segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Sr. M. Tavares em "O Senhor Juarroz”: DUAS CADEIRAS


O SR JUARROZ ESTAVA A PENSAR QUE ENTRE UMA COISA DO MUNDO E OUTRA HÁ UM INTERVALO. MAS TAMBÉM É POSSÍVEL EXISTIR UMA ÚNICA COISA ENTRE DOIS INTERVALOS.
A imagem não traduz de modo algum a entidade ÁTOMO. Retomo a Teoria corpuscular da matéria, assente na ideia de corpo minúsculo, pedra base de tudo o que nos rodeia. Essa Teoria, proposta no século XIX por Dalton com base no atomismo grego, assenta na premissa de que os átomos estão em permanente agitação e que entre os diversos átomos existem espaços vazios! Ora, esses espaços não têm nada, teoricamente! O vazio!
Se atentarmos às palavras do Sr Juarroz, talvez entre dois vazios existam átomos! Que estranho comportamento o dos átomos! Para além de nunca se mostrarem (nunca conseguiram ser vistos!) também não param e permanecem numa dança eterna! Isto leva-me à Mecânica Quântica e à Espuma Quântica (espécie de espuma de cerveja!): poderemos imaginar o estado atómico desta forma? É impressionante!
O Sr Feynman, eminente físico do século XX galardoado com o Nobel da Física, dizia nas suas conferências que se de repente o mundo perdesse todo o conhecimento podendo apenas resgatar uma única Lei, aquela de que não poderia abdicar nunca seria a Teoria Atómica!

O Sr. M. Tavares em "O Senhor Juarroz”: A MÚSICA

A QUESTÃO QUE PREOCUPAVA NAQUELE MOMENTO O SR JUARROZ ERA ESTA: SE A MÚSICA É, NO FUNDO, AR A UM DETERMINADO RITMO, E SE A RESPIRAÇÃO HUMANA É CONSTITUÍDA PELA EXPIRAÇÃO-QUE EXPULSA O AR- E PELA INSPIRAÇÃO QUE ENGOLE AR- SERÁ QUE ELE- O SENHOR JUARROZ ESTARIA NAQUELES INSTANTES A INSPIRAR AQUELA MÚSICA TERRÍVEL QUE UMA BANDA INGÉNUA TOCAVA?
Esta inquietação existencial é esplêndida! Na verdade, e se nos debruçarmos sobre o conceito corpuscular da matéria (Teoria Atómica da Matéria que remonta a Demócrito - 300 aC- e muito posteriormente reapropriada por Dalton- que sofria de daltonismo e foi ele que estudou esta patologia ), tudo o que nos rodeia é constituído por entidades microscópicas- os átomos.
Ao respirarmos de facto respiramos átomos de ar, de música, de nuvens, de odores!
A exclamação do Sr Juarroz é de facto brilhante: somos comedores de música! Comedores cósmicos... Lindo!

domingo, 30 de agosto de 2009

O Sr. M. Tavares em "O Senhor Juarroz”

O tema do post de 17 de Agosto, inteligentemente colocado pela minha amiga, merece uma atenção redobrada da minha parte. Por que li ontem, ou melhor, devorei, o livro que me foi emprestado pela minha amiguinha (que continua algures vagueando por um Cosmos que desconheço!), decido colocar este post também como forma de agradecimento pelas leituras que a Patrícia me vai proporcionando! São sempre viagens únicas e inesquecíveis.
Começo por dizer que do Gonçalo M. Tavares li apenas “Jerusalém” e que gostei tanto, tanto que ao terminar a obra recomecei-a de novo. Também leio alguns apontamentos seus no “Jornal de Letras, Artes e Ideias”, confessando a minha dificuldade em interpretar alguns dos seus escritos.
Ontem consegui ter uns momentos vagos, depois de dias de grande agitação e elevada tempestuosidade, e não resistindo a tanto livro que a Patrícia me emprestou e nomeadamente a este autor (sobre o qual subscrevo todos os elogios que a minha amiga lhe dedicou), vagueio pelos interstícios dos pensamentos do Sr Juarroz. Antes de me debruçar no livro, quero confessar que a imaginação de Gonçalo M. Tavares é de facto surpreendente. Criar um bairro com tantas personagens interessantes é de facto genial. Faço apenas um reparo, chamem-me femininista se quiserem, mas fiquei visivelmente incomodada ao notar que nesse bairro apenas coabitam duas mulheres: a Sra Bausch e a Sra Woolf! Porquê, Sr M. Tavares? Para além disso, qual o critério usado na escolha destes moradores, Sr M. Tavares? Estaremos perante uma bibioteca como a do Sr Juarroz? Será que o caos compreende afinal uma ordem?

Quanto ao livro, se tivesse que indicar o seu tema diria que versa as reflexões filosóficas de um habitante priviligiado desse bairo: o Sr Juarroz. Embora todos os textos mereçam uma reflexão aprofundada, deter-me-ei apenas em alguns que me perturbaram deveras.
Fiquei logo refém deste livro ao ler O ABORRECIMENTO, a primeira reflexão deste senhor pois é sobre o pensamento que se debruça. Aliás, este é um dos textos do livro que mais me impressionou. E começa assim:
"Como a realidade era para o Sr Juarroz uma matéria aborrecida ele só deixava de pensar quando era mesmo imprescindível"
Na verdade dou por mim, muitas vezes, a submeter-me a esta ausência do EU físico pois partilho da reflexão do Sr Juarroz: a realidade é uma matéria aborrecida e que conseguimos evitar viajando com o pensamento. Fugir da realidade pelo pensamento é uma viagem magnífica. Lindo!
A QUEDA, é um texto que poderei aproveitar na s minhas aulas de física pois trata de conceitos como: a posiçãp, a mudança de posição, o deslocamento, a direcção de um movimento. É um texto bem conseguido pois mostra-nos que cair do alto de 100 m e percorrer 100 metrosno jardim são no fundo a mesma acção apenas a diferença na direcção do movimento. Daí a necessidade de chamarmos a Sra Matemática para nos dar uma ajudinha: o uso de setas (os matemáticos vão-me crucificar pois deveria ter dito: segmento de recta orientado!) a que apelidamos de vectores é de extrema utilidade para que possamos distinguir os dois movimentos, caso contrário são movimentos que aparentemente são idênticos. Deixando a ciência física e passando para o plano filosófico, a reflexão do Sr Juarroz fez-me acreditar uma vez mais que chegar a um determinado ponto pode ser feito de diversos modos mas o resultado final é rigorosamente o mesmo (voltando à física, distinguimos por isso mesmo um certo tipo de variáveis a que damos o nome de funções de estado, ou seja, são independentes do percurso considerado). Na nossa vida, alcançar um determinado objectivo pode ser feito de variadíssimas formas, pode envolver mais ou menos esforço, mas o resultado final é igual! Sublime! Como gosto do Sr M Tavares na pele de Sr Juarroz!
A AUSÊNCIA DE PROVAS FÍSICAS, é um texto extraordinário e com tanto sumo....
"Como era deselegante não ver nada com tantas coisas para serem vistas, o senhor Juarroz ficava em casa, à janela, a ver as coisas do mundo"
"O senhor Juarroz pensava muitas vezes que o mundo seria mais físico se as coisas vistas ou ouvidas também deixassem no fim, uma chávena de café vazia, de modo a provar à mulher que não perdia tempo, como ela o acusava. Mas depois de pensar nada se alterou, pois os pensamentos também não deixavam provas. Apenas o café, apenas o café- murmurava".
Pergunta ingénua: como se consegue provar que houve efectivamente pensamento? Como se vê o rasto do acto de pensar?
A ÁGUA A FERVER,
(...a continuar brevemente)






quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Buenos Aires, Argentina



Adorei esta imagem tirada por Kambrosis! O ar da avozinha inspira ternura e faz-me ter saudades de uma tia que me contava tantas histórias... Eu passava horas a ouvi-la. Chamava-se Cremilde...

O NÚMERO DE DEUS


Este livro foi-me sugerido pelo Zé Alexandre e emprestado pela Manuela. É um romance histórico, género que muito aprecio pois é desta forma que vou assimilando a História que pouco aprendi (confesso) na escola. Acho que esta forma de aprender história é muito mais aliciante porque a contextualiza e a coloca numa dimensão humana surpreendente! Nos romances os cavaleiros amam, têm doenças, têm um dia-a-dia rotineiro apesar das façanhas que se vão narrando. Assim acontece neste livro.
Não é certamente o livro mais emocionante deste género que já li mas a narrativa prende o leitor. Passa-se durante a construção das catedrais góticas e a forma como eram erguidas! A par da história da jovem Teresa, retrata o ambiente da pintura mural , da fabricação dos vitrais, no fundo da arte/ciência/técnica. Mas também na importância de se possuir uma alma elevada. Gostei particularmente de ter aprendido aspectos curiosíssimos sobre a vida dos cátaros e o modo como a mulher em pleno século XV era vista (de forma tao ou mais audaz que no nosso século), o modo como se conseguiam obter as cores usando determinados pigmentos, a importância da luz! E aqui vagueio pela minha física! A luz, sempre a luz! O que é? O que encerra a luz? Como é constituída?
Um verdadeiro mistério pois dizer que a luz aprensenta comportamento ondulatório e corpuscular não esclarece o mistério! Tanta pergunta...
Apesar da história de amor ser monótona, vale a pena ler.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Silêncios - Fotografias

Fotografia de Pedro Noel da Luz

Fotografia de André Boto

Neste Verão quero passar tão alta como o arvoredo e romper o silêncio de tudo como se não existissem palavras.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Leite Derramado - Chico Buarque


Quando disse que viajei até ao Brasil, foi neste livro que apanhei o voo até lá e me confrontei com a história que um velho narrador encamado no hospital vai contando, de forma monologal, mas afinal dirigida à filha que o visita ou, insistentemente, às enfermeiras que o tratam (com predilecção para uma delas a quem promete tornar sua mulher quando sair do internamento), e que não é mais do que uma saga familiar (muito condensada!) passada nos dois últimos séculos brasileiros. É a sua memória intermitente e confusa que vai narrando, com toda a graça e doçura do português do Brasil, a sua vida e todos os seus momentos fortes. Como diria Roland Barthes, esta "biographème" transfigura a sua minúscula vida e relações humanas numa dimensão literária eterna através de um fio de memória que sobreviveu para tornar presentes as maiores felicidades, amores e desilusões, imagens de uma infância cheia de recantos encantadores, figuras e apontamentos que o marcaram até à morte. A escrita ternurenta e profunda de Chico Buarque cativa o leitor muito cedo, provocando-o inúmeras vezes com a entrada abrupta (e inconveniente por vezes) nas profundezas psicológicas de uma personagem dolorida, que tudo nos deixa conhecer sobre si, até mesmo o seu amor não correspondido pela mulher da sua vida, Matilde, que apresenta com uma capacidade de a amar absolutamente invejável.
Transcrevo apenas um dos muitos momentos literários emocionantes:
" No dia seguinte minha mãe me perguntou se os pais de Matilde lhe consentiam estar a sós comigo em casa, toda a tarde depois das aulas. Mal sabia ela que, de noite, eu espreitava da minha janela de fundos a hora de Matilde pisar a relva do jardim na ponta dos pés, entre as amendoeiras e a casa dos empregados. Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, que Matilde apenas ultrapassava. Encostava-se na parede da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios se estreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto. (...) Quando dava por mim, estava colado nos ladrilhos da parede, porque num deslize Matilde sempre me escapava. E a cada vez eu ia inspeccionar salas, quartos, banheiros, porão e sótão, fingindo crer que ela teria fugido por engano para dentro de casa. (cap. 8)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O Tigre Branco - Aravind Adiga


Não restam dúvidas da qualidade deste romance, vencedor do Man Booker Prize 2008, logo a partir da leitura das primeiras páginas. Originalidade na organização da narrativa, violenta força discursiva que chega mesmo a ferir o leitor com a ironia e sarcasmo peculiares, ora esboçando-lhe um sorriso de surpresa ora sentindo um apertado nó no estômago – como, de resto, é referido na nota crítica de USA Today - “ Um dos mais poderosos livros que li em décadas. Sem exagero, este romance de estreia atingiu-me como um murro no estômago”.
Nestas férias de verão resolvi que visitaria a Índia e o Brasil (para além de umas voltas pela nossa capital à socapa) através da literatura. Foi o que eu fiz de melhor. Não resultou num bronzeado que possa exibir na rua, no entanto tudo o que vi me deu um prazer tão singular, que não me arrependo da minha brancura.
Primeiramente, visitei a Índia como estrangeira, pelas mãos de António Tabbucchi e logo a seguir, empurrada pelas imagens e palavras tempestuosas de Aravind Adiga, reconheci-me em casa. Quanto ao Brasil e à cidade de Lisboa, ficam para mais tarde.
O Tigre Branco ou Balram é o nosso narrador e personagem protagonista que revela, sem dó de ninguém, a violenta miséria em que foi criado na aldeia de Laxmangarh. Desde logo se assume como suspeito do homicídio do seu patrão (o Sr. Ashok, rico comerciante de carvão), num total de seis noites e duas manhãs, as quais perfazem os oito capítulos epistolares dirigidos ao Primeiro-Ministro Chinês (Sua Excelência Wen Jiabao) em que a narrativa surge originalmente moldada. Toda a obra explica as razões do golpe que o leva a matar o patrão com as suas próprias mãos e o auxílio de uma garrafa de whisky despedaçada. O melhor é relembrar alguns excertos do livro que são como brasas:
1º excerto

Já está.
Tenho os olhos novamente abertos.
11h 52m da noite – e já vão sendo horas de começar.
Uma advertência regulamentar – como as que aparecem nos maços de cigarro – antes de começarmos.
Certo dia, quando eu ia a conduzir os meus antigos patrões Sr. Ashok e Madame Pinky no seu automóvel Honda City, o Sr. Ashok pousou-me uma mão no ombro e disse-me: «Encosta à berma.» Enquanto eu obedecia a esta ordem, ele inclinou-se tanto para mim que lhe senti o aroma do aftershave – naquele dia, trazia um aroma delicioso, frutado – e acrescentou, com a mesma cortesia de sempre: « Balram, se não te importas, gostaria de te fazer umas perguntas.»
- Com certeza, senhor – respondi-lhe eu.
- Balram – interrogou-me o Sr. Ashok -, quantos planetas há no céu?
Respondi-lhe o melhor que pude.
- Balram, quem foi o primeiro-ministro da Índia?
E depois: - Balram, qual é a diferença entre um hindu e um muçulmano?
E em seguida: - Qual é o nome do nosso continente?
Sr. Ashok recostou-se no assento e perguntou a Madame Pinky:
- Ouviste as respostas que ele deu?
- Estaria a brincar contigo? – indagou ela, e senti o coração a assolapar-se-me, como acontecia sempre que ela dizia alguma coisa.
- Não. Acho que está convencido de que são mesmo as respostas correctas.
Ao ouvir isto, ela soltou uma leve gargalhada; a expressão dele, porém, que eu vi reflectida no espelho retrovisor, era séria.
- O problema é que ele deverá ter andado no máximo…o quê, uns dois ou três anos na escola? Sabe ler e escrever, mas não compreende o que lê. É mal-amanhado. Este país está cheio de gente como ele, disso podes ter a certeza. E nós confiamos a nossa gloriosa democracia parlamentar – dito isto, apontou para mim – a criaturas como esta. A isto se deve a grande tragédia deste país.
Soltou um suspiro.
- Pronto, Balram, podes arrancar.
Nessa noite, deixei-me ficar estendido na cama, a coberto do mosquiteiro, a reflectir nas suas palavras. Ele tinha razão senhor… Eu não gostei da maneira como o Sr. Ashok se referiu a mim, mas não era por isso que deixava de ter razão.
2º excerto

Sabe, no meu primeiro dia de escola, o professor mandou os rapazes porem-se todos em fila e irem até à sua secretária para que ele pudesse anotar os seus nomes no livro de matrícula. Quando eu lhe disse como me chamava, ele ficou a olhar para mim embasbacado:
- Munna? Mas isso não é nome de gente.
Ele tinha razão: significa simplesmente «rapaz».
- É só isso que me chamam, senhor professor – assegurei-lhe eu.
Era verdade. Nunca ninguém me tinha dado um nome.
- A tua mãe não te pôs um nome?
- Ela está muito doente, senhor professor. Passa os dias de cama, a cuspir sangue. Não tem tempo para me pôr um nome.
-E o teu pai?
- Ele é condutor de riquexó, senhor professor. Não tem tempo para me pôr um nome.
- Então e tu não tens uma avó? Tias? Tios?
- Eles também não têm tempo.
O professor deu meia-volta e cuspiu; um jacto de paan vermelha espalhada pelo chão da sala de aula. Humedeceu os lábios.
- Bom, então nesse caso, cabe-me a mim a tarefa, não é verdade? – Passou-me uma mão pelo cabelo e disse: - Vamos chamar-te… Ram. Espera… Não temos já um Ram nesta aula? Não quero dar azo a confusões. Serás Balram. Sabes quem era Balram, não sabes?
- Não, senhor professor, não sei.
- Era o amigo inseparável do deus Krishna. Sabes como é que eu me chamo?
- Não, senhor professor.
Ele riu-se. – Krishna.

O pequeno-almoço do Sargento Beauchamp

A propósito de Vasco Graça Moura, "O pequeno-almoço do sargento Beauchamp" foi a última novela que li do autor durante as minhas férias.
Trata das aventuras ou desventuras de Jacinto, eterno enamorado, durante o período das invasões francesas. Notei o enorme apreço que o autor nutre pelas gentes do Porto que fielmente resistiram aos franceses (daí o epíteto atribuído à cidade ainda hoja- A INVICTA). Ao ler esta novela recordei o estilo mordaz do Eça de Queirós, pois o autor põe a nu o mundanismo que grassava e o aparente riquismo daquela sociedade! Nem os reis defendiam o seu povo, atrasado, e na primeira oportunidade fugiram para um Brasil... Gostei da história mas a questão que me atormentava durante a leitura era: mas afinal quem é o Beauchamp? E o que tem de relevante o seu pequeno-almoço? Bem... é preciso chegar às últimas páginas e só aí o segredo é desvendado! Li o livro de um fôlego (aliás bem pequeno e com capítulos curtos) e valeu a pena! A ler...

Luzes pela noite dentro - Fotografia


Assim que começaram as "férias grandes" lancei um desafio cá em casa: qual de nós será o melhor fotógrafo das luzes da noite? Como todos gostamos de fotografia, interiorizámos, cada um às escondidas do outro, que havíamos de ganhar esta espécie de concurso familiar, logo que a noite chegasse às varandas do apartamento, iluminada pela lua.


Uma noite, pronta para testar as provas dos meus adversários, convidei-os a sairmos com a máquina "às claras", a captarmos fotos em velocidade de cruzeiro, enquanto passeávamos de janela aberta (ou fechada) de carro e a andarmos na nossa própria rua, passando uns aos outros a dita máquina, por iniciativa própria e sem fazer fisgas atrás das costas, à descoberta das luzes mais distintamente apropriadas para a iniciativa fotográfica aceite por todos. Assim garanti o fim do concurso, possibilitando a entrada na etapa final: a escolha do vencedor. Passo a mostrar as fotos sem o nome do seu autor para assim não condicionar a escolha dos meus amigos ou familiares. Espero que todos gostem (em especial das minhas!)


Luzes pela noite dentro - 1


Luzes pela noite dentro - 2

Luzes pela noite dentro - 3



Luzes pela noite dentro - 4


Luzes pela noite dentro - 5


Luzes pela noite dentro - 6

Luzes pela noite dentro - 7

Luzes pela noite dentro - 8


Luzes pela noite dentro - 9



Luzes pela noite dentro - 10

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Vasco Graça Moura - Coração

Fotografia de Sévérine Cousot aka Sey
Coração de mar e vento
Que aos corações lanças redes
E és perpétuo movimento
Na guitarra do paredes ,

Pões esperança e amargura,
Vibras sombra e luz nas notas,
E em surdina tens gaivotas
De saudade e de aventura,

Coração tumultuário,
Ó faminto coração,
Solidário e solitário,
A prender nuvens ao chão,

Coração da melodia,
Coração em que murmuram
Sol e lua e se misturam
Em funda melancolia,

De tantas fomes e sedes
Coração terno e violento,
És perpétuo movimento
Na guitarra do paredes
.
Tenho saudades da minha amiga Anabela que nunca mais regressa das suas férias de verão e de todas as coisas dela por isso me lembrei de publicar um poema que ela me ofereceu no final deste ano lectivo. Carinhosamente emprestou-me um cd de homenagem a Carlos Paredes (que para mim é um génio!) para que pudesse ouvir este poema de Vasco Graça Moura cantado por Mísia.
Querida amiga, fazes-me falta! Quando vi esta fotografia de Séverine vi-te naquela nuvem capturada pela chuva e percebi que viver sem amigos é acabar de vez com as nuvens do céu.

Joaquim Pessoa - Quero-te para além das coisas justas

Fotografia de Anselm Adams - Landscape
Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando ma roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.

Joaquim Pessoa

O poeta diz tão simplesmente o quanto ama alguém quando a noite chega...

Gonçalo M. Tavares - O Senhor Juarroz

Elogiar Gonçalo M. Tavares com as palavras que o nosso Prémio Nobel da Literatura lhe dedica no seu blog é a melhor forma que arranjo para confessar toda a admiração e amor literário que sinto quando o leio (qualquer um dos seus textos me deixa ficar num canto qualquer onde me encontre – casa, escola, café, … - de olhos incrédulos com as suas ideias e expressão escrita inusitadas… ainda para mais é para mim uma alegria, verdadeira alegria, saber que ele é da minha geração, nascido no meu distrito de Aveiro, admirador de tantas figuras literárias que também eu admiro… tão próximo de mim em tudo que é inevitável comprar e ler tudo o que vem dele.). Eis as palavras de Saramago que justificaram a aquisição do seu “O Caderno”, obra onde compila os textos escritos para o referido blog, de Setembro de 2008 a Março de 2009.



Março de 2009-08-14
Dia 2
“A nova geração de romancistas portugueses, refiro-me aos que estão agora entre os 30 e os 40 anos de idade, tem em Gonçalo M. Tavares um dos seus expoentes mais qualificados e originais. Autor de uma obra surpreendentemente extensa, fruto, em grande parte, de um longo e minucioso trabalho fora das vistas do mundo, o autor do Sr. Valéry, um pequeno livro que esteve durante muitos meses na minha mesa-de-cabeceira, irrompeu na cena literária portuguesa armado de uma imaginação totalmente incomum e rompendo todos os laços com os dados do imaginário corrente, além de ser dono de uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade, de tal maneira que não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento desfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o Prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.”
pp.209, 210

Também eu tenho pena de não poder dar um abraço de felicitações ao grande Saramago por estas palavras inteligentes que tanto gostei de ler.

Da colecção que intitulou O bairro apetece-me pensar n’ O Senhor Juarroz (o poeta argentino autor do poema “A veces me parece …”).
Gonçalo M. Tavares construiu um projecto de um bairro com os nomes de intelectuais de diversos domínios da cultura universal, não se cingindo apenas à literatura, ( Sr. Rimbaud; Sr. Balzac; Sr. Henri M.; Sr. Corbusier; Sr. Calvino; Sr. Valéry; Sr. Lorca; Sr. Breton; Sr, Wittgenstein; …). Apresenta Pessoa como vizinho de Juarroz e de Pirandello (que fantástico!). É assim que se apropria de nomes de valor incontornável, reconstruindo-os em histórias cheias de humor e ironia, num imaginário que não descura algumas das mais características linhas temáticas das suas obras, reinventando-lhes personalidades. Assim, obtemos de todos esses senhores com "esses" maiúsculos, dados novos, instaurados no universo “deslogicizado” próprio deste autor português incomparável, que os ligam para todo o sempre em ruas vizinhas e os rememoram de maneira única. Apetece-me dizer: Parabéns Sr. M. Tavares pelo seu bairro tão bem arquitectado de palavras. O Sr. M. Tavares supera, afinal, qualquer outro senhor do bairro. Esta é a verdade.

Seleccionei três dos vinte e oito pequenos textos geniais do caderno O Senhor Juarroz que passo a inscrever nesta página (por ordem de preferência):


O relógio

O senhor Juarroz pensou num relógio que em vez de mostrar o tempo mostrasse o espaço. Um relógio onde o ponteiro maior indicasse no mapa o local preciso onde a pessoa se encontrava num determinado instante.
- Então, e o ponteiro pequeno? Que indica? – perguntou a esposa.
- A localização de Deus – respondeu o senhor Juarroz.




A Biblioteca
O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais fácil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a sua biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: Já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática capaz de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a
2/ 9/ 30/ 93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei!, e apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e desistiu desistir do jogo. Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.



Os nomes e as coisas

Para mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objectos.
Metade do seu dia de trabalho passava-o assim a atribuir nome às coisas.
Por vezes, ficava tão cansado com essa tarefa inaugural, que passava a segunda parte do dia de trabalho a descansar.
Quando adormecia os novos nomes das coisas misturavam-se, nos sonhos, com os antigos nomes, e por vezes o senhor Juarroz acordava tão baralhado que deixava cair a primeira coisa que tentava segurar, e essa coisa, da qual por momentos não sabia o nome, partia-se.


De todos os textos, ficaram, com tristeza minha, invisíveis onze dos textos que considero tão geniais como estes, por isso nomeio-os e tiro-lhes os parênteses como se fossem o meu chapéu preferido - O aborrecimento; A gaveta e a utilidade, Viagem longa; Sombras e esconderijos; A música; Duas cadeiras; O árbitro; O cinema; A morte de Deus; A Concentração.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Roberto Juarroz - "A veces me parece"


Segundo Juarroz, a poesia é a explosão do ser por debaixo da linguagem. Rendo-me a esta ideia pegando no seu livro " Poesia Vertical" e procurando apenas essas explosões como uma chuva de meteoritos.



A veces me parece...

A veces me parece
que estamos en el centro
de la fiesta
sin embargo
en el centro de la fiesta
no hay nadie.
En el centro de la fiesta
está el vacío.
Pero en el centro del vacío
hay otra fiesta.


Não resisto à tradução para encontrar novas sonoridades:















Às vezes parece-me
Que estamos no centro
Da festa
No entanto
No centro da festa
Não há nada
No centro da festa
Está o vazio
Porém no centro do vazio
Há outra festa.







quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O Amante Japonês - Armando Silva Carvalho


Tive a sorte de me deparar inesperadamente com O Amante Japonês de Armando Silva Carvalho na livraria Bertrand e de poder desfrutar da sua poesia singular e intensamente humana.

Com esta obra poética o autor venceu, unanimemente, o Grande Prémio da Poesia 2008 da Associação Portuguesa de Escritores/CTT. Entre Lisboa e Peniche, de Outubro de 2007 a Fevereiro de 2008, o poeta criou 67 poemas cujo motivo se encontra sobretudo na problemática existencial e no amor desmascarado de qualquer pudor ou preconceito social. Apresenta alguns poemas que partem de personalidades várias por quem demonstra absoluta admiração tais como Camilo Pessanha, Herberto Hélder, Novalis, William Blake, Ricardo Wagner, Luiz Pacheco, Carlos de Oliveira, Manuel Freitas e também Apóstolo João.
Inscrevo nesta página dois poemas que muito me impressionaram pela sua dimensão humana tocante inscrita numa verdade poética retumbante que lhes confere uma universalidade inquestionável. Os dois poemas entendem-se lado a lado, justificando o título escrupuloso desta magnífica colectânea onde, noutros tantos poemas, pude verificar muita influência de Pessoa-Campos.


1º poema:


Seishu, um nome tão ligeiro na voz
Que o vento cedo levou para as colinas
Onde se esconde o choro
E o desespero tem uma morada
Filosófica.

Como posso falar-te,
Sem cheirar a matéria ardida,
Da sua destreza em aplainar
A eriçada pele dos meus sentidos?

Nesses anos dourados, o Japão era um livro
De minúcias, jardins de pedra e areia,
E toda a natureza me servia
A delicada chuva de uma estranha ciência
Em pétalas pelo meu corpo.

Tu ficavas de fora, como animal antigo
Preso ao saibro estéril do mundo inferior,
Ligado ao útil, rasteiro, arsenal dos artefactos.
Sem luz interior.

Repito dentro de ti o seu nome
Seishu.

Para que aprendas comigo a língua da lembrança,
A que traz consigo a mágoa de nos sabermos
Deixados no porão dos sonhos e sem mãos que nos busquem
No correr da água irrepetível.

2º poema:

A primeira vez que te raptaram
Andava eu a pensar trocar-te por algo de mais novo
E atraente.

Contigo cantei outros. Contigo desejei outros.
Contigo obediente à minha ambição
Descontrolada
Acenava a mão prostituída aos que nos viam passar
Num silêncio pesado de amantes
Desavindos.

Parecíamos um casal de velhos ilegais e sem família,
De leões amargos e cativos
Lambendo e exibindo ao sol as suas feridas.

Não sabia sequer como pedir-te
Que fosses pelo mundo em pobre serventia
A levar-me aos enterros, à casa dos amigos atrasados
Que não te ouvem sequer quando tens sede.
Vergonha de mim próprio, ao usar-te em casamentos
Como parente e pelintra.

A primeira vez que te raptaram
Eu quase endoideci à chuva da manhã
Ao olhar o teu lugar vazio na rua.
Senti-me tão pequeno e nu o sexo murcho
Olhado assim parado pela vizinhança.

Eras a minha Europa e eu não via o toiro em fuga.
Ou nada disso: Morrias
Sem que eu te visse o rosto, as quatro rodas tristes,
O volante ardido pelo sol baço da vida.
Tu eras o país que me fugia.

Como primeira morte de paixão funesta
Eu não tinha respiração para regressar ao mundo
Não sabia andar, criança de mim mesmo
Às cegas, cobria-me de insultos.



terça-feira, 11 de agosto de 2009

Her morning Elegance - Oren Lavie

Ao Afonso
A manhã é o tempo da mais forte
expectativa frente ao dia que começa.
Da janela, tudo se esconde por detrás
dos dedos em leque que cobrem o primeiro
rasgo de um jacto no céu. O ar do verão é
ainda tão leve na sua queda que se apega
aos meus ombros negros da noite e
lhes lambe as últimas cinzas. De braços
levantados num telhado pontiagudo,
dou sinal de mim e de ti
aos raros automobilistas
que circundam a rotunda,
que seguem sem luzes,
num trajecto puramente mecanizado,
sem ver o acordar das árvores. O meu acenar
mais alto toca a espuma das nuvens e empurra-as
para o outro lado da cidade adormecida.
Hoje não quero chuva.
A tua manhã é diferente. Tem uma luz
mais dourada porque filtrada pela portada
entreaberta do sonho e ao ver-te sossegado
na tua pequena caminha,
pressinto que este dia vai ser maior
do que os outros
só por ser o dia do teu aniversário.

sábado, 8 de agosto de 2009

Nocturno Indiano - Antonio Tabucchi


Acabei de ler recentemente Nocturno Indiano, traduzido por Gaëtan Martins de Oliveira, com revisão do próprio António Tabucchi e confesso que gostei de muitos pormenores deste romance. A epígrafe que abre a obra, da autoria de Maurice Blanchot, merece ser relida:

" Les gens qui dormente mal apparaissent toujours plus ou moins coupables: que font-ils? Ils rendent la nuit présente."

(As pessoas que dormem mal parecem sempre mais ou menos culpadas. O que fazem elas? Tornam a noite presente.)

Talvez seja esta a grande culpa de Roux, a personagem principal deste romance, um homem que vai à Índia sob o pretexto de saber de um antigo amigo desaparecido, Xavier Janata Pinto, vivendo a noite indiana de forma intensa, num trajecto espiritual de procura de si mesmo. O texto está escrito em primeira pessoa, numa espécie de registo diarístico das pequenas histórias que vão surgindo, protagonizadas por este viajante em constante deslocação e pelas personagens caricatas com que se vai cruzando.

Numa nota introdutória António Tabucchi deixa claro que “este livro, mais do que uma insónia, é também uma viagem”, também realizada pelo próprio autor, pelo que lhe pareceu bem fornecer um índice dos lugares por que passou, cedendo ao leitor um registo topográfico que vai construindo o romance, desde a morada dos hotéis, aos apeadeiros rodoviários ou até mesmo às praias. Uma página que poderá ser bastante útil para quem pretenda reconhecer na Índia esta leitura de Tabbuchi.

Entre a miséria explícita logo nas primeiras páginas e o luxo exclusivo de poucos, Roux tenta encontrar-se neste mistério inequívoco, em muito possibilitado pela magia dos vários personagens com quem vai dialogando - Vanila Sar, uma prostituta do Hotel Khajuraho, um médico com o nome de um deus com rosto de elefante, um devoto jainista às portas da morte, Margareth, o Director de Theosophical Society, um monstro Arant com seu irmão, o próprio fantasma do vice-rei da Índia, um ex-carteiro de Filadélfia,Tommy e finalmente Christine, uma fotógrafa simpática. De Bombaim a Goa este viajante vai atrás, afinal, de si mesmo, encontrando-se nas palavras dele e nas dos outros, desconhecidos. Algumas também acabam por fazer o leitor encontrar-se a si própria nesta leitura.

«O corpo humano poderia perfeitamente não passar de uma aparência. Esconde a nossa realidade, pesa sobre a nossa luz ou a nossa sombra.»

«Referia-me aos corpos (...) talvez sejam uma espécie de malas, transportando-nos a nós próprios.»

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A Borboleta de Nabokov

Fotografia de Lia G.
A fotógrafa espanhola Lia G., que está em exposição na Colorida Galeria de Lisboa até dia 14 de Agosto, consegue surprender-nos com uma foto simplesmente bela. Apetece-me comentar que quando a beleza é absoluta dá vontade de prová-la. De resto, a mim também me apetece ir ver esta exposição, intitulada "Íntimas" que apresenta muitas fotografias interessantes como esta.
Lembrei-me da borboleta de Nabokov e da alegria que deve ser aliar a paixão da escrita à obsessão por borboletas, como acontece com Vladimir Nabokov. Transcrevo parte da crónica de António Mega Ferreira sobre a borboleta azul:
"A Borboleta de Nabokov
No princípio dos anos quarenta o escritor Vladimir Nabokov descobriu, ao acaso dos seus passeios por uma ampla zona de pinhal próxima de Albany, no estado de Nova Iorque, que uma espécie de borboletas especialmente abundante na área ainda não estava classificada. Chamou-lhe Lycaeides melissa samuelis, e com isso, antes mesmo que a celebridade o consagrasse com a publicação do seu romance Lolita, em 1958, Nabokov entrou na história da entomologia. Trinta anos depois, no princípio da década de setenta, Nabokov estava convencido de que a sua descoberta era bastante mais revolucionária do que pensara: a borboleta azul, a Karner azul, não era apenas uma variante de uma família mais vasta, mas uma espécie autónoma, relacionada especificamente com o habitat do pinhal de Albany.
Em 1988, mais de dez anos após a morte de Nabokov, um artigo publicado pela revista Natural History lançou o grito de alarme: a borboleta de Nabokov poderia estar ameaçada, a prazo mais ou menos previsível. A construção de um complexo comercial em parte da área onde tradicionalmente a Karner se desenvolvia viria perturbar o equilíbrio ecológico de forma tão dramática, que as fontes de subsistência e de desenvolvimento da raríssima espécie acabariam por desaparecer – e, com elas, a própria Karner, que, segundo os especialistas, sobreviveu às profundas transformações ambientais verificadas há 12 mil anos, mas não seria capaz de escapar ao cataclismo dos bulldozers e do cimento."
António Mega Ferreira, A borboleta de Nabokov, Editorial Notícias
Para mais curiosidades sobre a investigação levada a cabo por Nabokov, cientista, veja-se a página: http://www.nabokovmuseum.org/en/news/17/

Encontro a casa num tronco - Fiama Hasse Pais Brandão


50
Encontro a casa num tronco,
A habitação que me surpreende.
É um corpo estranho na árvore.
A floresta está tão próxima
Que é lisa como um reposteiro.
Morro sem esta exalação
da garganta das folhas.
As línguas que elas agitam
Que lançam um bafo verde exaltante.
As gavinhas que sustentam
o soalho rodeiam-me o tornozelo.
Assim estou no ar mas equilibro-me.
Não sendo igual a uma ave
Envolvo-me na folhagem. Para dormir
acordo. O cicio das paredes,
que era como o das folhas.

O musgo, símbolo do chão,
Está quente como a pele. As comparações
Obcecam-me. Não aprendo deste
modo as essências. Mas está tudo
aqui. Tudo, mesmo
na ignorância. Tudo pegado
a tudo. Ao odor, às vespas.
A inteligência que se orienta
neste labirinto. As coisas que
estão e se deterioram. Bicas
de água límpida, chumbo.

Este poema pertence a um dos livros de poesia mais preciosos que guardo em casa. "Obra Breve" (título aparentemente irónico), com um prefácio de Eduardo Lourenço (outra preciosidade do livro). Com a publicação de Obra Breve (1991), Fiama reorganiza toda a sua obra poética, incluindo alguns inéditos, imprimindo-lhe a ideia de poesia como processo vivo. As suas páginas impedem-nos de sair de casa sem o remorso de não ler estes poemas ininterruptamente. Cito palavras do prefácio de Eduardo Lourenço em que vejo toda a verdade: "Ninguém entra na hermética paisagem de Fiama como em casa. (...) A poesia de Fiama é tão clara e obscura como o mundo onde se descobre como olhar misteriosamente intruído pelo percurso que o solicita. Um mundo ao mesmo tempo anterior ao olhar e esperando por ele para ser decifrado. Esse mundo não é um cosmos pleonasticamente harmonioso, desde sempre votado à contemplação e a um óbvio sentido. É só um mundo escrito em hieróglifos, finito e inesgotável na sua minúcia. O poema não vem elucidar o mistério da realidade sem cessar bifurcante onde a atenção de Fiama desembarca como no mais desconhecido dos mundos: vem reconhecê-la. Um mundo anterior ao verbo que o descreve e convoca, que nunca foi nomeado fora da voz que no-lo diz. Melhor seria dizer, do poema que o cria pela sua própria respiração." Nunca sei (perdoe-me Fiama!) quando leio estas e outras palavras de Eduardo Lourenço, se me apetece retomar o texto poético de que fala ou lê-lo e relê-lo, a ele, crítico da literatura, até à exaustão. Mas é o poema 50 que interessa e um videoclipe de uma intérprete fantástica ( que também pode irritar alguém a qualquer momento, acredito nisso!), chamada Joanna Newson, que nos chama a atenção para o facto de que a realidade também interessa. Um vídeo lindíssimo, com uma harpa que remonta às origens da poesia.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Nocturno de David Mourão-Ferreira

Fotografia de Edgar Martins




NOCTURNO

Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...


Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy....
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.


Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...


Um nocturno assim tão simples mostra-nos que a noite desenha a perda e, em simultâneo, o encontro do poeta consigo próprio. Não era necessário Debussy para este poema ser uma música para os meus sentidos.

Às fotos de Edgar Martins (de quem tanto gosto) escrevo este apontamento:

"Qualquer coisa contra a noite ganha o seu tamanho."

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Luz Indecisa




Sou admiradora das crónicas que José Mário Silva escreve para a revista Ler. Gosto da sua expressão criativa que nunca se anula em detrimento do assunto ou da personalidade maior sobre que se debruça. Como um avião a jacto que sobrevoa uma cidade à noite, entre o texto literário e o noticioso, ele vai dando um espectáculo de luzes e velocidade a que vale sempre a pena assistir. Foi por isso que comprei o último livro de poesia dele com alguma pressa.



De todos os poemas de Luz Indecisa houve dois de que gostei particularmente: Primeiro Soneto Nocturno e Segundo Soneto Nocturno. Os títulos convocam, com originalidade, sonetos como música clássica e um tempo de solidão absoluta para lê-los ou ouvi-los. A memória do sujeito poético deixa de ser uma "luz indecisa" para se voltar com um afecto desprendido, nomeadamente na reprodução em discurso directo das palavras de quem ama, para tristezas instantâneas de um quotidiano que captou num sofrimento que faz também seu. O tema da morte na poesia nem sempre é tratado com esta beleza.
Houve um momento em que hesitei em dizer que preferia o Segundo Soneto Nocturno pois achei que a sua beleza era um prolongamento do Primeiro. No entanto a referência ao texto dentro do texto, as duas vozes poéticas entrecruzadas, a assunção desoladora da personagem (que adivinho feminina) da inutilidade da poesia, a linguagem metapoética a questionar o seu sentido, a metáfora do anjo, a surpresa rasgada do "sismógrafo" para revelar a pequenez de que nos revestimos, ..., empurram-me para este soneto, que de soneto só preserva o exacto número de versos em cada estrofe. A ler.


Primeiro soneto nocturno


Dizias: nunca da esperança verei o rosto,
nem do medo o corpo vago e fugidio.
Dizias: a noite é a escuridão em todas
as janelas, gatos e lixo, o candeeiro


da rua (com a lâmpada partida). Sobre
o tampo da mesa, na cozinha, alinhavas
os comprimidos pelas cores: vermelho,
azul, malva, cores da madrugada tão


distante como as árvores da infância,
cheias de corvos. Dizias: esta doença
é a própria noite, um cão a devorar-me


as entranhas dentro do escuro. Lá fora
o som das ambulâncias transportando,
aflitas, outros mortos mais solícitos.


Segundo soneto nocturno

Dizias; a poesia não nos protege
nem salva, é só um consolo inútil.

As folhas rasgadas ardiam melhor,
o fogo contorcia as estrofes, brilho



negro o destas cinzas. Dizias: foi
ontem que o anjo me veio arrancar
os olhos, amanhã virá à procura do
coração. Na tua voz, restos de vidro


moído, metal gasto, ferrugem. Lá
em cima as estrelas continuavam
a cintilar, indiferentes. Nenhuma


catástrofe que nos aconteça ficará
registada nos sismógrafos. Dizias:
afinal não há anjo, são só palavras.


Apetece-me chamar Hélène Grimaud, que vestida de negro, interpreta como ninguém (esta é a verdade!), sem pudor artístico, numa entrega demiúrgica, Bach.


Hélène Grimaud - Bach

Flor de papel dourado





Mad Rush - Philip Glass

Flor de papel dourado

O romper da madrugada
Banha-me o corpo
Num cantar de aves
Em círculo fechado
Que vai vagarosamente
Baixando o seu voo
E pousa como um tesouro
Sobre o meu ventre escavado
Uma flor de papel dourado
Lembrando a tua chegada.




Este é um poema inspirado no belo nome do café que frequentava Magritte. Este pássaro de céu e nuvens também está lá. "Mad Rush" de Philip Glass, envolve-o na perfeição.



Le Séducteur, Magritte, 1953

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

La Fleur en Papier Doré - Rue Alexiens 55, Brussels, Bélgica








Que lindo café que Magritte frequentava. Li numa página da net consagrada a este lugar de culto que Fleur en papier doré foi remodelado mas que se manteve com inteligência a sua alma de "bistrot" histórico. Foi fundado por G. Van Bruaene como uma espécie de cabaré e num passado recente era habitualmente frequentado por Magritte e tido como ponto de encontro dos surrealistas de Bruxelas (Plisnier,Marien,Scutenaire, Mesens,...). O seu interior conserva uma decoração heteróclita feita de "objectos-disparates", colagens e caricaturas. Funcionou como abrigo dos encontros " Permanences Poétiques" e foi de 1981 a 2000 sede social da Associação "Grenier Jane Tony". Que sítio encantador para beber uma taça de vinho com amigos... A arte surrealista desprende-se das paredes e dos objectos em exposição de forma explícita. E o tom dourado do papel de baptismo deste café invade o ambiente e transporta-nos para um templo antigo com cheiro a pétalas de rosa.

A excentricidade e a provocação de Magritte lêem-se neste café num aviso artístico que é assim ( e faz lembrar a obra "Os dois Mistérios" onde pinta um cachimbo e o nega como realidade, imediatamente a seguir com a frase: "Ceci n'est pas une pipe."):

Magritte faz equivaler as palavras às imagens e parte do pressuposto de que "Palavras ou imagens é a mesma coisa." Acrescenta que se a poesia é uma arte particular baseada na linguagem (tal como disse Paul Valéry), isso deve ser válido tanto para a poesia escrita como para a poesia em imagens. Magritte aposta em muitos trabalhos artísticos na inversão plausível do sentido habitual das coisas, provocadas por paradoxos, tal como na poesia escrita. Nele encontramos duas posturas pois para si " a inteligência da exactidão não impede o prazer da inexactidão". Gosto particularmente da maneira como ele institui a verdade na arte e como torna a realidade numa fantasia absoluta. Um pedaço de nuvem a entrar pela porta entraberta de sítio nenhum. (Se pudesse pendurava este quadro no quarto da minha amiga Anabela para ela ter sempre à cabeira a nuvem que a deslumbra e uma porta aberta para a sua metafísica. Cedo-o em ponto grande para impressionar bastante.)

Magritte fascina-me tanto com a sua obra como a verdadeira poesia. E é a sua procura constante de pontes entre a realidade e o mistério que o torna naturalmente poético. Nas páginas do Livro Magritte de Jacques Meuris, editado pela Tashen (que ofereci ao Paulo para me ofertar a mim mesma, confesso) tive a oportunidade de conhecer mais um pouco da sua personalidade artística e apercebi-me, entusiasmada, de que ele se correspondeu com André Breton (o autor do Manifesto Surrealista) durante muito tempo. No entanto nos finais dos anos 50, Magritte decepciona-se fortemente com Breton pois acha que ele deixou de procurar a "pedra filosofal" desta estética, revelando-se assim um guardião do surrealismo mais dogmático do que ele. O facto de em tempo de desilusão, nascida do contexto de guerra, Magritte fazer prevalecer na sua obra o sol sobre a noite, confere-lhe uma força revolucionária tão grande que o distingue das obras de muitos outros pintores surrealistas.Fiquei a gostar ainda mais dele por sentir que as suas convicções artísticas ultrapassam o domínio da arte, invadindo a sua vida de forma que não se distingue a convicção artística da convicção humana. Gosto quando ambas se confundem porque pressinto que só dessa forma ela é pura.