domingo, 30 de janeiro de 2011

JANELAS DO MUNDO

TEMPO

O tempo constrói ao redor da janela
artimanhas como armadilhas 
que apanham a inexorabilidade
do seu passar em dias. Inteiro, ele vai
passando e não espreita o dentro das casas
nem sequer pressente que os seus passos
são sentidos a cada minuto a cada segundo
numa sensação luminosa lúcida e certa
de quem o recebe sem ressentimento mesmo sabendo
que ele produz essa teia de aranha
mesmo comprovando essa passagem discreta
 imparável a que muitos já não podem assistir.


in Surto de escrita

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

Isabel Mourão
O CERCADO

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado


Ana Paula Tavares, Dizes-me coisas amargas como os frutos

sábado, 29 de janeiro de 2011

QUANDO - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.


Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.


Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - NAVEGAÇÕES



É tão fascinante a poesia suprema de Sophia como a mulher que está por detrás dela. Apetece declamar, apetece o silêncio das palavras dela.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Depois de tantos anos
ver-te
Queimando incenso num templo

Finjo não entender
O desaparecimento da luz
Que me era destinada
E regresso a casa por outro caminho.


Luís Falcão, Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos, Assírio e Alvim

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

MARGARIDA VALE DE GATO - MULHER AO MAR

Declaração de Intenções



Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.


Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita


um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.


Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar










JANELAS DO MUNDO

Julia Kan, The way out

Há caminhos que nunca serão experimentados, apesar do desejo ser muito.

domingo, 23 de janeiro de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA


Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?
A tua perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.
A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 22 de janeiro de 2011

WILLIAM FAULKNER - A RECOMPENSA DO SOLDADO

Publicado em 1926, «A Recompensa do Soldado« é a primeira obra de Faulkner e um dos mais memoráveis romances sobre a Primeira Guerra Mundial. Relata e história de um veterano que regressa a casa ferido, seguindo a vida de três soldados e o impacto do seu regresso sobre a vida das pessoas, particularmente das mulheres que foram deixadas para trás.

É a história de Donald Mahon que regressa muito marcado pela guerra, a primeira guerra mundial, à sua cidade natal, Chalerstown, na Geórgia.
Um livro que nos dá a conhecer como que a primeira voz de William Faulkner, num estilo que já anuncia a sua grandiosidade. Considerada uma história de esperança, humor negro e desespero.

Um excerto do livro:
«Donald Mahason jazia silenciosamente consciente de uma Primavera invisível e esquecida, de verdura, nem recordada nem esquecida. Passado um bocado, o nada em que vivia voltou a absorvê-lo inteiro, mas inquietantemente. Era como o mar pelo qual não podia por completo passar nem do qual completamente se afastar. O dia transformou-se em tarde, transformou-se em entardecer e numa noite iminente: noite como um navio, de velas cor de crepúsculo, que sonhava navegando pelo mundo fora, escuro em direcção à escuridão. E, de repente,  ele descobriu que estava a passar do mundo da escuridão, em que vivera durante um tempo em que não conseguia recordar, de novo para um dia que há muito tinha passado, que já fora gasto por aqueles que viviam e choravam e morriam, e assim, ao lembrar-se dele, aquele dia era só seu: o único troféu que ele roubara ao Tempo e Espaço. Per ardua ad astra.» (Pela adversidade até às estrelas)

William Faulkner, A Recompensa do Soldado, Casa das Letras, p. 290

ANNA CALVI - NO MORE WORDS



Oh, my love...
Parabéns pelo teu dia de aniversário!Uma música que sei que gostas.

ANNA CALVI - FIRST WE KISS



Este é o mais recente amor de P.
«Primeiro estranha-se, depois entranha-se» - disse ele, repetindo as palavras de F. Pessoa para me convencer. Aplica-se, sim senhor. Ouve-se bem alto, ao fim-de-semana, antes de partir em viagem, para se entranhar também muito nas paredes da casa e ressoar na nossa ausência uma voz que valha a pena ouvir.

BLINDFOLD - MORCHEEBA



Há uma grande alegria dentro de Blindfold que passa para dentro do corpo se o deixarmos mole e atento aos sons, como faz qualquer cão que espera o dono.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

ESPERA - EUGÉNIO DE ANDRADE

Pablo Picasso, A Espera
                    
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.


Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

JANELAS DO MUNDO

Chagall, Vue de la fenêtre de zaolchie

Os rostos do interior ou as visões do exterior?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O SILÊNCIO DOS LIVROS

Mnemosyne, deusa grega da memória
"A oralidade exige a verdade, a honestidade necessária à autocorrecção, e a democracia, enquanto partilha comum (…).
O segundo aspecto que ressalta do mito de Fedro não é menos significativo. O recurso à escrita debilita o poder da memória. Aquilo que fica escrito e que, portanto, pode ser armazenado – como na «base de dados» do nosso computador – já não precisa de ser confiado à memória. Cultura oral é aquela que constantemente reactualiza as memórias; um texto, ou uma cultura do livro, autoriza (uma vez mais, esta palavra delicada) todas as formas de esquecimento. A distinção conduz-nos ao cerne da identidade humana e da civilitas. Onde quer que a memória seja dinâmica, onde quer que sirva de instrumento a uma transmissão psicológica e comum, a herança passada transforma-se em presente. A transmissão de mitologias matriciais e de textos sagrados através de milénios, o facto de ser possível a um bardo ou a um aedo reproduzir narrativas épicas extremamente longas sem qualquer suporte escrito atestam o poder da memória, quer do executante, quer do ouvinte. Saber «de cor» - e que manancial de informação nesta locução – supõe a apropriação de qualquer coisa e o ser possuído pelo conteúdo do saber em questão.
Quer isto dizer que autorizamos o mito, a prece ou o poema a virem implantar-se e florir no interior de nós mesmos, enriquecendo e modificando a nossa paisagem interior, tal como, por sua vez, cada uma das incursões através da vida modifica e enriquece a nossa existência. Aliás para a filosofia e estética antigas, a memória era a mãe das musas.
Quando a escrita levou a melhor e os livros facilitaram um tanto as coisas, a grande arte mnemónica caiu no esquecimento. A educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui o saber de cor, que é também um saber do cor(ação), pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós, até quando sonhamos, uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça. Podemos afirmar que tudo o que aprendemos e não sabemos de cor – adentro dos limites das nossas faculdades sempre imprecisas – é aquilo de que verdadeiramente não gostámos. As palavras de Robert Graves mais não fazem o que dizer que «amar de cor(ação)» ultrapassa em muito qualquer «amor pela arte». Saber de cor é entrar em estreita e activa relação com a essência daquilo que somos. Os livros apõem o selo do bem. (…)”

George Steiner, O Silêncio dos Livros, Gradiva, pp. 15, 16, 17

Este é um ensaio que vale verdadeiramente a pena ler. George Steiner partindo do mito e das figuras que    (i)legitimamente se convencionaram iletradas, Jesus de Nazaré e Sócrates, parte do principio de que  a palavra, despida da sua convenção gráfica, é detentora de um poder invencível e de uma autoridade pura. Explica-nos os passos fundamentais que se deram no interior do livro no que respeita à sua «visualização gráfica», aludindo a que, nos primórdios, em muito contribuiram as expectativas escatológicas de um apocalipse próximo que inviabilizasse um tempo suficiente para cultivar a memória oral. Depois do livro, debate a gravidade que pode assumir a entrega às humanidades, aos livros, à arte na medida em que  o homem corre o risco de se desumanizar. Debate o facto de por detrás do silêncio que discorre da genialidade da obra de alguns autores existir, paradoxalmente, tendências políticas desses mesmos autores assustadoras. Um ensaio imperdível cheio de ideias a conhecer e a debater.
Bom para qualquer educador, para qualquer cidadão que goste de arte e, particularmente, de livros e do seu silêncio.

EFTERKLANG



Fios que nos enrolam.
Uma música magnífica que dispensa a imagem...embora goste muito do vídeo.

domingo, 16 de janeiro de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA


Suspendo a mão entre o A e o B,
entre a minha vida e a vida que andará
dentro da minha vida.
E o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando estes mares de sal e carne
onde me afogo
para respirar.

Pedro Tamen, O Livro do Sapateiro, D. Quixote, p. 34

JANELAS DO MUNDO


Cada janela tem a particularidade de provocar em mim a ideia de uma superioridade descomunal sobre o real. Uma mão aberta encobre-o como um vestido o faz ao corpo e fá-lo parecer outro, menos grandioso e obediente.

sábado, 15 de janeiro de 2011

MINHA CABEÇA ESTREMECE - HERBERTO HELDER



Incomparável, a poesia de Herberto Helder ainda mais singular com este fundo musical. Deixo também as palavras para ler sem música,nuas, perfeitas, agredindo qualquer sensibilidade adormecida, entediada. E torno-me toda estupefacção cada vez que leio e entendo o poema:

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


In «Ou o Poema Contínuo», Assírio & Alvim, 2001

This light holds so many colours - Rodrigo Leão/ Stuart Staples



É um encanto de música, esta que o Rui sugeriu.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O LIVRO DO SAPATEIRO - PEDRO TAMEN

Um pequeno livro com imagens poéticas arrebatadoras sobre a obra que o ser humano faz, por vezes, por instinto, como no caso do poeta Pedro Tamen.
Deixo o poema de abertura:

Iremos procurar a razão da giesta
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

EXCERTOS QUE FICAM


 Um romance fabuloso sobre o amor desmedido aos livros, às bibliotecas e à literatura.Um romance que confirma que os livros podem mudar o destino das pessoas.


«Não é assunto irrisório. Espero que me entenda. Imagine por um momentoque, ao longo da sua vida, conseguiu conservar um conjunto de recordações da sua infância; sensações, cheiros, a luz que iluminava o cabelo da sua mãe, as primeiras aventuras na rua, impressões mais ou menos caóticas de algo insondável mas que forma, ao fim e ao cabo, uma memória da sua infância, com os seus terrores, alegrias e emoções. Depois tem um registo do seu nascimento. A escola ordena. Os professores, os colegas, as primeiras aventuras, e assim continuou a acumular recordações de cada uma das suas experiências até chegar à actualidade.

«Um dia, de modo inesperado, perde a ordem das recordações. Elas continuam lá, só que se tornaram inalcançáveis. Quando procura a imagem da sua primeira mulher, encontra um sapato que um cão mordia num longínquo baldio da sua infância. Quando procura o rosto da mãe, descobre o de um tipo antipático numa obscura repartição pública. A sua história acabou. Reflecti sobre isso, enquanto procurava compreender o que Carlos tinha feito. O pior de tudo é que os factos estão aí, à espera de os encontrarmos. E não sabemos como fazê-lo. Não se trata do esquecimento, que cobre piedoso, o que não consegue tolerar. É uma memória selada, um apelo obsessivo a que não conseguimos responder. Nem sequer possui o ficheiro temático que desprezou, em busca de um novo sistema, mais complexo, mas ao mesmo tempo mais frágil.

«O facto é que levou os livros para Rocha. Para a franja de areia entre a lagoa e o mar. Uma viagem penosa, porque os livros tiveram que percorrer mais de duzentos quilómetros em vários camiões cobertos. Entraram, seguramente, pelo caminho de terra e depois foram trasladados de carroça pelo areal até ao local onde se erguia a quincha aberta, quase em cim da praia.

«Que julga que fez com eles? Encarregou-se de conseguir um pedreiro da zona, um desses operários desocupados, capazes tanto de trabalhar a madeira quanto o cimento, de colocar uma janela ou um telhado de palha atado com arames, de martelar pregos grossos como dedos, de fazer uma perfuração de água ou de britar a pedra, com resultados sempre imprevisíveis e incertos. Homens que não fazem perguntas e fazem o que se lhes pede, seja como for, enquanto houver soldo, porque eles não vão viver aí.

«Carlos pediu ao pedreiro de Rocha que enterrasse na areia os pontais da armação das janelas e os pontais de duas portas, e que, com uma parede de pedra, lhe construísse uma chaminé. Quando a chaminé ficou pronta, assente num dos lados do quincho, e as janelas e as portas ficaram fixas, pediu que lhe fizesse uma argamassa de cimento. E em cima do cimento – compreenderá que dizer-lhe isto meproduza uma sensação de horror – pediu-lhe que usasse os seus livros como tijolos.

«Assim mesmo, como está a ouvir. Sob o olhar, entre piedoso e indiferente, do pedreiro que procedia à mistura, dedicou-se a seleccionar, da montanha de livros despejada pela carroça na areia limpa e branca, aqueles que deviam protegê-lo do vento, da chuva, da inclemência do Inverno. Já não lhe importava a amizade ou a inimizade entre os autores, as afinidades ou contradições entre Espinosa , a botânica do Amazonas e a Eneida de Virgílio; se as encadernações eram boas ou medíocres, se tinham gravuras ou pranchas, se estavam intonsas ou se se tratava de incunábulos. Apenas a proporção de cada volume, a grossura, a dureza das capas para resistir à argamassa de cal, cimento e areia. O pedreiro colocou o tomo enciclopédico no ângulo de um dos postes e contou os volumes da colecção, alinhando-os em cima do fio que lhe servia de guia.»

Carlos María Domínguez, A Casa de Papel, Asa, pp. 53, 54, 55, 56.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Mais informações sobre este livro que reúne História e linguagem poética e cujo título é uma frase de Rudyard Kipling:

http://www.viabooks.fr/article/parle-leur-de-batailles-de-rois-et-d-elephants-de-mathias-enard-1792

Résumé officiel de l'éditeur:



13 mai 1506, un certain Michelangelo Buonarotti débarque à Constantinople. A Rome, il a laissé en plan le tombeau qu'il dessine pour Jules  II, le pape guerrier et mauvais payeur. Il répond à l'invitation du Sultan qui veut lui confier la conception d'un pont sur la Corne d'Or, projet retiré à Leonardo da Vinci. Urgence de la commande, tourbillon des rencontres, séductions et dangers de l'étrangeté byzantine, Michel Ange, l'homme de la Renaissance, esquisse avec l'Orient un sublime rendez-vous manqué. Par l'auteur du très remarqué "Zone" (prix Décembre 2008 et prix du livre Inter 2009).

(Cuidado com os livros! - digo eu.)

«... de todas as formas naturais [...] a quantidade é a que mais abstrai da matéria e que mais dela é separável»

Roger Scruton, Breve História da Filosofia Moderna

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

JANELAS DO MUNDO

«Aquela janela alta tinha, no fundo, uma altura feita ao milímetro para permitir uma especialização do olhar, um olhar que conseguia ver quinhentas pessoas e também, se necessário, mergulhar apenas sobre uma, e ver este corpo enquanto exemplar, ampliando-o através de uma atenção precisa. Quem construíra aquelas janelas, com aquela localização, naquele andar concreto do edifício, percebia certamente não apenas de arquitectura mas também de política.»

Gonçalo M. Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Caminho, p. 139

OBRA POÉTICA- SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

«A presente edição, agrupando pela primeira vez num único tomo a obra poética da autora, segue e actualiza os critérios de fixação de texto adoptados na segunda das referidas séries, a série das edições «revistas». Publica-se igualmente, neste volume, um conjunto de poemas dispersos em revistas, em livros colectivos, em jornais e num cartaz, desde textos que remontam à primeira fase da produção de Sophia, dos anos 1940, até aos últimos poemas escritos em 2001. Alguns destes textos já foram dados a conhecer na antologia Mar, a partir da 5.a edição, saída em 2004 (selecção e organização de Maria Andresen de Sousa Tavares). Não se inclui no presente volume um número considerável de poemas inéditos, que integram O espólio da autora, e que aguardam publicação em futura edição crítica.»


 
A sensação que tive ao entrar no ano novo com esta Obra Poética nas mãos foi a de possuir uma esfera de cristal que quanto mais se contempla mais  mar traz até nós. Há uma transparência na poesia de Sophia  a que só ela sabe dar voz. Um apelo à origem, um retrocesso ao elemento Água que desfaz toda a sabedoria posterior e nos faz reconhecer em todas as coisas o Índício de toda a emoção humana. Essa simplicidade de uma linguagem pura e desprovida de artificialismo desperta o primeiro sentido de tudo o que nos cerca, fazendo-nos ver a palavra como um naco de verdade submersa nos traços poéticos de um sentir universal. Ler um poema como se entre o meu olhar e as palavras negras inscritas nas folhas brancas se intrometesse um líquido translúcido,quase morno, levemente agitado pelos dedos que apontam as entrelinhas, que apontam as letras...uma sensação de um acordar de verão a entrar na praia cheio de uma luz tão clara que aquece tudo o que se vê, e torna o real numa transcendência à mão da leitura - real daqueles que gostam de pressentir proximamente o golpe da Criação.


UM PÁLIDO INVERNO

Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual




 

domingo, 2 de janeiro de 2011

JANELAS DO MUNDO

ATLÂNTICO

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.

Sophia de mello Breyner Andresen, Poesia