quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

POESIA



Digo
Quem sou eu
Eu ou os meus poemas?
Tu - dizes.
Poesia e eu
Quem é quem? – repito
Tu – dizes.
E torno
Quem a essência?
Arrisca. Diz-me.
Poesia, eu?
eu, Poesia?
- Poesia. Dizes.
Então, vai.
Mata-a e, depois,
toma-me nua,
Serei tua, eu.

POEMAS QUE FICAM


POETA

Ser poeta é
quase
quase
deixar de Ser.
É se diluir
pra pertencer.
É o gozo do
aperto do leito
das palavras
das grafias
e do divino ritmo.
Ser poeta é
Ser Rio
virando Mar.

Deka Purim, Rio Virando Mar, Instituto Açoriano de Cultura

CANÇÕES MEXICANAS - GONÇALO M. TAVARES


O "romance da maldade" escrito no estilo singularissimo de Gonçalo M. Tavares. Como e possivel gostar das historias tão impregnadas de mal, de violência que este narrador europeu nos conta, a proposito da sua estada no Mexico, num estilo de conversa intima? O absurdo a tocar tudo o que descreve, o absurdo a fazer pensar no que se vê e no que esta muito para alem do nosso olhar - a suscitação de reflexões constantes assentes numa imaginação perturbadoramente enraizada no real mexicano, alguns episodios perturbadores que se concebem para não compreendermos o ser humano. Concebidos simplesmente para nos sentirmos abalados nesses cantos de extrema crueldade que nos escapa e que por ser extrema, acaba, não sei como, por se tornar um desapontamento impregnado de crua beleza. O ser humano numa situação extrema de humilhaçao e medo torna-se outro ate se ver livre do perigo da morte.
Um livro que nos obriga a pensar no absurdo. Ganhamos ao absurdo, lendo-o, captando-lhe o mal. Captando-o, sem nunca o compreender. Essa sombra da maldade humana sera sempre aliciante porque toca numa loucura inconcebivel e por isso admirada pelo leitor como um ângulo raro. M. Tavares, um  mestre da escrita neste retrato do Mal.

Um excerto que sei que gostaras, Ana Bela Ana:

A queda
 Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como u fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

SHORT MOVIES - GONÇALO M. TAVARES


Com uma capa tão bonita como esta,  não dá vontade de avançarmos para os textos que ela encobre, não fosse o nome do autor, GMT, uma garantia de qualidade singular. Alguns textos geniais:

O JOGO
Um banquete tumultuoso, comida e vinho a passar de um lado para o outro. Pessoas a gritarem, risos, pessoas em pé, outras sentadas. No meio da mesa do banquete dois homens jogam um jogo de tabuleiro – estão totalmente concentrados nele e alheados da confusão. Não têm pratos nem copos, apenas o tabuleiro à sua frente – as peças, umas pretas, outras vermelhas. Talvez nenhum dos convidados do banquete saiba, e talvez nem sequer os dois jogadores saibam, mas quem ganhar aquele jogo de tabuleiro poderá matar uma pessoa que está naquela sala, uma pessoa à sua escolha. Foi isto que decidiu o dono da casa, que não se vê em lado nenhum. O vencedor merece um prémio, e é este o prémio: pode matar quem quiser.
O vencedor do jogo ainda não sabe, mas vai aceitar o prémio, claro. Entretanto, como o jogo ainda decorre, o banquete também continua e há tantas pessoas alegres, há tantos risos, que até parece estranho pensarmos que um daqueles que agora devora patas de animal e ri às gargalhadas, que será um desses a ser assassinado daí a poucos minutos. Os banquetes são estranhos, sempre foram, mas aquele é ainda mais estranho por causa daqueles dois jogadores.

 A NOTÍCIA
A mulher está a ler o jornal, as mãos tremem.
Há uma qualquer notícia que a perturba. Não vemos o que é, só vemos a força com que ela amarrota o jornal, e depois o modo como o endireita outra vez e se dirige ao quarto. Pega na almofada, abre a fronha e põe lá dentro o jornal.
Alisa a almofada e coloca-a no sítio em que estava antes, como se nada fosse. Sai do quarto.
Fez aquilo como alguém que quer provocar pesadelos noutra pessoa. Quem dorme naquela cama, e que notícia assustou tanto aquela mulher?

A LOUCA
Um fotógrafo tira fotografias a uma louca. O fotógrafo diz que nem o melhor actor consegue ter a expressividade do rosto de uma louca. E por isso não pára. Mesmo quando a louca diz não com a cabeça, não com a boca e, por fim, não com o dedo.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

EUGÉNIO DE ANDRADE - POESIA E PROSA


Os dois volumes da obra de Eugénio de Andrade, editados pela Modo de Ler, são ambos uma autêntica preciosidade. Poesia Reunida e Prosa Reunida são livros tão belos como as pessoas que deles me possibilitaram um presente. A prosa é de um poeta por isso leio-a cheia de poesia. Cheia de sabedoria e claridade nas coisas.  O volume Poesia traz muitas mais  luzes lá dentro. Luzes que só tremeluzem diante da abertura desmedida a todas as palavras simples, a todas as raízes da nossa linguagem. Dessas luzes primordiais desprende-se para cima das minhas mãos, para dentro dos meus olhos, a essência de que se faz o Poema. Aqui ler a Poesia é sinónimo de amar a poesia.

TRÊS POEMAS DA ANTOLOGIA:

ENQUANTO ESCREVIA

Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com seus antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos doutro corpo estendido ao lado? Já não me lembro, passava os dias a dormir à sombra daquela árvore, era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede.

A BEIRA DE ÁGUA

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo, dói tanto! Todo o amor. Até o nosso, tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

in Poesia, Eugénio de Andrade, Modos de Ler

LIVROS QUE FICAM

Maravilhoso, O Corpo Enquanto Arte é um exercício literário e filosófico que por isso mesmo deixa o leitor na dúvida até ao fim: o que apreciar em primeiro lugar? Que beleza? A da lingua no estilo depurado e essencial de DeLillo ou a das suas questões existenciais (quase inexistentes no nosso século tão limado de inteligência em tudo!), da sua voz interior que aponta em todos os momentos para a essência do tempo, do amor, da solidão de que todos somos feitos e, a partir desta riqueza reflexiva, a necessidade do corpo perante o abandono, a entrega da consciência ao desconhecido até ao limite do desejado, enfrentando (mas adiando) o vazio provocado pela morte da pessoa mais importante. Que difícil é avançar de beleza em beleza...Um excerto:

«Por que não há-de a morte de uma pessoa que amamos arrastar-nos para a mais lúgubre decadência? Não sabemos como amar aqueles que amamos até ao dia em que eles desaparecem abruptamente. Só então nos apercebemos daquela pequena distância em relação ao seu sofrimento que poucas vezes soubemos superar, do modo como nos resguardámos, como só raramente abrimos o nosso coração, sempre a tecermos as nossas ideias de deve-e-haver.
Ela alimentava estas ideias com todas as partes do seu ser. Olhos, mente e corpo. Percorria as ruas inclinadas da cidade sem dar nas vistas, a acalentar estas ideias, ia comprar produtos de mercearia e ferragens e embrenhava-se nestes pensamentos até um certo ponto, parada no longo corredor, no meio das fechaduras, ferramentas e objectos de vidro.
Por que é que a morte dele não havia de te mergulhar em paroxismos de dor, fazendo-te perder a compostura e rasgar as roupas, aos gritos? Porque havias de te adaptar a essa merda? Ou renderes-te a ela de lábios cerrados, num luto elegante? Porquê esquecer Rey se podes ir até ao fundo do corredor e encontrar a forma de o trazer para junto de ti?
Mergulha mais fundo, pensou. Deixa que a morte te arraste para as profundezas. Vai onde ela te levar.
Por vezes as suas reflexões faziam-se destes incitamentos, dirigidos a alguém que não era bem ela própria. Outras vezes, recorria a outras fórmulas. Pensava em rostos a pairarem no ar, mesmo diante das órbitas dos seus olhos, o do homenzinho desaparecido quando conseguia recordar-lhe as feições.
Chamo-me Lauren. Mas cada vez menos.»

in O Corpo Enquanto Arte, de Don DeLillo, Relógio d'Água, pp. 116, 117

domingo, 6 de novembro de 2011

LER É EXIGIR


Ler é exigir de ti
querer que me leias
nestas tantas letras (e tretas)
o sorriso a canção o mimo a ilusão 
como se me visses no espelho
e mesmo no inverso do que sou -
uos euq od osrevni on omsem e -
não encontrasses nada fora de mim.

RUY BELO - TU ESTÁS AQUI

Tu estás aqui
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                    o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                  outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso 
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
                                                                                        que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
                                                                                        outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto 
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto 
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos 
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                   a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui 
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui



in Toda a Terra, Todos os Poemas, de Ruy Belo

domingo, 30 de outubro de 2011

PRÉMIO JOSÉ SARAMAGO 2011

O início do primeiro capítulo:



«Serra Morena é íngreme, úmida e fértil.
Aos pés dela vivem os Malaquias, janela com ta- manho de porta, porta com autoridade de madeira escura.
- Corre, Adolfo!
Donana pedia ajuda ao marido,ele cravou o machado na lenha e foi acudir. A bacia brilhava no fundo da cisterna, Adolfo desceu a corda com o balde amarrado na ponta, o encaixou na bacia e fo arrastando-a de volta pela parede. A mulher não fazia mais o pesado, com osso quebradiço, passou a benzer espinha de criança e com reza ganhava fubá, café e leite. Branca rosada, lábio fino. Tirando os Malaquias, os habitantes eram pardos como mamíferos silvestres.
As crianças fizeram um círculo em torno do poço, o lençol freático refletia três pares de mãos,
cada par moldurando dois brilhos e um nariz: Nico tinha olho azul, nove anos. Antônio, miúdo, seis. Júlia, barriguda, quatro.

Todos se recolheram,a noite ia grossa, o vento afrouxava as janelas. As telhas vibravam, num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam em um quarto. Nico, Júlia e Antônio em outro, na mesma cama, aninhados em forma de embrião.
Um gato aninhou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, acasa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias.O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, pai e mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a

árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo.
Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso dilatado não perturbou o curso da electricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem
afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis. (...)»

Andréa del Fuego, Os Malaquias, Língua Geral, 2010
















sábado, 29 de outubro de 2011

JOSÉ LUÍS PEIXOTO - GAVETA DE PAPÉIS


2 poemas a que me rendo:

1
Sozinho, chego a uma cidade saqueada
e caminho com vagar, os braços quase
parados, olho para as portas abertas,
o que sobrou está espalhado nas ruas,
o ar é limpo porque ninguém o respira,
esta cidade, este silêncio, esta cidade,
tenho na pele do rosto o contrário
do choro de uma criança, esse tempo
já passou, tenho tranquilidade séria
e erosão porque esta é a nossa cidade
e porque sei que não te vou encontrar
quando chegar a casa, minha mãe. 

2
PIRÓMANO

A situação é esta: os campos eram puros e limpos,
eu ateei muitos fogos, tinha fósforos e gasolina,
agora estou no exacto centro de todos eles,
cercam-me por todos os lados que não existem
para fugir, e espero pelo incêndio, apenas espero.

sábado, 22 de outubro de 2011

GONÇALO M. TAVARES - O SENHOR KRAUS

Estava um daqueles dias frios e respirar tornava-se um acto público, uma coisa visível.
- Ninguém respira discretamente nestes dias de muito frio - disse o Chefe.
E era verdade: a expiração de qualquer indivíduo abria um sulco no ar, como se o ar fosse pintado ou riscado com uma outra cor. A respiração naqueles dias já não era um acto privado ou partilhável somente por casais apaixonados. Respirar era como que um discurso, só que num volume mais baixo.
- Expirar torna-se quase tão visível como cantar.
- É verdade.
- Como uma voz que não fala. - disse o Chefe.
- A sua respiração tem, de facto, um aspecto magnífico! - disse o Auxiliar, de repente, como se tivesse acabado de se lembrar de algo.
O Auxiliar continuou:
- Vossa excelência, nestes dias de frio, nem precisa de dizer nada. Só pelo aspecto do ar que sai do interior de Sua Excelência falaria como nunca. Esse seu ar é magnífico! - repetiu.
O Chefe agradeceu, procurando apresentar uma cara modesta. Ele era bom nisso; como um malabarista: o Chefe sabia fazer caras. Tinha-as guardado algures como se guardam pequenos papéis no bolso com números de telefone. Quando se precisa de um número lá se procura nos bolsos o papel certo. Com ele era igual: procurava dentro de si a cara apropriada ao momento. E demorava apenas uns milésimos de segundo a encontrar a coisa. Estava treinado.
- Você exagera - disse para o Auxiliar.
- Não, não, é magnífica. Ninguém expira assim!
Na verdade, o Chefe ouvia estas palavras como alguém que ouve que dois mais dois são quatro. Alguém lhe dizia o óbvio: ele era excelente sobre sob todos os pontos de vista, e a sua respiração - em particular a expiração - era magnífica! Ele sentia, de certa maneira, que o mundo concreto, a natureza, os elementos da atmosfera, deveriam, em conjunto, se falassem e fossem delicados, agradecer-lhe esse brilhante modo de expulsar dióxido de carbono. Ninguém expulsa o dióxido de carbono como eu, pensava o Chefe. Contudo, para fora, recuperava as frases modestas:
- Você exagera, Auxiliar. A minha expiração é simplesmente ar.
- Ar?! - exclamou o Auxiliar. - Não, nada disso. É outra coisa. Há algo na forma como a sua expiração se destaca do resto da atmosfera que lembra histórias da mitologia antiga. Há qualquer coisa de secreto e misterioso.
O Chefe estava a gostar de ouvir o Auxiliar, aquela música embalava-o, por assim dizer. De facto, tinham subido pelas escadas até ao 4º andar e ele mal dera por isso.
Ele descobria, então, naquele momento, uma lei que misturava o mundo da fisiologia e da psicologia: ser elogiado faz esquecer a fadiga. Se um tipo - pensava o Chefe para si próprio - for sendo elogiado durante todo o caminho, sobe, nas calmas, a pé até ao topo da Torre Eiffel. Gostou tanto desta ideia que até parou para a escrever num bloco de notas. Quando tivesse tempo, venderia aquele raciocínio a atletas necessitados.

in O Senhor Kraus, pp. 113, 114, 115

ANA LUÍSA AMARAL - VOZES

DOIS POEMAS:

A noite invade,
agora

Como disse uma vez:
nem tu, Ícaro, nem nada

Fui eu que o apaguei,
ao sol,
ao longo das palavras,
num advérbio
longo:
irredutivelmente

Depois o acendi
mais uma vez,
como uma lâmpada
de milhares de watts

E todavia,
aqui,
nesta cidade,
devendo haver cinzento
e chuva,
ele teima em brilhar

Quem
o mandou ligar,
ao sol,
se eu o queria
apagado?

Resta-me só
sinestesia
e pouco mais:
talvez falar do mito
e imitar com Ícaro
o medo
ou a alegria
que o chão traz -

_____________________________________________

Eterno é este instante, o dia claro,

as cores das casas desenhadas em aguada rasa,
castanhos e vermelhos quase em declive,
as janelas limpíssimas, os vidros muito honestos.
este instante que foi e já não é, mal pousei a caneta
no papel: eterno


Sonhei contigo, acordei a pensar
que ainda eras, como é esta janela,
como o corpo obedece a este vento quente, e é ágil,
mas tudo: tão confuso como são os sonhos


Agora, neste instante, recordo a sensação
de estares, o toque.
Não distingo os contornos do meu sonho, não sei
se era uma casa, ou um pedaço de ar.
A memória limpíssima é de ti
e cobriu tudo, e trouxe azul e sol a esta praça
onde me sento, organizada a esquadro,
como as casas


E agora, o teu andar
acabou de passar mesmo ao meu lado, igual,
e agora multiplica-se nas mesas e cadeiras
que cobrem rua e praça,
e eu vejo-te no vidro à minha frente,
mais real que este instante, e se Bruegel te visse
pintava-te, exactíssima e aqui.
E serias: mais perto de um eterno


(Eu, que nada mais sei, só o fulgor do breve,
eu dava-te palavras - )


In Vozes, D. Quixote, pp. 33 e 116

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

...em dia de felicitação...

FELIZ ANIVERSÁRIO!

...és parte de mim...

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

«Törless olhava vagamente pela janela para o jardim vazio, onde já ia anoitecendo.
Beineberg falava. Da Índia. Como de costume. O pai, que era general, prestara aí serviço no exército britânico, ainda jovem oficial. E não se limitara, como a maior parte dos europeus, a trazer de lá esculturas, tecidos e pequenos ídolos fabricados em série; sentira e guardara também em si alguma coisa do misterioso, bizarro e já crepuscular budismo esotérico. E passara ao filho, desde a infânca aquilo que aprendera e mais tarde ainda fora lendo sobre a matéria.
Era, aliás, um caso singular no que às leituras se refere.
Era oficial de cavalaria e não apreciava livros. Desprezava igualmente romances e filosofia. Quando lia, não queria ser obrigado a reflectir sobre opiniões e polémicas, mas sim, logo ao abrir o livro, entrar, como por uma porta secreta, no âmago de conhecimentos específicos. Tinham de ser livros cuja simples posse fosse já uma espécie de sinal iniciático de uma ordem e garantia de revelações sobrenaturais. E só encontrava isso nos livros da filosofia indiana, que para ele não pareciam ser apenas livros, mas revelações, coisas reais - chaves de mistérios, como os livros de alquimia e magia da Idade Média.
Este homem sadio e activo, que cumpria rigorosamente os seus deveres e para além disso montava quase diariamente os seus três cavalos, isolava-se com esses livros, quase sempre ao cair da noite.
Escolhia então uma página ao acaso e pensava se seria nesse dia que o seu mais secreto sentido se lhe iria revelar. E nunca ficava decepcionado, ainda que muitas vezes tivesse de reconhecer  que não passara do propileu do templo sagrado.
Assim, pairava à volta deste homem enérgico, queimado do sol e do ar livre, qualquer coisa como um mistério solene. A sua convicção de que a cada dia se encontrava nas vésperas de uma revelação grandiosa e retumbante dava-lhe uma secreta superioridade. Os seus olhos não eram sonhadores, mas tranquilos e duros. A sua expressão tinha sido formada pelo hábito de ler livros em que nenhuma palavra podia ser retirada do seu lugar sem alterar o sentido oculto, pela ponderação prudente e atenta de cada frase em busca de sentidos e duplos sentidos.»

Robert Musil, As Perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote

sábado, 10 de setembro de 2011

SYLVIA BEIRUTE - UMA PRÁTICA PARA DESCONSERTO

Gosto dos poemas frios de Sylvia Beirute. Gosto particularmente deste poema que distancia o leitor do poeta pelo decreto (ou intuição) de uma morte mais rápida, mais inteira para com aquele que apenas lê. Gosto da imodesta sinceridade deste eu poético que afirma querer tudo para si no presente. Que atira o futuro para trás das costas, irreverente e insaciável.

LEITURA EXPLÍCITA
{talvez um dia regresse à voz do leitor.}
o leitor morre mais depressa que o poeta.
quero os meus poemas a morrerem
daqui a cem anos
no último fio de voz do primeiro leitor imediato
e numa altura em que todos os livros
subirão aos céus.
não quero o prazer de haver sido distante
num tempo distante. quero o prazer
de ser imediata e soberba
num tempo imediato e arrogante.
quero manufacturar tudo o quanto de pescoço há
na representação.
porque o tempo futuro é um encolher de ombros,

e nos meus poemas as razões se limitam
a retirar razões a outras razões.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

ABRO A PORTA


Abro a porta à minha rua muitas vezes por dia.
Ela acaba por ser convidada como tantos outros.
Gosto dela e dos passeios cobertos de árvores chiantes
(que mais não são do que museus de pássaros que espreito)
que por acaso também entram e se sentam frondosas de melodias
no sofá comigo. Deixo-a percorrer a casa de memórias e de vento dos vales
 pois a rua não é só estrada, tem passeios de histórias e uma vida intensa
 que vem de longe. Uma verdadeira calçada de espasmos. 
Sei que se prostitui na noite e não a julgo. Sei que a solidão lhe dói e não sabe ser
senão de todos. Vejo-a delicada na entrada comum, depois de tocar à campainha.
 Insinuante mas educada na invasão que me impõe.
 Convido-a a entrar intrusa e imensa e vejo-lhe a infância quando se levanta e corre
 à varanda a espreitar o vazio que deixou lá fora. Ao longe vê outras ruas vizinhas
que não a reconhecem mais perto do sol, mais alta de ruídos, mais livre de passantes.
De noite custa-me mais deixá-la entrar pois não a vejo bem em alcatrão e
temo que com ela assaltem estranhos esta casa que lhe abro só a ela, à minha rua,
na montanha distante. Mas há noites que se sinto o seu silêncio  mais restrito
a abraço com uma palavra que corta a mágoa da pouca luz que traz. Sim, deixo-a
entrar vadia e só.  A casa fica outra com a rua deitada dentro e essa dispersão
 confusa faz-me adormecer mesmo sem saber se estou dentro ou fora dela.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

NO MEU PEITO NÃO CABEM PÁSSAROS


Linda amiga,
no meu peito não cabe o encanto que encontro  neste livro de estreia de Nuno Camarneiro(graças à tua generosidade!), um físico que, como tu, deve ter um deslumbramento pelo CERN, onde já trabalhou (tens a certeza de que nunca foi ele que te recebeu nas tuas visitas?) .
Partindo da beleza deste título que, de resto,  é um verso genial de Pessoa (a selecção de um verso bom entre tantos bons também tem o que se lhe diga!), não encontrei pedregulhos de decepção em nenhuma das páginas que percorri...Acho que contorno um senhor autor da língua portuguesa.
Entre as vidas fabuladas de Karl Rossman (personagem de "América" de Kafka) e dos escritores Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa há um grande espaço de dominação de uma linguagem literária feita da nossa língua que convém destacar como soberbo e que remete (juntamente com um ideário original e inteligente) as histórias e o seu entrecruzamento para um segundo plano. Vejo mestria em muitos momentos desta narrativa. Sinto a leitura como uma verdadeira bebida literária.Muito poética também em muitas rectas da escrita.
É uma felicidade encontrar Pessoa refeito pelas mãos de alguém que merece reescrevê-lo. Vejo muita coragem nisto. Obrigada linda amiga por quereres ouvir de mim o que te digo com tanto gosto e alegria.


Deixo o excerto que nos situa juntinhos à chegada  de Fernando Pessoa à nossa capital. Tive dificuldade em escolher o excerto pois cada um me pareceu melhor do que outro, assim que apostei neste por ser um dos primeiros. Espero que também tu gostes de ler. Sei que sim:




Lisboa

Uma outra vida à espera no cais. Tias engalanadas em lenços de seda e luvas brancas como mãos de porcelana. Vamos lá ser menino com um sorriso que é de cara e não é de mais nada.

A viagem chegou ao fim e Lisboa é o fim do mar.

Junto às tias e a esta terra, tudo volta a ser pequenino. O sufixo parece ser anterior às palavras, o menino está cansadinho, a viagem foi boazinha, está tão branquinho, coitadinho. Portugal é assim diminutivo e manso. O que foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas, os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?

Os passageiros descem as escadas e alteram-se a cada passo, passam a ser filhos, sobrinhos, maridos e mães. No barco cada um foi o que quis e pôde, feito à medida de sonhos e frustrações, personagem entre actos, entre o ter partido e o ainda não ter chegado. À saída a vida não permite já devaneios e um nome dito por quem o diz é um grito de realidade.

Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça de inventar filosofias. Agora é sobrinho das tias e dá beijos e abraços. Há um grande conforto no encontrar o que se espera e uma coisa deve ser sempre aquilo que é. Lisboa é Lisboa, as tias são as tias e faz calor porque o Verão ainda não morreu.

A capital é um país de boca aberta para o rio, uma cidade a cantar modas de outro tempo, sempre de outro tempo. Em Portugal inventou-se o viajar no tempo, mas sempre para o passado, sem nunca se sair de onde um dia se partiu.

As ruas passam pela janela do carro, há gente que caminha, gente que vende e gente que leva objectos de um sítio para outro. Há muitos pobres mal vestidos e há também muito ruído de vozes gritadas e rodas na calçada. As tias fazem perguntas que se vão respondendo com sim, não e mais ou menos. As tias têm medo de um silêncio que não existe, são mulheres educadas e boas que penteiam os cabelos de Fernando quando lhes faltam ideias ou palavras.

Os cavalos puxam o carro e Fernando sente-se puxado pelas tias, levado a trote para uma casa que ainda não é sua e nem chegará a ser. Os cavalos e as tias conduzem-lhe o destino sem lhe perguntar nada, é uma surpresa para o menino embrulhada numa rua de Lisboa. As tias são mulheres sérias que lhe imaginam uma vida direita.

A rua das tias tem árvores a todo o comprimento e há beleza nisso, as árvores são próximas do silêncio. Os cavalos param, o carro pára e durante alguns segundos tudo fica tranquilo como um quadro antigo que se pode e deve admirar.

O cocheiro sobe as escadas com a mala apoiada nas costas, seguem-no as tias e depois Fernando que conta os degraus. Habituou-se a medir as distâncias em passos para que o corpo as possa entende. As milhas e os metros são unidades da cabeça, já os passos são quedas pequenas que o corpo aprendeu a aparar. Da rua ao vestíbulo são vinte e oito degraus e duas pernas cansadas de tanta viagem.

A casa cheira a sopa e a alfazema, os móveis têm formas austeras e por todo o lado se encontram rendas e bordados de mulheres sem marido. Fernando senta-se e olha em volta, aturdido. Bebe da água fresca que lhe trazem e permanece imóvel e tímido à espera de que alguém diga alguma coisa. As tias sorriem porque estão contentes e estão em casa e Fernando sorri também.



Nuno Camarneiro, No meu Peito não Cabem Pássaros, D. Quixote, 2011

quarta-feira, 10 de agosto de 2011



O meu sentimento é cinza
Da minha imaginação,
E eu deixo cair a cinza
No cinzeiro da razão.

F. Pessoa


terça-feira, 9 de agosto de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

Linda amiga, é este o excerto de que te falei e onde podes, agora, ver com os teus próprios olhos a ideia magnífica que teve  valter hugo mãe de tornar a personagem esteves, um velho que coabita o "lar da feliz idade" com antónio silva (a personagem principal do romance), no "Esteves sem metafísica" do poema Tabacaria de Álvaro de Campos. Um excerto que me ficou pelo tanto riso que me provocou...Aqui (pp. 61, 62) pensei que já tinha valido a pena meter-me a ler este livro. E isto foi apenas um começo para esta personagem... Ora lê pois vais certamente gostar:

«...surpreendeu-me o senhor pereira que, como se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância. e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças. está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro, o que diz você, perguntei. ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa. e eu respondi, não digas asneiras. tem quase cem anos. ó esteves, ó esteves, anda aqui, chamava o senhor pereira todo animado. o outro estava cheio de energia na discussão em que se metera e não fazia caso. o meu companheiro dizia, é verdade, é ele. vai fazer cem anos, já viu como anda aí de pé. um mito da nossa poesia, é do caraças. e depois o esteves lá se desenrascou da conversa e apareceu à nossa beira a perguntar o que lhe queríamos. o senhor pereira mandou-o sentar-se novamente e muito divertido pediu-lhe, ó esteves, conta aqui ao senhor silva como foi que te meteste num poema do fernando pessoa. o homem arregalou os olhos e riu-se respondendo, isso já toda a gente sabe, já o contei mil vezes. e o senhor pereira insistiu, mas o senhor silva não sabe e nem sequer está a acreditar em mim, não vou passar por mentiroso. ai que treta, disse eu, este lar está cheio de velhos tolos. pus-me para diante na cadeira, a encarar o velhote com uma antecipação enorme e ele atirou-se para dentro dos meus olhos e confirmou, sim, é verdade. eu vivia em lisboa e ia sempre àquela tabacaria. é verdade sim. os meus ouvidos afundaram incrivelmente no insondável da cabeça e eu fiquei só a ver aquele rosto. o rosto de um homem com mais quinze anos do que eu, sorridente, aberto, limpo ao mesmo sol que nos cobria, e era como se o próprio maravilhoso genial lindo fernando pessoa ressuscitasse à minha frente, era como dar pele a um poema e e trazê-lo à luz do dia, a tocar-me no quotidiano afinal mágico que nos é dado levar. era como se alice viesse do país da fantasia para nos contar como vivem os coelhos falantes e as aventuras de faz-de-conta. e eu voltei a ouvi-lo dizer, mas eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos roubarem a alma não é coisa decente, porque aquilo da poesia leva muita mentira. sorri. sorri verdadeiramente como nunca até ali naquele lar. e o senhor pereira olhou para mim radiante e afirmou num triunfo, isto sim, agora, é o lar da feliz idade.» 

valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis, alfaguara, 2010

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Companheiros da alma

Para ti, doce Pat, igualmente a minha companheira da alma...um pequeno poema... simples...do José Fontinhas ou deverei dizer Eugénio de Andrade?


Os livros

Os livros. A sua cálida
Terna, serena pele. Amorosa
Companhia. Dispostos sempre
A partilhar o sol
Das suas águas. Tão dóceis
Tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua branca e vegetal cerrada
Melancolia.
Amados
Como nenhuns outros companheiros
Da alma. Tão musicais
No fluvial e transbordante
Ardor de cada dia.

FÉRIAS


O poema cresce nas férias
adensa o corpo estica o dorso
absorve o lugar de praia a todos
engole o mar aos poucos e poucos
E fico só eu e o poema deitados
sem areia sem horizonte ao sol
sem referências de nada mais
pois o poema é tudo.

domingo, 17 de julho de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA


ARTE POÉTICA

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes, Um Jogo Bastante Perigoso

domingo, 10 de julho de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA


Magritte, Os Amantes
Sonho

Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Num poço ou num cristal me debrucei.
Só no teu rosto a morte me alcançava.

De quem a morte, por terror de mim?
De quem o infinito que faltava?
Numa casa de vidro vi meu fim.
Numa casa de vidro me esperavas.

Numa casa de vidro as persianas
desciam lentamente e em seu lugar
a noite abria o escuro das entranhas
e o teu rosto morria devagar.

Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Fiz do teu corpo sonho e não olhei
nas palavras a morte que guardavas.

Descemos devagar as persianas,
deixámos que o amor nos corroesse
o íntimo da casa e as estranhas
cerimónias do dia que adoece.

Numa casa de vidro. Num espelho.
Na memória, por vezes amargura,
por vezes riso falso de tão velho,
cantar da sombra sobre a selva escura.

Numa casa de vidro te sonhei.
No vazio dessa casa me esperavas.

Luís Filipe Castro Mendes, Os Amantes Obscuros

sexta-feira, 8 de julho de 2011

TRÊS POEMAS QUE FALAM DE AMOR


ESTA AREIA FINA - FERNANDO ASSIS PACHECO

Não sei
se o que chamam amor é este apaziguamento.
Não sei se comias fogo. Tuas abelhas
voam agora em círculos tranquilos.
Mães serenam seus filhos no ventre,
não sei se o que enfim chamam
amor é esta areia fina.

Agora estamos um dentro do outro,
fazemos longas visitas deslumbradas
porque «o nosso prazer lembra um rio vagaroso
no meio de juncos ao cair da tarde.»

As palavras tornam-se esquivas. Com o silêncio
falaríamos melhor de tudo isto.
Não sei se o que chamam amor
é a cama desfeita o sol fugindo,
uma vontade louca de beber
a grandes goles a noite entorpecente.

Com o silêncio, o silêncio sem nome:
morrermos a meio do filme
simples, calada, delicadamente.
Eras tu, amor? — Era eu, era eu!

Um barco junto à margem. E cegonhas.


FLORES DO VERÃO - GASTÃO CRUZ

Estás no meio das árvores dos
pássaros das
sombras no regresso da praia
as flores do verão também estampadas
na solidão da saia outras crescendo
naturais sendo umas o futuro e as da
natureza
o momento presente a estampa que
te envolve saindo
dos arbustos movidos pla leveza
imperceptível quase do espírito
ar
que virá um dia
transformar-te
como do rés da terra um vento baixo
subindo ao peitoril onde te inclinas
para as
flores do verão ainda



CÂNTICO - JOSÉ RÉGIO


Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa... nua

ante a minha vigília, a noite, e a lua,
ela, agora, descansa, adormecida.
Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...
enquanto o luar a numba, inerte, gasta
da ternura feroz do meu amplexo.
Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
e eu pouso a boca, religiosa e casta,
sobre a flor esmagada do seu sexo.


in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores

quarta-feira, 6 de julho de 2011

CONTOS DE CABECEIRA

RUÍDO DE PASSOS


Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das arvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou- o espantada.
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?
- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
- Não há remédio, minha senhora.
- E se eu pagasse?
- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
- E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?
- É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até à benção da morte.
A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.

in Contos de Clarice Lispector, Relógio d' Água