terça-feira, 4 de agosto de 2009

Luz Indecisa




Sou admiradora das crónicas que José Mário Silva escreve para a revista Ler. Gosto da sua expressão criativa que nunca se anula em detrimento do assunto ou da personalidade maior sobre que se debruça. Como um avião a jacto que sobrevoa uma cidade à noite, entre o texto literário e o noticioso, ele vai dando um espectáculo de luzes e velocidade a que vale sempre a pena assistir. Foi por isso que comprei o último livro de poesia dele com alguma pressa.



De todos os poemas de Luz Indecisa houve dois de que gostei particularmente: Primeiro Soneto Nocturno e Segundo Soneto Nocturno. Os títulos convocam, com originalidade, sonetos como música clássica e um tempo de solidão absoluta para lê-los ou ouvi-los. A memória do sujeito poético deixa de ser uma "luz indecisa" para se voltar com um afecto desprendido, nomeadamente na reprodução em discurso directo das palavras de quem ama, para tristezas instantâneas de um quotidiano que captou num sofrimento que faz também seu. O tema da morte na poesia nem sempre é tratado com esta beleza.
Houve um momento em que hesitei em dizer que preferia o Segundo Soneto Nocturno pois achei que a sua beleza era um prolongamento do Primeiro. No entanto a referência ao texto dentro do texto, as duas vozes poéticas entrecruzadas, a assunção desoladora da personagem (que adivinho feminina) da inutilidade da poesia, a linguagem metapoética a questionar o seu sentido, a metáfora do anjo, a surpresa rasgada do "sismógrafo" para revelar a pequenez de que nos revestimos, ..., empurram-me para este soneto, que de soneto só preserva o exacto número de versos em cada estrofe. A ler.


Primeiro soneto nocturno


Dizias: nunca da esperança verei o rosto,
nem do medo o corpo vago e fugidio.
Dizias: a noite é a escuridão em todas
as janelas, gatos e lixo, o candeeiro


da rua (com a lâmpada partida). Sobre
o tampo da mesa, na cozinha, alinhavas
os comprimidos pelas cores: vermelho,
azul, malva, cores da madrugada tão


distante como as árvores da infância,
cheias de corvos. Dizias: esta doença
é a própria noite, um cão a devorar-me


as entranhas dentro do escuro. Lá fora
o som das ambulâncias transportando,
aflitas, outros mortos mais solícitos.


Segundo soneto nocturno

Dizias; a poesia não nos protege
nem salva, é só um consolo inútil.

As folhas rasgadas ardiam melhor,
o fogo contorcia as estrofes, brilho



negro o destas cinzas. Dizias: foi
ontem que o anjo me veio arrancar
os olhos, amanhã virá à procura do
coração. Na tua voz, restos de vidro


moído, metal gasto, ferrugem. Lá
em cima as estrelas continuavam
a cintilar, indiferentes. Nenhuma


catástrofe que nos aconteça ficará
registada nos sismógrafos. Dizias:
afinal não há anjo, são só palavras.


Apetece-me chamar Hélène Grimaud, que vestida de negro, interpreta como ninguém (esta é a verdade!), sem pudor artístico, numa entrega demiúrgica, Bach.


Hélène Grimaud - Bach

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