quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Encontro a casa num tronco - Fiama Hasse Pais Brandão


50
Encontro a casa num tronco,
A habitação que me surpreende.
É um corpo estranho na árvore.
A floresta está tão próxima
Que é lisa como um reposteiro.
Morro sem esta exalação
da garganta das folhas.
As línguas que elas agitam
Que lançam um bafo verde exaltante.
As gavinhas que sustentam
o soalho rodeiam-me o tornozelo.
Assim estou no ar mas equilibro-me.
Não sendo igual a uma ave
Envolvo-me na folhagem. Para dormir
acordo. O cicio das paredes,
que era como o das folhas.

O musgo, símbolo do chão,
Está quente como a pele. As comparações
Obcecam-me. Não aprendo deste
modo as essências. Mas está tudo
aqui. Tudo, mesmo
na ignorância. Tudo pegado
a tudo. Ao odor, às vespas.
A inteligência que se orienta
neste labirinto. As coisas que
estão e se deterioram. Bicas
de água límpida, chumbo.

Este poema pertence a um dos livros de poesia mais preciosos que guardo em casa. "Obra Breve" (título aparentemente irónico), com um prefácio de Eduardo Lourenço (outra preciosidade do livro). Com a publicação de Obra Breve (1991), Fiama reorganiza toda a sua obra poética, incluindo alguns inéditos, imprimindo-lhe a ideia de poesia como processo vivo. As suas páginas impedem-nos de sair de casa sem o remorso de não ler estes poemas ininterruptamente. Cito palavras do prefácio de Eduardo Lourenço em que vejo toda a verdade: "Ninguém entra na hermética paisagem de Fiama como em casa. (...) A poesia de Fiama é tão clara e obscura como o mundo onde se descobre como olhar misteriosamente intruído pelo percurso que o solicita. Um mundo ao mesmo tempo anterior ao olhar e esperando por ele para ser decifrado. Esse mundo não é um cosmos pleonasticamente harmonioso, desde sempre votado à contemplação e a um óbvio sentido. É só um mundo escrito em hieróglifos, finito e inesgotável na sua minúcia. O poema não vem elucidar o mistério da realidade sem cessar bifurcante onde a atenção de Fiama desembarca como no mais desconhecido dos mundos: vem reconhecê-la. Um mundo anterior ao verbo que o descreve e convoca, que nunca foi nomeado fora da voz que no-lo diz. Melhor seria dizer, do poema que o cria pela sua própria respiração." Nunca sei (perdoe-me Fiama!) quando leio estas e outras palavras de Eduardo Lourenço, se me apetece retomar o texto poético de que fala ou lê-lo e relê-lo, a ele, crítico da literatura, até à exaustão. Mas é o poema 50 que interessa e um videoclipe de uma intérprete fantástica ( que também pode irritar alguém a qualquer momento, acredito nisso!), chamada Joanna Newson, que nos chama a atenção para o facto de que a realidade também interessa. Um vídeo lindíssimo, com uma harpa que remonta às origens da poesia.

1 comentário:

Anabela disse...

amiguinha

gostei muito da apreciação que fazes da Fiama mas acredita que por mais volta que dê ao poema, acho-o bastante complicado. Talvez não o consiga abarcar... Gostei das tuas anotações e nas de E. Lourenço que dás a conhecer ao leitor. Fiquei curiosa com a Sra Fiama: porque titulou de 50 o seu poema? (o nome da Fiama faz-me pensar de imediato numa mulher extravagante, não sei se assim é... ,mas gostava de a ~saber moradora no bairoo do Sr M. Tavares).
A música singela é agradável embora a voz da cantora possa tornar-se insuportável se ouvida repetidas vezes. Contudo, a música é bela e de facto poética. Muito boa escolha para colocar neste post.
Beijos
Anabela