sem penosidade, com a segurança superior com que vemos os funcionários das finanças somar talõezinhos de despesa, ou receitas de farmácia com IVA a 5% e 11%. Como é isto possível? Como não se distraem? Como não se enganam? Como não se enfadam de morte? A alma humana regurgita destas misteriosas potencialidades.


Ao cabo de duas noites, foi deixado em dúvida apenas um bibelô cinético, um equilibrista de arame que, ao menor impulso, oscilava durante horas, sobre dois blocos de mármore fingido. Ambos reivindicaram o artefacto, lembrando diversos familiares ofertantes, ambos acabaram, generosamente, por renunciar à sua posse e por pouco não engrossavam a voz, mais para impor a recusa que a exigência.


Tratando-se de duas assoalhadas, e de vidas novas, com poucas heranças, das que atravancam as casas de velhas cómodas desirmanadas, pilhas de quadros escondidos atrás de sofás e tapetes persas tão autênticos como os chineses de Arraiolos, dir-se-ia que a partilha não era muito trabalhosa. Por exemplo, para espíritos menos conscienciosos, não se imporia anotar numa folha pautada os nomes dos discos, autores, intérpretes, editor e data, nem proceder de forma semelhante com os livros, que se contavam pelos dedos. Mas ambos se compraziam em mostrar-se zelosos e, sobre o brio profissional, dominava o gosto de enumerar a que não faltava uma feição competitiva.


Havia oito dias que dormiam separados, mas Bárbara não aceitou o hábito, consagrado por gerações burguesas, de pernoitar ela no quarto e ele na sala. Tiveram de discutir com alguma veemência, mas ela impôs que se revezassem, noite sim, noite não. Um casal apressado e menos diligente procederia, decerto, de outro modo, mas convém aqui lembrar aquele célebre incipit sobre as parecenças das famílias felizes e a singularidade das infelizes. Em termos subjectivos, eles considerar-se-iam razoavelmente infelizes, de maneira que não será indelicado arrolá-los nessa categoria, literariamente mais dotada.

WIM MERTENS - STRUGGLE FOR PLEASURE

FERNANDO PESSOA RESPONDE A ANA MOURA - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

Ilustração de Pedro Vieira
Ana Moura gostava que eu fosse vivo. Vivo, escreveria versos para fados que depois ela cantaria. Disse-o recentemente em entrevista ao jornal Público. Eu, que nem tenho a certeza de ter estado vivo alguma vez, da mesma forma que não tenho a certeza, agora, de estar realmente morto, escreveria de boa vontade os tais fados, contando que fosse numa taberna – e não pelos fados, Ana, mas pelo vinho.
Estar ao serviço de Ana Moura, na Mouraria, nem sequer me parece fado atroz, ao contrário de tantos outros que me têm imposto desde que naquele dia 30 de Novembro de 1935 me deixei arrebatar pelo sonho e parti (sempre gostei de sonhar; sonhar sem o receio de despertar, eis a perfeição do sonho). A minha silhueta passeia-se hoje por toda a parte, e serve, sem cobrar nada, a tudo e a todos: promove campanhas turísticas, assinala as retretes masculinas, frequenta galerias de arte e livros para crianças, na sua maioria muito maus. Os meus versos servem a todos os fins. Ouço-os nas bocas de cardeais e de maçons, nas bocas de mulheres virtuosas e de putas; nas bocas de generais e de outros comprovados canalhas. Com os meus versos se contestam políticas e se defendem as mesmas. Com os meus versos exaltam uns o futuro da língua portuguesa e outros o lamentam.
Ah, o tédio de ser Pessoa. Fui-o por distracção, é verdade, como as pedras no seu sossego de pedras, e a erva crescendo e sendo erva, e passarem pássaros neste límpido céu de Verão. Tentei ser muitos para escapar de ser nenhum, e não consegui.
Chama-se alma ao interior oco de uma arma de fogo, que vai da parte anterior da câmara da carga até à boca – ou seja, é por onde sai a bala. A minha alma foi sempre algo assim, um espaço oco por onde disparava os sentimentos com que atingia, ou tentava atingir, o coração dos outros.
Ninguém consegue tornar-se um bom cantor, um bom dançarino, um bom pintor, um bom amante enquanto não se esquece de que está cantando, dançando, pintando ou amando. Entregar-se implica esquecer-se de si. Eu nunca me entreguei por completo à vida. Pensei-a sempre, e pensar demais a vida é não a viver.
Talvez tudo isto lhe pareça contraditório e confuso, e ainda bem. É contraditório e confuso e além disso estou morto. Bastante morto. Não exija coerência a um morto. A um morto exige-se que se decomponha o mais depressa possível, ou seja, que se desorganize. Estar morto é render-se por fim à entropia, desistir. Ah, como sabe bem desistir! Ao longo da vida preparei-me muito para a morte. Fui um campeão em desistência. Comecei, bastante jovem, por desistir do amor e da aventura; desisti das mulheres e depois da humanidade inteira (que é o que acontece normalmente aos homens que desistem das mulheres); desisti do dinheiro e da glória; desisti de uma carreira, qualquer carreira, inclusive a literária. Quando por fim a morte me estendeu a mão foi já sem lastro, sem um pensamento a prender-me, que me deixei ir.
Ria-se, Ana, ria-se comigo, de todos aqueles que a criticam por ter dito que me queria ao seu serviço. Lembre a essa gente aquela outra moira que cativou Camões, sendo dele escrava, e doce e bárbara, e de como tal sujeição só favoreceu a poesia.
Existe em Lisboa uma casa com o meu nome. Lá dentro há bonecos com o meu rosto, e alguns dos livros da minha biblioteca. Encontrará também todos os títulos que após a minha morte se foram publicando, tentando juntar os versos que deixei dispersos. Dir-lhe-ão que pode cantar esses versos, pois tem versos para cantar até ao fim da vida. É verdade. E não, não é verdade. Não são os versos que escrevi para si. São os versos que escrevi para si.
Ah, Ana, cante você a dor que minha alma teve e será sua essa dor – não a invejo. Queria a sua alma para sentir os sentimentos meus que você com tanta verdade canta, mentindo. Mas queria-a, sobretudo, para os não sentir.




Crónica publicada na revista LER.

terça-feira, 27 de abril de 2010

EXPLICAR O PENSAMENTO DE MONDRIAN

Um quadro estonteante de originalidade de Andrew Findlay para quem quer entrar na mente de Piet Mondrian e compreender a ruptura drástica relativamente à sua primeira fase de pintura, na Holanda, onde os motivos das suas obras de arte eram quase exclusivamente árvores e flores para se dedicar a um estilo puramente geométrico onde o contraste de cores impera.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

TELA HABITADA - HELENA ALMEIDA


Quem me dera presa numa tela onde encontrasse o teu olhar a perseguir-me, as tuas mãos a tactearem cores, a reinventarem a palavra, a embrulhá-la para, naquele quarto pequeno, naquela parede defronte, fazer-me de novo o centro de tensão ou os limites do desejo, enfim, o fim da ilusão do encantamento. E eu rompesse, sem soluços, esse tabu da autoria de todo o texto que fiz meu, surgindo assim às revoadas, para me reconheceres irrepetível, calma, límpida, em tudo o que num só dia te disse.

NANIÔNA - UMA E DUAS - MÁRIO CESARINY (1960)

Acordar com o rosto em flor é um segredo desmedido que só a algumas mulheres tem invariavelmente acontecido.
Ontem, por exemplo, foi num arrepio de desejo de água fresca que sustive precisamente as palavras "água fresca, por favor". Repentinamente, não tive mão nem boca para chamar alguém que certamente, por me amar, me apagaria a sede de uma noite mal dormida, em que, embevecida, sonhava que habitava um jardim, onde todas as amigas eram flores de deleitar. O perfume, esse vinha de debaixo da almofada e parecia indicar com um odor magnânimo, um trajecto nocturno como um mar, com ondas esculturais e escorregadias, sobre as quais os pés se afundavam em temor e nunca mais sabiam caminhar sem raízes volúveis, próprias das flores marinhas.
Quando dei por mim, nesse jardim sonhado, deixei de ver, deixei de ouvir para apenas converter todas as cinco sensações numa vontade imensa de estar ao sol e à chuva intermitentemente, até ao fim da minha vida. Havia nesse desgaste de contrastes térmicos, na espera de alguém que dali me levasse nos braços, num ramalhete enlaçado, unida a tantas outras flores com odores diferentes, uma beleza que também unia todas as horas numa só hora.

sábado, 24 de abril de 2010

HILDA HILST


Que canto há de cantar o que perdura

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.


Que mitos, meu amor, entre os lençóis:


O que tu pensas gozo é tão finito


E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer

Hilda Hilst, Da Noite, 1992

Salvador Dali


À eterna Hilda Hilst, que para mim é um livro infinito,

Dá vontade de comer
as palavras de Hilda Hilst,
e depois de as enrolar
na saliva a salvivar,
cantá-las de uma varanda
muito alta muito estreita
onde só cabe um corpo fino,
para as lançar leves
como violetas sobre a cidade agitada
sobre as cabeças dos noivos
como uma badalada antiga
ou então como gazelas espavoridas
que mal pousam nos prados
seus corpos delgados
só vêem o Longe
e não sabem como parar de correr.

Surto de escrita, 2009



sexta-feira, 23 de abril de 2010

SONETO "APARTHEID"

A Coetzee para que veja que também a poesia se revolta contra esse grande problema do seu país natal.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

LEOPOLDO MARÍA PANERO


LA POESÍA DESTRUYE AL HOMBRE


La poesía destruye al hombre
mientras los monos saltan de rama en rama
buscándose en vano a sí mismos
en el sacrílego bosque de la vida
las palabras destruyen al hombre
¡y las mujeres devoran cráneos


con tanta hambre de vida!
Sólo es hermoso el pájaro cuando muere
destruido por la poesía.



terça-feira, 20 de abril de 2010

EBON HEATH E A POESIA VISUAL













Afinal, também os adultos podem sonhar com o poema-mobile.






segunda-feira, 19 de abril de 2010

O PÁTIO MALDITO - IVO ANDRIC


Aproveito a Biblioteca de Gonçalo M. Tavares que passo a transcrever com palavras a propósito de Ivo Andric que motivaram a leutura deste romance:

Dança

Numa festa, uma mulher descalça-se e dança.
Na mesma festa, um homem curva-se e faz o gesto da cruz três vezes antes de se levantar de novo. Mas quem está atento percebe que quem se baixou tão religiosamente, benzeu-se três vezes de forma a dar tempo para espreitar por d......eba...ixo de uma saia demasiado escandalosa e desatenta.
Três vezes abençoou-se aquele, mas os outros, os que vieram a seguir, abençoaram-se sete e oito e mesmo nove vezes, exactamente no mesmo ponto de vigia da saia desavergonhada.
Estava a ser uma festa muitíssimo interessante, até que um homem enorme decidiu, devido à sua inabilidade, ocupar toda a pista de dança. Em poucos minutos, o gigante desproporcionado ficou a dançar sozinho e os músicos só não pararam de tocar por compaixão.
Não era música, era piedade.


Sobre o Pátio Maldito

Frei Petar, monge bósnio cristão, é preso por engano e encarcerado na prisão de pior reputação duma Istambul, então Constantinopla, capital do Império Otomano: "O pátio maldito". Nesta, cruzam-se assassinos, violadores, assaltantes, conspiradores, mas também inocentes e falsos acusados de todas as classes e religiões, cada qual com um percurso, uma história e várias mentiras.
No "pátio maldito", o frade vai conhecendo as histórias dos seus companheiros de infortúnio. A sua voz vai-se diluíndo nos muitos relatos dos outros prisioneiros até desaparecer entre as diversas histórias que ouve, as mentiras que cada um inventa e as diferentes noções de justiça e de realidade... Entre ódios e recordações vão-se misturando presente e passado, realidade e ficção, numa história de histórias.
Uma notável metáfora sobre a harmonia entre os homens em condições adversas. Andric descreve os processos pelos quais a História se entranha na vida dos indivíduos e neles se reflete, num eterno jogo entre o particular e o universal, ao mesmo tempo que põe a nu a raiz dos conflitos que têm assolado os Balcãs ao longo dos séculos.

por Livrarias Almedina

Este livro considerado a obra prima de Ivo Andric, único prémio nobel jugoslavo, é uma notável metáfora sobre a harmonia entre os homens em condições adversas. No estilo que o celebrizou, Andric descreve os processos pelos quais a História se entranha na vida dos individuos e neles se reflecte, num eterno jogo entre o particular e o universal, ao mesmo tempo que põe a nu a raiz dos conflitos que tem assolado os Balcãs ao longo dos séculos.

http://www.cavalodeferro.com/

Um pequeno excerto do romance em que nos é apresentada uma personagem singular, um judeu de Smirna, que falava de tudo e de todos com uma perícia descomunal, atraindo por isso a atenção de Frei Petar na sua cela:

"Era um desses homens que passam toda a vida a travar uma luta sem esperança e perdida de antemão contra as pessoas e a sociedade onde vivem. Na sua paixão por tudo dizer e tudo explicar, de pôr a nu todos os defeitos e todos os malefícios dos homens, de denunciar os maus e render tributo aos bons, ele ia muito além do que um homem comum e são podia ver e saber.
Cenas que se desenrolaram entre duas pessoas, sem testemunhas,ele sabia contá-las até aos mais pequenos e inacreditáveis pormenores. E não só descrevia os homens de que falava, como penetrava nos seus pensamentos e desejos, e frequentemente naqueles mais recônditos , de que eles próprios não tinham consciência, mas que ele conseguia descobrir. Metia-se na pele deles. Tinha o estranho dom de imitar, com uma mínima mudança de voz, o modo de falar dos personagens da sua história e de encarnar ora um governante, ora um mendigo, ora uma bela grega; com leves movimentos do corpo, ou apenas dos músculos do rosto, era capaz de fazer a mímica perfeita do andar e do comportamento de um homem, da marcha dos animais ou mesmo do aspecto dos objectos inanimados.
Deste modo, cok muita vivacidade e muito detalhe, Haim falava das grandes e ricas famílias judias, gregas, e mesmo das famílias turcas de Smirna, alargando-se sempre em torno de acontecimentos e casos importantes. E cada uma destas histórias encerrava-as com alguma exclamação, quase um grito: « Eh! Hã?» o que mais ou menos significava: « Isto é o que temos! E o que significa a pobre da minha vida e o meu triste caso ao lado dessa gente e dos seus emaranhados destinos!»
E terminando uma história, começava logo outra. Nunca mais acabava.
(Os homens, uns mais que outros, tendem sempre a condenar os que falam muito, principalmente de coisas que não lhes dizem directamente respeito, chamando-lhes, até com desprezo, tagarelas e fala-baratos. E assim fazendo, não nos damos conta de que esse defeito humano, humaníssimo mesmo, e tão frequente, tem também o seu lado bom. Pois, o que saberíamos nós das almas e dos pensamentos alheios, dos outros homens e por consequência de nós próprios, de outros meios e de outras terras que nunca vimos nem jamais teremos oportunidade de ver, se não houvesse gente assim, com necessidade de dar a cohecer oralmente ou por escrito o que viram ou ouviram e o que em torno disso sentiram e pensaram? Pouco, muito pouco. E por mais que as suas histórias sejam imperfeitas, temperadas pela paixão e pelas necessidades pessoais, ou até mesmo inexactas, temos sempre a razão e a experiência para podermos julgá-las e compará-las umas com as outras, aceitá-las ou rejeitá-las, no todo ou parcialmente. Assim, sempre se salvará alguma coisa de verdade humana para aqueles que com paciência escutam ou lêem.)"
Ivo Andric, O Pátio Maldito, Cavalo de Ferro, pp. 45, 46





Guia de Conceitos Básicos - Nuno Júdice

Deixo um poema que podemos colocar ao lado de "Ela canta, pobre Ceifeira" de F. Pessoa, sem que este último comprometa a sua beleza.
Quanto ao livro, aconselho-o como, aliás, aconselho qualquer outro do mesmo autor. Este guia de conceitos básicos faz-nos acreditar que a poesia não passa, afinal, de um guia que nos enquadra no mundo real, tornando mais claro o essencial.
Gostei particularmente dos metapoemas que, como nos seus livros anteriores de poesia, mais uma vez demonstram o fascínio e o chamamento que o poeta sente pelo momento e processo da escrita.

CEIFA

Nos grandes arrozais do sul, as nuvens
de mosquitos escondem o céu. As mulheres
cuja sombra se afunda nos charcos,
quando a tarde cai, enlouquecem
devagar e cantam. Mas os mosquitos voam
à sua volta, e elas batem as mãos como
se fossem leques para se libertarem
dos mosquitos e das sombras, e
escorregam no lodo, enquanto os homens
lhes gritam, da margem, que o arroz
continua por colher. Então, a procissão
das mulheres sai de dentro do pântano, e
os homens caem à sua frente, como
se elas trouxessem nos olhos
a foice que decepa os campos e as vidas,
num fim de tarde em que os mosquitos,
com a sua nuvem de sombra, taparam o céu.


in Guia de Conceitos Básicos, Dom Quixote, 2010

sábado, 17 de abril de 2010

SMOG (Bill Callahan) - ROCK BOTTOM RISER


http://www.youtube.com/watch?v=5J-WpgOzW9A

(Queria deixar-te pelo menos um dos muitos excertos literários sobre o nevoeiro do livro de Umberto Eco "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", mas não o consigo encontrar nas excessivas e desordenadas lombadas que repousam nas prateleiras do escritório...Não desisti, apenas adiei a intenção!)

Correspondência

" Não sei se recebeu o meu postal da Grécia. Fui de automóvel com a Agustina B. Luís até Brindisi onde tomámos o barco. Passámos por Turim, Milão, Veneza, Pádua, Verona, Ravena, Rimini, Termoli. À volta passámos por Pompeia, Nápoles, Roma, Florença. Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido. Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. (...) É uma atitude de ligação com o real que está presente em todas as coisas. Só em Esquilo se pode encontrar um reflexo deste espírito que está presente, inteiramente presente, nas ruínas despedaçadas dos templos gregos. Gostaria de lhe contar tudo o que vi, desde o sabor espantoso do vinho com resina que me entonteceu logo na primeira noite da minha chegada, até à água gelada que bebi num dia intenso de intenso calor nas montanhas de Delfos. Mas sinto que só sei falar mal disto tudo.
Aqui minha fala se quebra como a quem
Viu em sua frente um deus visível
E vai sem imaginação, perdidas as palavras
No real indicivel"

Sei que compreendes o que me fascina nestas páginas de sucessivas confissões de Sophia, nas quais como José Manuel dos Santos disse "as vozes de Sena e Sophia são-nos dadas na sua nítida nudez".

Espero que te encantes com esta pequena amostra, como eu me deixei encantar.


CORRESPONDÊNCIA


Na contracapa: "Agora com nove car­tas iné­di­tas, este volume reúne a cor­res­pon­dên­cia tro­cada entre Sophia de Mello Brey­ner e Jorge de Sena. O resul­tado é um impres­si­o­nante retrato social, his­tó­rico e moral do Por­tu­gal dos anos 60 e 70. Retrato de um país per­dido. Retrato de “dezoito anos de ausên­cia que pode­riam ter sido dezoito anos de con­ví­vio, de encon­tros, con­ver­sas, riso comum, afli­ções e ale­grias comu­ni­ca­das.” Retrato de um país roubado."




A partir da leitura de "Correspondência 1959-1978" entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, recentemente reeditada pela Editora Guerra e Paz, não pude fazer outra coisa senão revisitar os poemas de Jorge de Sena (tão declaradamente maiores para Sophia). Um dos versos de Andante (que destaco a vermelho) é comentado pela poeta:" Este último verso está no centro da sua poesia. Em toda ela há como que o testemunho de que o poeta é o homem que não perde a coragem com a qual nasceu."


ANDANTE

IV

Não é de um medo enorme que ressurge a vida?
As crianças nascem com uma coragem que perdem.
As mães provocam-nas em si com uma coragem de carne.
E os homens levam-nas consigo sem as conhecer.


Jorge de Sena






LeV

17 de Abril, Sábado

15h00 (Salão Nobre dos Paços do Concelho, Matosinhos)
- Conferência de abertura.
- Lançamento da revista Itinerâncias, número 3.

16h00 (Galeria Municipal)
- Inauguração da exposição de fotografia A última fronteira, de Gonçalo Rosa da Silva.

16h30 (Galeria Municipal)
- 1.ª Mesa: «Literatura e Guerra». Com Robert Fisk (Inglaterra), Mimmo Cándito (Itália), Carlos Vale Ferraz, Hubert Haddad (Tunísia) e Cândida Pinto. Moderação: José Mário Silva.

18h30 (Galeria Municipal)

- 2.ª Mesa: «As Viagens são os Viajantes». Com Giuliano da Empoli (Itália), Nuno Silveira Ramos, João Pedro Marques e Lourenço Mutarelli (Brasil). Moderação: João Rodrigues.

21h30 (Cine-Teatro Constantino Nery)
- Relativamente, espectáculo teatral com encenação e tradução de João Lagarto e produção de Alice Prata.

18 de Abril, Domingo

15h00 (Galeria Municipal)
- 3.ª Mesa: «Percebo-me viajando». Com Alexandre Alves Costa, José Medeiros Ferreira, Patrícia Portela e Guillermo Martinez (Argentina). Moderação: Manuel Alberto Valente.

17h30 (Galeria Municipal)
- 4.ª Mesa: «O Sonho de África». Com Tim Butchert (Inglaterra), Mohamed Berrada (Marrocos), Javier Reverte (Espanha) e Jacinto Rego de Almeida. Moderação: Carlos Vaz Marques.

19 de Abril, Segunda-feira

10h30 (Biblioteca Municipal Florbela Espanca)
- Workshop de fotografia com Sérgio Jacques.

15h00 (Galeria Municipal)
- 5.ª Mesa: «Viajar prolonga a vida». Com Alon Hilu (Israel), José Rentes de Carvalho, Alexandra Lucas Coelho e Mónica Marques. Moderação: Rosa Alice Branco.

17h30 (Galeria Municipal)
- 6.ª Mesa: «Palavra a palavra viajamos». Com Filomena Marona Beja, Ignacio Martínez de Pisón (Espanha), José Fanha e Arthur Dapieve (Brasil). Moderação: Marcelo Correia Ribeiro.

20 de Abril, Terça-feira

10h30 (Biblioteca Municipal Florbela Espanca)
- Workshop de fotografia com Sérgio Jacques.

15h00 (Galeria Municipal)
- 7.ª Mesa: «A alegria do homem está em viajar». Com Joaquim Magalhães de Castro, Cristina Carvalho, Lazaro Covadlo (Argentina) e Maria Isabel Barreno. Moderação: Jacinto Rego de Almeida.

17h30 (Galeria Municipal)
- 8.ª Mesa: «Toda a realidade é um desejo de viagem». Com Hélder Macedo, valter hugo mãe, Mempo Giardinelli (Argentina) e Elmér Mendoza (México). Moderação: Francisco José Viegas

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Not even the rain



http://www.youtube.com/watch?v=EGIKsW_VeGs



somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near


your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, mysteriously) her first rose


or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;


nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing


(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands



e. e. cummings




Fico grata ao Manuel Alegre por oferecer ao leitor este momento de despedida de Sophia, por ser poeta mesmo quando opta pela narrativa, por tentar esta encantadora novela.


“( …) O miúdo ouvia o roçagar da caneta no papel e pressentia que naquela grafia havia uma flauta a cantar dentro das sílabas. Era uma liturgia quase mágica, uma escrita nova e dentro dela um mundo novo que nascia. Algo que só muito mais tarde sentiria, mas em sentido inverso, como se um mundo se estivesse a extinguir, quando, pela última vez, visitou Sophia no quarto do hospital. Estava recostada numas almofadas muito brancas, ela própria também de branco, estranhamente esplendorosa e bonita, a princípio abriu muito os olhos, parecia que nos reconhecia e não reconhecia, uma das filhas disse-me: Fala-lhe. Eu falei e então ela murmurou o meu nome e o de minha mulher. Sentei-me ao pé dela e comecei a dizer-lhe um dos seus poemas: Ia e vinha / E a cada coisa perguntava, e então ela terminou: Que nome tinha. Fui dizendo poemas de que me lembrava, dela própria, de outros poetas, sobretudo de Camões, que ela pediu, ela ia repetindo comigo, até que, a certa altura, já não dizia as palavras, só a batida das sílabas, poesia em estado puro, só o ritmo, só a cadência, só a respiração do poema na sua própria respiração.”

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Que sugestivo...


Doçura... nem sabes como sinto falta de percorrer este nosso cantinho... e admirar tanta beleza que aqui colocas graças a essa tua sensilidade! Adorei o título deste congresso! Senti que era para nós! Pudessemos nós fugir e estaríamos em Cordoba... Clica na imagem...

Porque acredito que a tua escrita é poderosa

O POEMA (Sophia de M. B. Andresen)

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
(à Pat com ternura, porque a amizade também é a nossa casa)
(Pat: ofereço-te este magnífico poema e esta música sofrida pois acredito que também as tuas palavras, que te rasgam por dentro tantas e tantas vezes e te pedem para se soltar, são poderosas e com elas alcanças o infinito)



Não resisto a E. E. Cummings


Doçura, achei lindo o poema que colocaste do E. E. Cummings. Não resisti a traduzi-lo! Vê se concordas... É um lindo poema em que a palavra que nos abre ao mundo é tão simples afinal... um singelo SIM ao AMOR... divinal

love is a place
& through this place of
love move
(with brightness of peace)
all places


yes is a world
& in this world of
yes live
(skilfully curled)
all worlds


o amor é um lugar
E através deste local de
Amor movem-se
(Com o brilho da paz)
todos os lugares

O sim é um mundo
E neste mundo de
sim vivem
(Habilmente enrolado)
todos os mundos

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Poemas Fora de Casa (antologia) - Ivo Machado

Fico cega para tudo quando um livro novo de poesia me entra em casa.

Hoje acordei com melros
namorando nas vielas
Calaram-se meus medos e receios
Pastor entre as faias
abri todas as janelas
beijei-te a boca   as mãos
os seios.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Quintas de Leitura com Gonçalo M. Tavares

http://quintasdeleitura.blogspot.com/2010/04/goncalo-m-tavares-de-regresso-a.html

Citações

 " (...)a drowsy numbness pains my sense / As though of hemlock I had drunk "

John Keats, Ode to a Nightingale

ou

 (...) assalta-me a razão um sonolento torpor / como se cicuta houvesse bebido

Entusiasmam-me as citações que os escritores que admiro intrometem a meio das suas narrativas e que tanto merecem como necessitam de tradução nos rodapés das folhas dos romances (muitas vezes aprecio-os muito mais do que os das casas). Este surge na p. 170 do mais recente romance autobiográfico de J.M. Coetzee, acusando uma das suas predilecções poéticas.

domingo, 11 de abril de 2010

Whatever works - Woody Allen

O último filme de Woody Allen, sem ser dos melhores que ele tem, apresenta o seu humor incomparável. Fez falta como actor principal desta comédia a sua cara de "adulto ingénuo", o seu modo de comunicar coisas sérias com um ar maroto e descontraído. Ele é (ao contrário do que possa pensar) insubstituível.
Deixo-te o trailer:

http://www.youtube.com/watch?v=HmIoImelhHI

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Love is a place - E. E. Cummings



love is a place
& through this place of
love move
(with brightness of peace)
all places


yes is a world
& in this world of
yes live
(skilfully curled)
all worlds

sexta-feira, 2 de abril de 2010


Parole Perdue


Dans la chartreuse, à l'abri d'une croisée d'ogives, devant le profil fendu des remparts, la parole fut avalée par le choc de l'écho sous les voûtes et le roulis du tonnerre, l'orage ayant crevé.
Le voyageur avait quitté le pays de rivière sous ce même orage en route vers le Sud-Est. Ses gouttes mêlées de grêle rencontraient les galets dans un bruit de gros insecte écrasé.
Cette pluie prafuma la terre, qui maintenant, transpire bon, résine, citronelle, menthe confondues.
Le soleil éponge la respirante buée. Estompée pour une nuit, la ricière, elle aussi, a perdu la parole, mais, sous l'arche, son langage reste gravé dans le sommeil.


Villeneuve-lès-Avignon


In La cendre et l'Etoile, poèmes 1978-2004, Le Cherche midi 2005