sábado, 22 de outubro de 2011

GONÇALO M. TAVARES - O SENHOR KRAUS

Estava um daqueles dias frios e respirar tornava-se um acto público, uma coisa visível.
- Ninguém respira discretamente nestes dias de muito frio - disse o Chefe.
E era verdade: a expiração de qualquer indivíduo abria um sulco no ar, como se o ar fosse pintado ou riscado com uma outra cor. A respiração naqueles dias já não era um acto privado ou partilhável somente por casais apaixonados. Respirar era como que um discurso, só que num volume mais baixo.
- Expirar torna-se quase tão visível como cantar.
- É verdade.
- Como uma voz que não fala. - disse o Chefe.
- A sua respiração tem, de facto, um aspecto magnífico! - disse o Auxiliar, de repente, como se tivesse acabado de se lembrar de algo.
O Auxiliar continuou:
- Vossa excelência, nestes dias de frio, nem precisa de dizer nada. Só pelo aspecto do ar que sai do interior de Sua Excelência falaria como nunca. Esse seu ar é magnífico! - repetiu.
O Chefe agradeceu, procurando apresentar uma cara modesta. Ele era bom nisso; como um malabarista: o Chefe sabia fazer caras. Tinha-as guardado algures como se guardam pequenos papéis no bolso com números de telefone. Quando se precisa de um número lá se procura nos bolsos o papel certo. Com ele era igual: procurava dentro de si a cara apropriada ao momento. E demorava apenas uns milésimos de segundo a encontrar a coisa. Estava treinado.
- Você exagera - disse para o Auxiliar.
- Não, não, é magnífica. Ninguém expira assim!
Na verdade, o Chefe ouvia estas palavras como alguém que ouve que dois mais dois são quatro. Alguém lhe dizia o óbvio: ele era excelente sobre sob todos os pontos de vista, e a sua respiração - em particular a expiração - era magnífica! Ele sentia, de certa maneira, que o mundo concreto, a natureza, os elementos da atmosfera, deveriam, em conjunto, se falassem e fossem delicados, agradecer-lhe esse brilhante modo de expulsar dióxido de carbono. Ninguém expulsa o dióxido de carbono como eu, pensava o Chefe. Contudo, para fora, recuperava as frases modestas:
- Você exagera, Auxiliar. A minha expiração é simplesmente ar.
- Ar?! - exclamou o Auxiliar. - Não, nada disso. É outra coisa. Há algo na forma como a sua expiração se destaca do resto da atmosfera que lembra histórias da mitologia antiga. Há qualquer coisa de secreto e misterioso.
O Chefe estava a gostar de ouvir o Auxiliar, aquela música embalava-o, por assim dizer. De facto, tinham subido pelas escadas até ao 4º andar e ele mal dera por isso.
Ele descobria, então, naquele momento, uma lei que misturava o mundo da fisiologia e da psicologia: ser elogiado faz esquecer a fadiga. Se um tipo - pensava o Chefe para si próprio - for sendo elogiado durante todo o caminho, sobe, nas calmas, a pé até ao topo da Torre Eiffel. Gostou tanto desta ideia que até parou para a escrever num bloco de notas. Quando tivesse tempo, venderia aquele raciocínio a atletas necessitados.

in O Senhor Kraus, pp. 113, 114, 115

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