sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

OS MEUS POEMAS


Queria que todos os meus poemas
se tornassem chuva
Primeiro pingos de uma chuva miúda
chuva a crescer chuva a cair
convictamente inspirada
convictamente ateada
chuva sobre os cabelos cada vez menos negros
menos trevas menos dores por todos os dias

chuva fortemente enchente
Queria de repente
tateá- la com um sorriso por abrir
rodar cega a cabeça frente a toda essa enxurrada
e cair nua nesse pulsar marcado de água fria
extasiada a deixar-me penetrar por todas as palavras
que lancei de mim para o nada
como filhas esquecidas em geografias
distantes como a austrália o japão a alegria
Sim queria a cabeça muito carregada dessa água
dessa chuva intensa renunciada por todos

aguda dura fina a escorrer pesada pelo corpo aberto
Queria que todos os meus poemas
se tornassem chuva logo

quando a imensidão da noite entrasse
quando tudo dormisse certo na profundidade
E eu pudesse crescer grande como as horas.


Sakamoto, Rain: http://www.youtube.com/watch?v=alRkPBCfDaY

CARTAS A LUCÍLIO – SÉNECA


Carta 80


«Hoje tenho o tempo todo por minha conta, benesse que fico devendo menos a mim próprio do que à realização de uma “esferomaquia” e à atracção que tal espectáculo exerceu sobre todos os possíveis importunos.. Ninguém virá interromper-me, ninguém impedirá o curso das minhas meditações que assim, com esta certeza, prossegue com maior firmeza. Não ouvirei de vez em quando a porta a abrir-se, não verei afastar-se a cortina do meu gabinete: poderei prosseguir em paz e sossego, o que é tanto mais necessário para quem caminha sozinho seguindo a sua própria via. Não pretendo negar que sigo os meus predecessores; claro que os sigo, mas reservando-me o direito de descobrir, alterar ou abandonar alguma ideia; não sou escravo dos meus mestres, apenas lhes dou o meu assentimento!
Mas creio que falei demais quando me gabei de poder gozar uma tarde de silêncio e um retiro livre de interrupções: agora mesmo me chega aos ouvidos um enorme clamor vindo do estádio, o qual, se me não corta o pensamento, pelo menos o desvia para a consideração do fenómeno desportivo. Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos espectáculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações culturais; enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas. E penso sobretudo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada?! De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar. Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não precisarás de despender um tostão em equipamento! Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti. Para seres um homem de bem só precisas de uma coisa: a vontade. Em que poderás exercitar melhor a tua vontade do que no esforço para te libertares da servidão que oprime o género humano, essa servidão a que até os escravos do mais baixo estrato, nascidos, por assim dizer, no meio do lixo, tentam por todos os meios eximir-se? O escravo gasta todas as economias que fez à custa de passar fome para comprar a sua alforria; e tu, que te julgas de nascimento livre, não estás disposto a gastar um centavo para garantires a verdadeira liberdade? (…)
Mas para quê falar dos outros? Pensa em ti: se quiseres saber quanto vales não atendas aos teus rendimentos, à tua casa ou à tua posição social, olha sim para dentro de ti, em vez de, como agora, acreditares no valor que os outros te atribuem!»
Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009

domingo, 15 de janeiro de 2012