sexta-feira, 25 de novembro de 2011

EUGÉNIO DE ANDRADE - POESIA E PROSA


Os dois volumes da obra de Eugénio de Andrade, editados pela Modo de Ler, são ambos uma autêntica preciosidade. Poesia Reunida e Prosa Reunida são livros tão belos como as pessoas que deles me possibilitaram um presente. A prosa é de um poeta por isso leio-a cheia de poesia. Cheia de sabedoria e claridade nas coisas.  O volume Poesia traz muitas mais  luzes lá dentro. Luzes que só tremeluzem diante da abertura desmedida a todas as palavras simples, a todas as raízes da nossa linguagem. Dessas luzes primordiais desprende-se para cima das minhas mãos, para dentro dos meus olhos, a essência de que se faz o Poema. Aqui ler a Poesia é sinónimo de amar a poesia.

TRÊS POEMAS DA ANTOLOGIA:

ENQUANTO ESCREVIA

Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com seus antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos doutro corpo estendido ao lado? Já não me lembro, passava os dias a dormir à sombra daquela árvore, era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede.

A BEIRA DE ÁGUA

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo, dói tanto! Todo o amor. Até o nosso, tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

in Poesia, Eugénio de Andrade, Modos de Ler

LIVROS QUE FICAM

Maravilhoso, O Corpo Enquanto Arte é um exercício literário e filosófico que por isso mesmo deixa o leitor na dúvida até ao fim: o que apreciar em primeiro lugar? Que beleza? A da lingua no estilo depurado e essencial de DeLillo ou a das suas questões existenciais (quase inexistentes no nosso século tão limado de inteligência em tudo!), da sua voz interior que aponta em todos os momentos para a essência do tempo, do amor, da solidão de que todos somos feitos e, a partir desta riqueza reflexiva, a necessidade do corpo perante o abandono, a entrega da consciência ao desconhecido até ao limite do desejado, enfrentando (mas adiando) o vazio provocado pela morte da pessoa mais importante. Que difícil é avançar de beleza em beleza...Um excerto:

«Por que não há-de a morte de uma pessoa que amamos arrastar-nos para a mais lúgubre decadência? Não sabemos como amar aqueles que amamos até ao dia em que eles desaparecem abruptamente. Só então nos apercebemos daquela pequena distância em relação ao seu sofrimento que poucas vezes soubemos superar, do modo como nos resguardámos, como só raramente abrimos o nosso coração, sempre a tecermos as nossas ideias de deve-e-haver.
Ela alimentava estas ideias com todas as partes do seu ser. Olhos, mente e corpo. Percorria as ruas inclinadas da cidade sem dar nas vistas, a acalentar estas ideias, ia comprar produtos de mercearia e ferragens e embrenhava-se nestes pensamentos até um certo ponto, parada no longo corredor, no meio das fechaduras, ferramentas e objectos de vidro.
Por que é que a morte dele não havia de te mergulhar em paroxismos de dor, fazendo-te perder a compostura e rasgar as roupas, aos gritos? Porque havias de te adaptar a essa merda? Ou renderes-te a ela de lábios cerrados, num luto elegante? Porquê esquecer Rey se podes ir até ao fundo do corredor e encontrar a forma de o trazer para junto de ti?
Mergulha mais fundo, pensou. Deixa que a morte te arraste para as profundezas. Vai onde ela te levar.
Por vezes as suas reflexões faziam-se destes incitamentos, dirigidos a alguém que não era bem ela própria. Outras vezes, recorria a outras fórmulas. Pensava em rostos a pairarem no ar, mesmo diante das órbitas dos seus olhos, o do homenzinho desaparecido quando conseguia recordar-lhe as feições.
Chamo-me Lauren. Mas cada vez menos.»

in O Corpo Enquanto Arte, de Don DeLillo, Relógio d'Água, pp. 116, 117

domingo, 6 de novembro de 2011

LER É EXIGIR


Ler é exigir de ti
querer que me leias
nestas tantas letras (e tretas)
o sorriso a canção o mimo a ilusão 
como se me visses no espelho
e mesmo no inverso do que sou -
uos euq od osrevni on omsem e -
não encontrasses nada fora de mim.

RUY BELO - TU ESTÁS AQUI

Tu estás aqui
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                    o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                  outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso 
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
                                                                                        que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
                                                                                        outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto 
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto 
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos 
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                   a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui 
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui



in Toda a Terra, Todos os Poemas, de Ruy Belo