quinta-feira, 30 de junho de 2011

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - A ESTRADA BRANCA


O POEMA

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visíveis, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.


 A ESTRADA BRANCA

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate


José Tolentino Mendonça

CONTOS CARNÍVOROS - BERNARD QUIRINY

ALGUNS ESCRITORES,  TODOS MORTOS
Descobri graças a Pierre Gould um grande número de escritores menos conhecidos, homens de letras da sombra ignorados pelos fazedores de antologias. Pierre teve sempre uma inclinação particular pelos autores de segundo plano, os discretos, os excêntricos, os pequenos mestres, os esquecidos, os discípulos de um outro, os herdeiros de uma escola passada de moda, os provincianos, os exilados, os amadores esclarecidos, os que não lograram marcar uma época e os que se desinteressaram de o fazer, os inactuais, os extravagantes, os modestos, todos os que encontramos nas bibliotecas quando deslocamos os monumentos que os escondem. Na sua maioria, não têm génio; alguns deles têm-no mais do que algumas celebridades a quem a posteridade concedeu um favor imerecido. Todos estão mortos. Eis os meus preferidos.
Enzo Tranastani (1890-1939): este italiano publicou dez livros cuja particularidade é terem todos eles, um título de obra musical. A sua primeira novela, dada à estampa em 1911 numa revista milanesa, intitulava-se Quarteto de Cordas nº 1; a seguir escreveu Sonata para Piano em mi maior, Sinfonia nº1, Sinfonia nº2, Missa em Si, Quarteto de Cordas nº 2, Obras para dois pianos, Concerto para Violino, Obras para Piano e Violoncelo e Sinfonia nº3. "Não me lêem", dizia ele: "tocam-me."
Adolphe Morceau (1855-1940): membro efémero do grupo dos Hydropathes, onde esteve ao lado de Charles Cros e de Alphonse Allais, este especialista do texto breve nunca conseguiu resolver-se a trabalhar sobre papel, como toda a gente. Todas as suas novelas (ignora-se quantas terá imaginado, ois que muitas de entre elas se perderam) foram escritas sobre suportes escolhidos pela sua relação com a intriga. A Morte de um Peão foi assim redigida sobre um sapato de couro número 46. O Amador de Chocolate, gravado no cabo de um garfo de sobremesa; A Caminho do Oeste, pintado sobre uma placa de sinalização roubada à saída de Paris, e Jogo, Set e Match, pirogravado no quadro de uma raqueta de madeira. (...)
Malcolm e Clarence Galtho (1884 - 1945 e 1884 - 1955): estes dois gémeos ingleses, saídos de uma família numerosa na qual todos tinham de uma maneira ou de outra relação com a literatura, escreveram juntos uma série de livros hoje esquecidos, mas que conheceram no seu tempo um certo sucesso. A sua maneira de escrever fascinava os críticosporque faziam tudo em comum, de tal modo que era impossível separar dos seus livros o que vinha de Clarence e o que vinha de Malcolm.Pierre sabe de cor vários poemas da sua colectânea Adeus a Gales do Norte, que nos recita com frequência, sem se preocupar com o facto de nós, que o ouvimos sem entender o inglês, nada compreendermos. (...)
Francisco Martinez y Diaz (1930 - 1981): este ex-militar espanhol começou a escrever quando passou à reforma. Era muito lento e não terminou senão um livro, Histórias Lidas num Espelho,  que colige uma dúzia de histórias maravilhosas à manira de Lewis Carroll. "Não são obras-primas", explica Pierre Gould, "mas gosto muito delas. Acima de tudo, a minha admiração vai para as condições que o autor conseguiu impor ao seu editor; todos os exemplares do deu livro foram impressos às avessas e vendidos com um pequeno espelho fixado na sobrecapa. Para o lermos, temos de fazer com que as palavras se reflictam no espelho, em conformidade com a promessa do título. Possuo um exemplar desta raridade, mas com o espelho rachado."
Bernard Quiriny, Contos Carnívoros, Ahab, 2011

quarta-feira, 29 de junho de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

A partir do momento em que descobriu o milagre de uma noite inteira de sono e a enfermeira teve de o acordar para o pequeno-almoço, começou a sentir que o pavor diminuía. Tinham-lhe dado um medicamento para a depressão que não era o certo para ele, depois um segundo, e finalmente um terceiro que não tinha efeitos secundários intoleráveis, mas não sabia se lhe fazia algum bem. Não podia acreditar que as suas melhoras tivessem alguma coisa que ver com os comprimidos ou com as sessões com o psiquiatra ou a terapia de grupo ou a terapia artística, tudo exercícios que achava inúteis. O que continuava a apavorá-lo, à medida que se aproximava o dia em que teria alta, era que nada do que lhe estava a acontecer parecia ter que ver com nada. Como tinha dito ao Dr. Farr - e mais se tinha convencido depois de, durante as sessões com ele, ter feito tudo o que estava ao seu alcance para procurar uma causa - tinha perdido a sua magia de actor sem razão válida e foi do mesmo modo arbitrário que começou a desvanecer-se nele o desejo de pôr termo à vida, pelo menos por enquanto. «Nada tem uma razão válida para acontecer», diria ao médico nesse mesmo dia. «Perde-se, ganha-se - tudo é capricho. A omnipotência do capricho. A probabilidade da reviravolta. Sim, a imprevisível reviravolta e o seu poder.»
Perto do fim da sua estadia fez uma amiga, e sempre que jantavam juntos ela repetia-lhe a sua história. Tinham-se conhecido na terapia artística, e a partir daí costumavam sentar-se frente a frente numa mesa para dois da sala de jantar, a conversar como dois namorados, ou - dados os trinta anos de diferenças de idades - como pai e filha, embora o assunto fosse a tentativa de suicídio dela. No dia em que se conheceram - poucos dias depois da chegada dela - só estavam os dois na sala de artes com a terapeuta que, como se eles fosse meninos de jardim-escola, tinha dado a cada um umas folhas de papel branco e uma caixa de lápis de cera para brincarem e lhes tinha dito que desenhassem o que quisessem. Axler achou que na sala só faltavam as mesinhas e cadeirinhas. Para fazer a vontade à terapeuta, trabalharam em silêncio durante quinze minutos e depois, sempre para satisfazer a terapeuta, escutaram com atenção o que cada um tinha a dizer sobre o desenho do outro. Ela tinha desenhado uma casa com jardim, e ele tinha-se desenhado a fazer um desenho, «um retrato», disse à terapeuta quando ela lhe perguntou o que tinha feito, «de um homem que teve um esgotamento e se interna num hospital psiquiátrico e vai para a terapia artística e a terapeuta o manda fazer um desenho.». «E se tivesse de dar um título ao seu desenho, Simon, que título lhe daria?» «É fácil, " Que diabo estou eu a fazer aqui?"»

Philip Roth, A Humilhação, D. Quixote, 2011, pp. 22, 23, 24

DOIS POEMAS DE ADÉLIA PRADO

Salvador Dali
O PELICANO

Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.



CASAMENTO


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


in Poesia Reunida, 1991

sábado, 18 de junho de 2011


Élia Laranja, Vida e Morte
I
Hoje debrucei-me sobre uma ponta de morte,
no branco desmaio de uma mulher combalida
com os mesmos cabelos longos
os mesmos olhos fechados
a mesma distância do grito
que a do meu sono à vida.
Estava ali uma alma muito fechada, uma mancha escura,
um fulgor subtraído àquele rosto
de cujos cinco sentidos tão úteis não via rasto.
 
Sim. O corpo que antes se torcia para cima,
(um corpo a agitar vida é sempre girassol)
Que subia e que descia a escadaria da escola
por onde também eu subo e desço os meus dias
o corpo que desprendia frequentemente
a simpatia de um sorriso vindo mesmo de dentro,
cheio da força de dentes sãos ,
Estava agora mudo,
Era um inverno breve naquele
instante em que a ponta da morte se instalou
nos pulsos estendidos pelo cimento fora –
E foi tudo à minha frente como
uma paisagem de mar que não esperava.

Incompreensível como pudera ter caído
naquele chão frio,
uma campa quase a abrir-se. Vi.
Sei que empurrei a morte, apaguei-a várias vezes do chão,
com os dedos, muito rapidamente,
porque a entendi como um perigo
a desenhar-se em letras
(Aqui jaz fulana que já viveu, que já ensinou como eu).

Dei-lhe água com açúcar numa colherzinha metálica
Que lembrava a hora do café, o vício do cigarro,
E alguém que visse, percebia uma floreira
branca quase  a instalar-se por detrás dos gestos
que movia esperançada na vida, que
novamente bela e a piscar os olhos, chegaria.

Esperei aflita num silêncio rugoso.
E a morte insistia naquele chão,
agachada como eu, a olhá-la de perto,
bem nos olhos uma estrela em lume
a esfriar-se, perdendo a luz aguda, emudecendo (para sempre?)
Li-a como a um livro urgente. Muito silente.

Fiquei contente descompassadamente
quando aos poucos a vida inteira,
 por ela guardada certamente na garganta,
veio em palavras bem soletradas,
penosas e vagarosas, sem sinais de entoação -
estou bem estou bem –
 repetidas  frases que a ligavam à vida

Fez-se tarde para entender aquilo,
Tocou a entrada e o rebuliço nos pavilhões de pedra,
Ela foi embora,  inteira como uma pomba a voar
ferida e eu lembrei-me que mesmo na escola
a morte é impertinente, insiste
assim, à hora em que começa a aula.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

HÁ 123 ANOS NASCIA PESSOA

Foste tanto
                            Foste tantos
                                                            Como poucos
Tanto foste
                                 Tantos foste
                                                                       como ninguém
Pessoa és tu e apenas outros
tantos outros
que foram a partir de ti.

MANUEL ANTÓNIO PINA - A POESIA VAI


A POESIA VAI

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –


in Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011

sábado, 11 de junho de 2011

EXCERTOS QUE FICAM


A mulher tem a química dos animais e o pólen das plantas,
e da Grande Alma rouba o Apetite para multiplicar as coisas que nascem.
Os contágios são calmos.
Se uma flor voasse perdia o cheiro;
e se o pássaro tivesse aroma de rosa, de certeza seria coxo.
Porque o mundo se organizaou todo de uma vez e depois calou-se.
Ficámos nós, sós, e a Filosofia.
A pedra calada, o animal grunhe,
a erva cresce tão lenta que só a vemos quando ela é adulta, e os cães ladram debaixo do Sol.
Todos somos resíduos imperfeitos
e os organizadores do Baile saíram logo no início,
deixando a Música, mas não os passos.
Por isso tropeçamos,
partimos a unha má e boa,
apaixonamo-nos por uma mulher e depois já é outra,
e, no Fundo, o que queríamos era sossego e não dançar.
Do que temos medo é da solidão, temos de o reconhecer,
esse caixão que vem antes do tempo,
e nos fecha dos outros e do dia.
O que queremos é sossego;
nem Mistérios nem passos de dança,
apaguem a Música.


in Investigações Novalis, Difel, 2002

segunda-feira, 6 de junho de 2011

EUGÉNIO DE ANDRADE - PERTO DO MAR



PERTO DO MAR

O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas - altas, altas.

in O Outro Nome da Terra