quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

POESIA



Digo
Quem sou eu
Eu ou os meus poemas?
Tu - dizes.
Poesia e eu
Quem é quem? – repito
Tu – dizes.
E torno
Quem a essência?
Arrisca. Diz-me.
Poesia, eu?
eu, Poesia?
- Poesia. Dizes.
Então, vai.
Mata-a e, depois,
toma-me nua,
Serei tua, eu.

POEMAS QUE FICAM


POETA

Ser poeta é
quase
quase
deixar de Ser.
É se diluir
pra pertencer.
É o gozo do
aperto do leito
das palavras
das grafias
e do divino ritmo.
Ser poeta é
Ser Rio
virando Mar.

Deka Purim, Rio Virando Mar, Instituto Açoriano de Cultura

CANÇÕES MEXICANAS - GONÇALO M. TAVARES


O "romance da maldade" escrito no estilo singularissimo de Gonçalo M. Tavares. Como e possivel gostar das historias tão impregnadas de mal, de violência que este narrador europeu nos conta, a proposito da sua estada no Mexico, num estilo de conversa intima? O absurdo a tocar tudo o que descreve, o absurdo a fazer pensar no que se vê e no que esta muito para alem do nosso olhar - a suscitação de reflexões constantes assentes numa imaginação perturbadoramente enraizada no real mexicano, alguns episodios perturbadores que se concebem para não compreendermos o ser humano. Concebidos simplesmente para nos sentirmos abalados nesses cantos de extrema crueldade que nos escapa e que por ser extrema, acaba, não sei como, por se tornar um desapontamento impregnado de crua beleza. O ser humano numa situação extrema de humilhaçao e medo torna-se outro ate se ver livre do perigo da morte.
Um livro que nos obriga a pensar no absurdo. Ganhamos ao absurdo, lendo-o, captando-lhe o mal. Captando-o, sem nunca o compreender. Essa sombra da maldade humana sera sempre aliciante porque toca numa loucura inconcebivel e por isso admirada pelo leitor como um ângulo raro. M. Tavares, um  mestre da escrita neste retrato do Mal.

Um excerto que sei que gostaras, Ana Bela Ana:

A queda
 Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como u fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

SHORT MOVIES - GONÇALO M. TAVARES


Com uma capa tão bonita como esta,  não dá vontade de avançarmos para os textos que ela encobre, não fosse o nome do autor, GMT, uma garantia de qualidade singular. Alguns textos geniais:

O JOGO
Um banquete tumultuoso, comida e vinho a passar de um lado para o outro. Pessoas a gritarem, risos, pessoas em pé, outras sentadas. No meio da mesa do banquete dois homens jogam um jogo de tabuleiro – estão totalmente concentrados nele e alheados da confusão. Não têm pratos nem copos, apenas o tabuleiro à sua frente – as peças, umas pretas, outras vermelhas. Talvez nenhum dos convidados do banquete saiba, e talvez nem sequer os dois jogadores saibam, mas quem ganhar aquele jogo de tabuleiro poderá matar uma pessoa que está naquela sala, uma pessoa à sua escolha. Foi isto que decidiu o dono da casa, que não se vê em lado nenhum. O vencedor merece um prémio, e é este o prémio: pode matar quem quiser.
O vencedor do jogo ainda não sabe, mas vai aceitar o prémio, claro. Entretanto, como o jogo ainda decorre, o banquete também continua e há tantas pessoas alegres, há tantos risos, que até parece estranho pensarmos que um daqueles que agora devora patas de animal e ri às gargalhadas, que será um desses a ser assassinado daí a poucos minutos. Os banquetes são estranhos, sempre foram, mas aquele é ainda mais estranho por causa daqueles dois jogadores.

 A NOTÍCIA
A mulher está a ler o jornal, as mãos tremem.
Há uma qualquer notícia que a perturba. Não vemos o que é, só vemos a força com que ela amarrota o jornal, e depois o modo como o endireita outra vez e se dirige ao quarto. Pega na almofada, abre a fronha e põe lá dentro o jornal.
Alisa a almofada e coloca-a no sítio em que estava antes, como se nada fosse. Sai do quarto.
Fez aquilo como alguém que quer provocar pesadelos noutra pessoa. Quem dorme naquela cama, e que notícia assustou tanto aquela mulher?

A LOUCA
Um fotógrafo tira fotografias a uma louca. O fotógrafo diz que nem o melhor actor consegue ter a expressividade do rosto de uma louca. E por isso não pára. Mesmo quando a louca diz não com a cabeça, não com a boca e, por fim, não com o dedo.