quarta-feira, 10 de agosto de 2011



O meu sentimento é cinza
Da minha imaginação,
E eu deixo cair a cinza
No cinzeiro da razão.

F. Pessoa


terça-feira, 9 de agosto de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

Linda amiga, é este o excerto de que te falei e onde podes, agora, ver com os teus próprios olhos a ideia magnífica que teve  valter hugo mãe de tornar a personagem esteves, um velho que coabita o "lar da feliz idade" com antónio silva (a personagem principal do romance), no "Esteves sem metafísica" do poema Tabacaria de Álvaro de Campos. Um excerto que me ficou pelo tanto riso que me provocou...Aqui (pp. 61, 62) pensei que já tinha valido a pena meter-me a ler este livro. E isto foi apenas um começo para esta personagem... Ora lê pois vais certamente gostar:

«...surpreendeu-me o senhor pereira que, como se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância. e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças. está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro, o que diz você, perguntei. ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa. e eu respondi, não digas asneiras. tem quase cem anos. ó esteves, ó esteves, anda aqui, chamava o senhor pereira todo animado. o outro estava cheio de energia na discussão em que se metera e não fazia caso. o meu companheiro dizia, é verdade, é ele. vai fazer cem anos, já viu como anda aí de pé. um mito da nossa poesia, é do caraças. e depois o esteves lá se desenrascou da conversa e apareceu à nossa beira a perguntar o que lhe queríamos. o senhor pereira mandou-o sentar-se novamente e muito divertido pediu-lhe, ó esteves, conta aqui ao senhor silva como foi que te meteste num poema do fernando pessoa. o homem arregalou os olhos e riu-se respondendo, isso já toda a gente sabe, já o contei mil vezes. e o senhor pereira insistiu, mas o senhor silva não sabe e nem sequer está a acreditar em mim, não vou passar por mentiroso. ai que treta, disse eu, este lar está cheio de velhos tolos. pus-me para diante na cadeira, a encarar o velhote com uma antecipação enorme e ele atirou-se para dentro dos meus olhos e confirmou, sim, é verdade. eu vivia em lisboa e ia sempre àquela tabacaria. é verdade sim. os meus ouvidos afundaram incrivelmente no insondável da cabeça e eu fiquei só a ver aquele rosto. o rosto de um homem com mais quinze anos do que eu, sorridente, aberto, limpo ao mesmo sol que nos cobria, e era como se o próprio maravilhoso genial lindo fernando pessoa ressuscitasse à minha frente, era como dar pele a um poema e e trazê-lo à luz do dia, a tocar-me no quotidiano afinal mágico que nos é dado levar. era como se alice viesse do país da fantasia para nos contar como vivem os coelhos falantes e as aventuras de faz-de-conta. e eu voltei a ouvi-lo dizer, mas eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos roubarem a alma não é coisa decente, porque aquilo da poesia leva muita mentira. sorri. sorri verdadeiramente como nunca até ali naquele lar. e o senhor pereira olhou para mim radiante e afirmou num triunfo, isto sim, agora, é o lar da feliz idade.» 

valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis, alfaguara, 2010

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Companheiros da alma

Para ti, doce Pat, igualmente a minha companheira da alma...um pequeno poema... simples...do José Fontinhas ou deverei dizer Eugénio de Andrade?


Os livros

Os livros. A sua cálida
Terna, serena pele. Amorosa
Companhia. Dispostos sempre
A partilhar o sol
Das suas águas. Tão dóceis
Tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua branca e vegetal cerrada
Melancolia.
Amados
Como nenhuns outros companheiros
Da alma. Tão musicais
No fluvial e transbordante
Ardor de cada dia.

FÉRIAS


O poema cresce nas férias
adensa o corpo estica o dorso
absorve o lugar de praia a todos
engole o mar aos poucos e poucos
E fico só eu e o poema deitados
sem areia sem horizonte ao sol
sem referências de nada mais
pois o poema é tudo.