domingo, 30 de outubro de 2011

PRÉMIO JOSÉ SARAMAGO 2011

O início do primeiro capítulo:



«Serra Morena é íngreme, úmida e fértil.
Aos pés dela vivem os Malaquias, janela com ta- manho de porta, porta com autoridade de madeira escura.
- Corre, Adolfo!
Donana pedia ajuda ao marido,ele cravou o machado na lenha e foi acudir. A bacia brilhava no fundo da cisterna, Adolfo desceu a corda com o balde amarrado na ponta, o encaixou na bacia e fo arrastando-a de volta pela parede. A mulher não fazia mais o pesado, com osso quebradiço, passou a benzer espinha de criança e com reza ganhava fubá, café e leite. Branca rosada, lábio fino. Tirando os Malaquias, os habitantes eram pardos como mamíferos silvestres.
As crianças fizeram um círculo em torno do poço, o lençol freático refletia três pares de mãos,
cada par moldurando dois brilhos e um nariz: Nico tinha olho azul, nove anos. Antônio, miúdo, seis. Júlia, barriguda, quatro.

Todos se recolheram,a noite ia grossa, o vento afrouxava as janelas. As telhas vibravam, num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam em um quarto. Nico, Júlia e Antônio em outro, na mesma cama, aninhados em forma de embrião.
Um gato aninhou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, acasa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias.O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, pai e mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a

árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo.
Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso dilatado não perturbou o curso da electricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem
afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis. (...)»

Andréa del Fuego, Os Malaquias, Língua Geral, 2010
















sábado, 29 de outubro de 2011

JOSÉ LUÍS PEIXOTO - GAVETA DE PAPÉIS


2 poemas a que me rendo:

1
Sozinho, chego a uma cidade saqueada
e caminho com vagar, os braços quase
parados, olho para as portas abertas,
o que sobrou está espalhado nas ruas,
o ar é limpo porque ninguém o respira,
esta cidade, este silêncio, esta cidade,
tenho na pele do rosto o contrário
do choro de uma criança, esse tempo
já passou, tenho tranquilidade séria
e erosão porque esta é a nossa cidade
e porque sei que não te vou encontrar
quando chegar a casa, minha mãe. 

2
PIRÓMANO

A situação é esta: os campos eram puros e limpos,
eu ateei muitos fogos, tinha fósforos e gasolina,
agora estou no exacto centro de todos eles,
cercam-me por todos os lados que não existem
para fugir, e espero pelo incêndio, apenas espero.

sábado, 22 de outubro de 2011

GONÇALO M. TAVARES - O SENHOR KRAUS

Estava um daqueles dias frios e respirar tornava-se um acto público, uma coisa visível.
- Ninguém respira discretamente nestes dias de muito frio - disse o Chefe.
E era verdade: a expiração de qualquer indivíduo abria um sulco no ar, como se o ar fosse pintado ou riscado com uma outra cor. A respiração naqueles dias já não era um acto privado ou partilhável somente por casais apaixonados. Respirar era como que um discurso, só que num volume mais baixo.
- Expirar torna-se quase tão visível como cantar.
- É verdade.
- Como uma voz que não fala. - disse o Chefe.
- A sua respiração tem, de facto, um aspecto magnífico! - disse o Auxiliar, de repente, como se tivesse acabado de se lembrar de algo.
O Auxiliar continuou:
- Vossa excelência, nestes dias de frio, nem precisa de dizer nada. Só pelo aspecto do ar que sai do interior de Sua Excelência falaria como nunca. Esse seu ar é magnífico! - repetiu.
O Chefe agradeceu, procurando apresentar uma cara modesta. Ele era bom nisso; como um malabarista: o Chefe sabia fazer caras. Tinha-as guardado algures como se guardam pequenos papéis no bolso com números de telefone. Quando se precisa de um número lá se procura nos bolsos o papel certo. Com ele era igual: procurava dentro de si a cara apropriada ao momento. E demorava apenas uns milésimos de segundo a encontrar a coisa. Estava treinado.
- Você exagera - disse para o Auxiliar.
- Não, não, é magnífica. Ninguém expira assim!
Na verdade, o Chefe ouvia estas palavras como alguém que ouve que dois mais dois são quatro. Alguém lhe dizia o óbvio: ele era excelente sobre sob todos os pontos de vista, e a sua respiração - em particular a expiração - era magnífica! Ele sentia, de certa maneira, que o mundo concreto, a natureza, os elementos da atmosfera, deveriam, em conjunto, se falassem e fossem delicados, agradecer-lhe esse brilhante modo de expulsar dióxido de carbono. Ninguém expulsa o dióxido de carbono como eu, pensava o Chefe. Contudo, para fora, recuperava as frases modestas:
- Você exagera, Auxiliar. A minha expiração é simplesmente ar.
- Ar?! - exclamou o Auxiliar. - Não, nada disso. É outra coisa. Há algo na forma como a sua expiração se destaca do resto da atmosfera que lembra histórias da mitologia antiga. Há qualquer coisa de secreto e misterioso.
O Chefe estava a gostar de ouvir o Auxiliar, aquela música embalava-o, por assim dizer. De facto, tinham subido pelas escadas até ao 4º andar e ele mal dera por isso.
Ele descobria, então, naquele momento, uma lei que misturava o mundo da fisiologia e da psicologia: ser elogiado faz esquecer a fadiga. Se um tipo - pensava o Chefe para si próprio - for sendo elogiado durante todo o caminho, sobe, nas calmas, a pé até ao topo da Torre Eiffel. Gostou tanto desta ideia que até parou para a escrever num bloco de notas. Quando tivesse tempo, venderia aquele raciocínio a atletas necessitados.

in O Senhor Kraus, pp. 113, 114, 115

ANA LUÍSA AMARAL - VOZES

DOIS POEMAS:

A noite invade,
agora

Como disse uma vez:
nem tu, Ícaro, nem nada

Fui eu que o apaguei,
ao sol,
ao longo das palavras,
num advérbio
longo:
irredutivelmente

Depois o acendi
mais uma vez,
como uma lâmpada
de milhares de watts

E todavia,
aqui,
nesta cidade,
devendo haver cinzento
e chuva,
ele teima em brilhar

Quem
o mandou ligar,
ao sol,
se eu o queria
apagado?

Resta-me só
sinestesia
e pouco mais:
talvez falar do mito
e imitar com Ícaro
o medo
ou a alegria
que o chão traz -

_____________________________________________

Eterno é este instante, o dia claro,

as cores das casas desenhadas em aguada rasa,
castanhos e vermelhos quase em declive,
as janelas limpíssimas, os vidros muito honestos.
este instante que foi e já não é, mal pousei a caneta
no papel: eterno


Sonhei contigo, acordei a pensar
que ainda eras, como é esta janela,
como o corpo obedece a este vento quente, e é ágil,
mas tudo: tão confuso como são os sonhos


Agora, neste instante, recordo a sensação
de estares, o toque.
Não distingo os contornos do meu sonho, não sei
se era uma casa, ou um pedaço de ar.
A memória limpíssima é de ti
e cobriu tudo, e trouxe azul e sol a esta praça
onde me sento, organizada a esquadro,
como as casas


E agora, o teu andar
acabou de passar mesmo ao meu lado, igual,
e agora multiplica-se nas mesas e cadeiras
que cobrem rua e praça,
e eu vejo-te no vidro à minha frente,
mais real que este instante, e se Bruegel te visse
pintava-te, exactíssima e aqui.
E serias: mais perto de um eterno


(Eu, que nada mais sei, só o fulgor do breve,
eu dava-te palavras - )


In Vozes, D. Quixote, pp. 33 e 116