Um excerto deste conto:
(…)
3.
Se, de um lado, do lado de fora da porta, a noite fazia, com a paisagem, uma paisagem nocturna, do outro lado a noite era uma estranheza obscena.
Neste lado meio-diabólico (palavra que representa o dobro da quantidade de maldade que existe num espaço apenas diabólico por inteiro. Meio-diabólico: ainda mais indefinível, pois), neste espaço então a paixão fazia abanar o pequeno globo que alguém colocara docemente sobre a mesa de jantar. Com o balançar que dos movimentos rápidos da fornicação passara para o soalho de madeira, depois para as pernas da mesa e por fim, para o globo, fazendo tremer, como nunca a costa de África, o centro da Europa, a América e todo o globo de uma forma solidária e sincronizada como jamais o mais poderoso terramoto conseguira.
Meio-diabólico, sim, mas que nomes tinham ele e ela?
Ela era uma prostituta que não lera uma das primeiras entradas do diário do seu companheiro; companheiro dessa localizada missão de tirar prazer das partes que nop corpo desde há milénios se especializaram nisso, em produzir prazer. Radislav Gunvaz Vujik: eis o nome do seu companheiro que, debaixo da data de 12 de Setembro, escrevera, de uma forma que só mais tarde se percebera o quão explícita era e, ao mesmo tempo, tão ambígua: GOSTO DE SANGUE, gosto de sangue, gosto de sangue.
4.
A fornicação prossegue, apesar de ninguém a poder ver pois o que vemos são apenas os seus efeitos que nada têm de simbólicos. Eis o globo na mesa, abanando. Oceano Atlântico, o Mediterrâneo, o Pólo Sul, o Pólo Norte, a Rússia, como ela treme, toda a Mongólia treme – nem de transiberiano se vê a Sibéria assim, como se tivesse frio, tremendo. Como fornicam, Radislav Gunvaz Vujik, um homem que, com 18 anos, percebera que gostava de sangue, e essa mulher, uma prostituta que fora encontrada por Vujik numa esquina do centro de Belgrado.
(…)
Contos de Vampiros, coordenação de Pedro Sena-Lino, Porto Editora
Com este conto do vampiro de Belgrado, Gonçalo M. Tavares chupou todo o sangue aos parceiros-contistas que também nos contam histórias, que valem sempre a pena ler (embora a pena seja outra!), em sucessivas páginas com uma cruz impressa a negro no canto superior direito a arredar qualquer possível atentado canino contra o leitor. O imparável M. Tavares deu tudo o que tinha neste pequeno conto, aliás, como já é o seu costume em qualquer narrativa curta (ou longa!) por que se decida. A sua originalidade é realmente invencível.
Deixo uma prova irredutível de que existe, sem querer ferir qualquer um dos outros escritores representados nesta antologia, (e conforme Saramago escreveu no seu Caderno, tão perspicaz!) na Literatura Portuguesa um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Tão feliz fico por ser sua contemporânea…
É difícil encontrar quem descreva tão bem um momento de “fornicação”, que muitas vezes fere e atrai o leitor em simultâneo pela rudeza descarada das palavras, dos gestos (que os narradores exibem pensando que na literatura tudo cabe, pegando em corriqueiras e nojentas palavras da família do verbo “fo…”, descrevendo gemidos, esgares, corpos em erupção, olhos revirados, centrando a sua atenção naquilo que o leitor já visualizou…) O narrador de M. Tavares é inteligente como o seu autor (não gosto de endeusar ninguém, mas esta é a verdade!)…descreve o acto sexual, descentrando a sua descrição do óbvio, do rotineiro, construindo um ambiente de excitação completamente novo, transferindo todo o orgasmo para os países de um globo que periférica e metonimicamente também explodem de prazer… E é assim, diria, quase diabolicamente, que este escritor concebeu a introdução dos personagens do conto, revelando aos poucos, em repetições que tocam a infantilidade (acho fabuloso este aspecto da narração), as suas identidades, os seus segredos, os espaços privilegiados em que ambos actuam e habitam … enfim, assim, não me canso de pensar, que vale a pena ser leitora
P.S: Vale a pena comprar a revista Máxima do mês de Fevereiro para ler a Crónica Visual que Gonçalo M. Tavares assina. Vi a revista e li a crónica num hipermercado, desconfortavelmente em pé e rodeada de vultos que desfolhavam, vorazes, outras publicações, apercebendo-me de que ele inibe toda a necessidade de vislumbre de beleza naquelas páginas coloridas e cheias de objectos e pessoas ultra-modernes, toda a tentação de achamento da última novidade, apenas com as suas palavras. Com a sua sensibilidade literária. Aquela página, apercebi-me, da crónica de que te falo, destruiu qualquer possibilidade de interesse das restantes páginas da revista. A página da crónica é irredutivelmente poderosa, contém as possibilidades de todas as imagens das restantes tristes folhas consagradas maioritariamente à mode e ao fait-divers. Não comprei a revista nessa tarde de sexta-feira porque estava lá para comprar outras coisas urgentes. Não programei aquele encontro tão rico. Arrependi-me de não comprar a revista. De deixar para trás a Crónica Visual que não consigo encontrar na Net.