sexta-feira, 31 de julho de 2009

PRECISÃO

Precisão, Clarice Lispector

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Chuva Oblíqua


Requiem for an umbrella / Séverine Cousot aka Sey

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

Fernando Pessoa


A fotógrafa Séverine Cousot aka Sey, conseguiu esta foto simplesmente soberba, a partir da simples armação de um guarda-chuva, comemorando assim um dia de chuva igual a outros tantos. As tonalidades do edifício captado por detrás da armação do guarda-chuva são as mesmas de um triste fim de tarde outonal. Para acompanhar esta fotografia não há nenhum "poema com chuva dentro" que supere o virtuosismo poético conseguido por Pessoa em "Chuva Oblíqua", o poema que inaugura um novo modo de enunciar em Pessoa, o chamado Interseccionismo. Que bom poder juntar Pessoa à japonesa Séverine.

O excerto transcrito corresponde à segunda das seis partes com que o poema se faz. Cada uma das partes é autónoma e fantasticamente conseguida neste estilo único que tentou na poesia e que tanto se assemelha ao cubismo na pintura.(partilhando as suas técnicas de recorte, colagem, intersecção ...). Acho isto simplesmente genial!

É também curioso saber que Pessoa em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro sobre a gésese dos seus heterónimos refere que num dia triunfal, após ter escrito mais de 30 poemas de O Guardador de Rebanhos e a Ode Trinfal com que nascem Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, respectivamente, cria Chuva Oblíqua como reacção dele próprio contra a sua inexistência nas criações anteriores.

Portanto Chuva Oblíqua é poema-regresso (!!), de Fernando Pessoa a ele próprio, depois de passar pelo êxtase da despersonalização literária. Isto dito por ele, com outras palavras. É também magnífico detectar no poema a série de técnicas de escrita completamente inovadores para a altura. As oposições categóricas (som/silêncio; dentro/fora; luz/escuridão); a inusitada concretização de substantivos abstractos que funde realidades completamente distintas; a sintaxe da indiferenciação como em " Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste; o simultaneísmo expresso pela contiguidade de acontecimentos cujos espaços e tempos não se equivalem ("o automóvel que passa enquanto a missa decorre"). É magnífico verificar como o sujeito poético comparece em ambos os espaços e tempos simultaneamente (é um verdadeiro ser superior!); a dinamização de substantivos estáticos (a missa passa como um automóvel que circula no exterior da igreja!) e a experiência da transparência através do olhar oblíquo do sujeito poético que tudo atravessa (como a chuva, daí chuva metaforizar o seu olhar) como lemos no verso "E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça // [...] E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...". Todo o poema consegue alcançar um terceiro plano, o da intersecção, que não é mais do que que a clarividência, a transparência das coisas e dos seres. Poema invencível. Poeta inultrapassável. Uma estátua da poesia universal, pelas mãos do nosso Pessoa.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sobre o mar

Paul Nash, Winter Sea

Sobre o mar

Sobre o mar imenso, o voo das gaivotas.
Sabe que te amo.
Mais longe, os ventos das
Tempestades sentem por mim
O que sinto por ti.


Mais perto, a brisa dos ventos
Acaricia-te a face
Como se fossem as minhas mãos.
Junto a ti, o meu olhar beija o teu olhar e na areia
Encontro beijos para te cobrir o corpo.


Sobre o mar que finda na praia,
Lá andam as gaivotas guardando o segredo
Lá está a força dos ventos e as suas brisas,
Lá vêm as minhas mãos húmidas e
Os beijos guardados na areia salgada.
Tudo por causa de ti.

HPF

Este é um poema quase tão belo como quem o criou. Surgiu do espaço-nada, numa folha em branco manuscrita e dobrada com ternura, a partir de mim. Quando não acredito no ser humano, leio-o para sentir um amor que é só meu. Espero lê-lo sempre com a mesma esperança e vaidade.
Paul Nash é um surrealista inglês com grandes pinturas que retratam sobretudo as duas grandes guerras. Esta ilustra o mar de inverno, distante e misterioso na sua frieza.

Magritte O criador de mistérios (Notícia "Público" de 30/07/2009)

O maior dos pintores surrealistas belgas tem finalmente um museu, em Bruxelas. São mais de 250 obras e documentos que mostram como Magritte passou a vida a subverter a realidade. Estão lá os pássaros-céu, as mulheres enigmáticas, os cartazes elegantes que anunciam tardes de tango
O Museu Magritte, o mais recente pólo do Museu de Belas-Artes da Bélgica, na Place Royale, em Bruxelas, tem apenas dois meses, mas é já apresentado como um caso de sucesso, com os seus 75 mil visitantes.Para Virginie Devillez, directora de projecto deste museu que nasceu em 2005 na cabeça de Michel Draguet, director do Museu de Belas-Artes, e de Charly Hersovici, presidente da Fundação Magritte, e que começou a ser montado três anos mais tarde, o êxito não é surpreendente. "Bruxelas é uma cidade pequena, mas com pessoas de toda a Europa, com um nível cultural elevado", explica ao P2 por telefone. Muitas dessas pessoas estão habituadas à obra de René Magritte (1898-1967) - em livros e catálogos, na publicidade e no cinema - e algumas até já tiveram oportunidade de estar frente a uma das suas obras, e
m museus europeus ou americanos, mas "não querem perder a oportunidade de ver tantos quadros juntos de um dos pintores mais reproduzidos do mundo".O novo Museu Magritte tem a maior colecção de obras do pintor surrealista belga. São 250 pinturas, esculturas, desenhos, posters, fotografias e outros documentos, incluindo dezenas de manuscritos e até pautas ilustradas, distribuídos por três níveis de exposição (ao todo são 2500 metros quadrados), segundo um programa que procurou aliar a organização temática à cronológica, apostando na componente cenográfica, inspirada na obra do próprio pintor.

Magritte nasceu no Sul da Bélgica, em 1898, numa família de baixos recursos, com um pai alfaiate e uma mãe modista de chapéus. Por natureza calado e tímido, Magritte e os seus dois irmãos mudaram frequentemente de casa com os pais, que procuravam dar-lhes uma vida melhor. Adeline, a mãe, preocupava-se com a educação dos seus três rapazes, mas cedo deixou de os acompanhar - suicidou-se quando Magritte era ainda um adolescente (teria 13 ou 14 anos, os dados divergem). As memórias mais fortes desses primeiros anos, haveria de contar mais tarde, diziam respeito a uma caixa cheia de objectos que ficava sempre junto ao seu berço, a um balão de ar quente pousado no telhado da sua casa, e ao rosto da mãe coberto por um pano quando retiraram o seu corpo do rio (há quem veja uma relação evidente entre este momento e quadros como Os Amantes, de 1928). É a pintar que Magritte se sente livre. Começara a estudar pintura em 1910, em Châtelet, e continuara, três anos mais tarde, em Charleroi, quando já começava a ser evidente o poder que tinham sobre ele as aventuras de Fântomas, as viagens de Robert Louis Stevenson e o universo literário de Edgar Allan Poe. Já andava na Academia de Belas-Artes há mais de dois anos quando decidiu fazer os primeiros quadros, inicialmente cubistas, depois futuristas. Começa a dar-se com alguns pintores e poetas, entre os quais E.L.T. Mesens, marca duradoura na sua vida e no seu trabalho, tal como Marcel Leconte. Enquanto estuda e anda pelos cafés de Bruxelas, em tertúlias e discussões políticas (aderiu duas vezes ao Partido Comunista, para o qual chegou a desenhar cartazes, que nunca foram aceites), Magritte vai formando o seu imaginário, em que a realidade aparece invertida.

"Quer mostrar o mistério da vida", explica Devillez, "mas só para provar que ela é estranha e importante."

Na fachada de um dos cafés que Magritte e o seu grupo frequentavam - La Fleur en Papier Doré, na Rue des Alexiens - brinca-se com a histórica ligação do maior dos surrealistas belgas (é assim que é descrito) àquele pequeno espaço que ainda mantém a decoração original, com a sua lareira rude e velhas molduras nas paredes amareladas, cobertas de colagens e de frases encorajadoras: "Todo o homem tem direito a 24 horas de liberdade por dia.""Isto não é um museu: aqui consome-se...", diz a parede exterior, que fica colada à da florista. Há ruas e praças do centro da cidade, como as do bairro de Le Sablon, em que o pintor do chapéu de coco - imagem de marca de Magritte (lembram-se do quadro Le Fils de L'Homme, de 1964, que aparece no filme O Caso Tomas Crown?) - se instalou na montra de livrarias, lojas de chocolate e clubes de xadrez, paixão que o autor de L'Oiseau de Ciel (1966, símbolo da companhia aérea Sabena) partilhava com Man Ray e Marcel Duchamp. Mas havia paixões que Magritte não partilhava.Georgette, sempre Georgette. Ela está por todo o lado. Nos quadros, nas fotografias, nas cartas e nos poemas. Mesmo quando não temos a certeza de que é a ela que Magritte se refere, Georgette está lá, com os olhos grandes, claros, entrando nas sessões fotográficas do marido - com um cachimbo sobre a cabeça pousada na areia ou enrolada num lençol branco amarrotado, divertida - ou como destinatária invisível de uma mensagem, de um esboço.

"No museu há um lindo poema de amor, que provavelmente seria para Georgette, mas não temos certeza", lembra a directora do projecto. A meio do papel amarelecido, escrito à mão, pode ler-se: "Tenho o coração desta mulher. (...) A dois, o nosso poder serve-nos para inventar um empreendimento surpreendente...""Magritte era louco por ela, isso sabemos. Há uma carta de 1922 em que admite que não consegue trabalhar por estar demasiado apaixonado. Não consegue pensar em mais nada."

Magritte e Georgette conheceram-se em 1913, escreve Marcel Paquet em René Magritte: O Pensamento Tornado Visível. Ele tinha 15 anos e ela não chegara ainda aos 13. Foi nesse dia, em Charleroi, que andaram pela primeira vez de carrossel (não sabemos se René se atreveu a segurar-lhe na mão). Reencontraram-se em 1920, no Jardim Botânico de Bruxelas, e nunca mais se separaram - Georgette passou a ser o seu modelo e, dois anos mais tarde, também sua mulher."Estavam sempre juntos", diz Devillez. "Passamos horas a ler os documentos e chegamos à conclusão de que eles não viviam um sem o outro. Parece um filme. Magritte faz-lhe as vontades, muda de casa porque ela quer um jardim, muda de país porque ela se sente sozinha [foi assim durante a Segunda Guerra Mundial, quando troca o Sul de França por Bruxelas, onde ela ficara]..." Aparentemente, o pintor não tinha dúvidas de que valia a pena. "Feliz aquele que atraiçoa as suas convicções pelo amor de uma mulher", escreve.

Profundamente influenciado pela obra de De Chirico - outro dos grandes do surrealismo -, Magritte desenvolve um universo muito singular, opondo-se por vezes às directrizes da "escola" francesa, liderada pelo poeta André Breton, com quem mantém uma tensa relação de amizade, desde 1927, quando o belga se muda para Paris e os dois partilham horas de trabalho e boémia com o pintor Marcel Duchamp e outro poeta, Paul Éluard. Nos três anos parisienses do casal Magritte, o pintor torna-se mais livre. Graças a um contrato com uma galeria tem um ordenado e não precisa de perder tempo a trabalhar em publicidade.

"Aqui consolida-se a sua forma de pensar a pintura. O que lhe interessa nela não é a técnica, mas a poesia", explica Devillez. "Magritte não é um espontâneo. Quando começa a pintar, sempre muito lentamente, tem o quadro todo na cabeça, sabe exactamente que tipo de reacção procura do observador." É um "criador de mistérios" que dizia muitas vezes que pintar era cansativo porque implicava pensar de mais.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O MAR DE SOPHIA

Esta foto é uma das muitas espectaculares da colecção do francês Philippe Ramette que gosta de tirar fotos a si próprio em contextos surreais como... no fundo do mar. Que bela foto para acariciar o poema de Sophia que a seguir transcrevo.

FUNDO DO MAR


No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.


Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.


Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.


Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Este é um dos meus poemas predilectos dos 14 livros de poesia que Sophia editou. Cada vez que o leio encontro-lhe sons marítimos profundos diferentes, cores de matizes variantes como no mar de Espinho e uma beleza intocável que me faz lembrar que ela é um reino muito pequeno, como disse há muitos séculos atrás Sócrates. Para mim ela é o próprio mar. Adoro o título que o inicia - "Fundo do Mar" - e o torna misteriosamente apetecido como se para o compreendermos necessitássemos de uma leitura subaquática com máscara de oxigénio, barbatanas gigantes e olhos abertos para as maiores surpresas: encantos e desencantos. Cada vez que leio este poema, ganho consciência da efemeridade da própria beleza do mundo, dos outros... e sei que também dentro de mim há um fundo a que nem eu chego. Gosto de lê-lo em voz alta aos meus meninos porque é também um verdadeiro poema da nossa infância.



terça-feira, 28 de julho de 2009

CORAÇÃO DO DIA, Eugénio de Andrade


Não resisto: tenho que colocar este magnífico poema de Eugénio de Andrade! Foi uma prenda da minha amiguinha tão linda!


Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavrasou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade(Coração do dia)

CHÃO MÃE

Procurei um poema do Zé Alexandre. Lembrei-me deste "Chão Mãe" pois na altura que o li o poema deixou-me tão feliz por ser tão simples e pelar às raízes, ao nosso estado bruto. No fundo, somos todos poeira! Poeira de estrelas! Os átomos, protões, electrões, gluões, quarks, são exactamente os mesmos que constituem as estrelas! Não é impressionante?

Quando a luz me foge
e a dor me sobra,
lavo-me nas lágrimas soltas,
corridas do espírito,
caídas no chão.
“Chão mãe”, vaso imenso,
de tudo cheio,
onde a vida fica,
em espera final.
Se o sofrimento alcança a resignação
e o mutismo,
toma de mim a indiferença,
respiro o cheiro da terra,
trago-a para perto,
chamo-lhe casa
e lá pernoito como peregrino,
como mendigo.

Mária Kovalszki

"Sob os dedos ágeis de Mária Kovalszki/ Em que procuras a escuridão onde a música/ Se esconde com teus pés feitos de luz"

segunda-feira, 27 de julho de 2009

No.3 Clair de Lune



À Anabela Coelho
No. 3 Clair de Lune


Nos caminhos que o luar abre no asfalto
Pintam teus pés as pedras as brechas
As bermas as sinalizações absurdas
Pintam teus pés os degraus dos universos
Sem dares conta sangrentos no cinzento
Ferozes por tudo por todos que os prendem

E sobes das amarras plenamente intuitiva
Com teus pés brancos de lua
Suspensa nas notas da sinfonia de Debussy

Aí pintam teus pés em negro orbital
O teclado de um qualquer piano clássico
Onde sempre te acalmas embevecida
Sob os ágeis dedos de Mária Kovalszki
Em que procuras a escuridão onde a música
Se esconde com teus pés feitos de luz.