quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O Amante Japonês - Armando Silva Carvalho


Tive a sorte de me deparar inesperadamente com O Amante Japonês de Armando Silva Carvalho na livraria Bertrand e de poder desfrutar da sua poesia singular e intensamente humana.

Com esta obra poética o autor venceu, unanimemente, o Grande Prémio da Poesia 2008 da Associação Portuguesa de Escritores/CTT. Entre Lisboa e Peniche, de Outubro de 2007 a Fevereiro de 2008, o poeta criou 67 poemas cujo motivo se encontra sobretudo na problemática existencial e no amor desmascarado de qualquer pudor ou preconceito social. Apresenta alguns poemas que partem de personalidades várias por quem demonstra absoluta admiração tais como Camilo Pessanha, Herberto Hélder, Novalis, William Blake, Ricardo Wagner, Luiz Pacheco, Carlos de Oliveira, Manuel Freitas e também Apóstolo João.
Inscrevo nesta página dois poemas que muito me impressionaram pela sua dimensão humana tocante inscrita numa verdade poética retumbante que lhes confere uma universalidade inquestionável. Os dois poemas entendem-se lado a lado, justificando o título escrupuloso desta magnífica colectânea onde, noutros tantos poemas, pude verificar muita influência de Pessoa-Campos.


1º poema:


Seishu, um nome tão ligeiro na voz
Que o vento cedo levou para as colinas
Onde se esconde o choro
E o desespero tem uma morada
Filosófica.

Como posso falar-te,
Sem cheirar a matéria ardida,
Da sua destreza em aplainar
A eriçada pele dos meus sentidos?

Nesses anos dourados, o Japão era um livro
De minúcias, jardins de pedra e areia,
E toda a natureza me servia
A delicada chuva de uma estranha ciência
Em pétalas pelo meu corpo.

Tu ficavas de fora, como animal antigo
Preso ao saibro estéril do mundo inferior,
Ligado ao útil, rasteiro, arsenal dos artefactos.
Sem luz interior.

Repito dentro de ti o seu nome
Seishu.

Para que aprendas comigo a língua da lembrança,
A que traz consigo a mágoa de nos sabermos
Deixados no porão dos sonhos e sem mãos que nos busquem
No correr da água irrepetível.

2º poema:

A primeira vez que te raptaram
Andava eu a pensar trocar-te por algo de mais novo
E atraente.

Contigo cantei outros. Contigo desejei outros.
Contigo obediente à minha ambição
Descontrolada
Acenava a mão prostituída aos que nos viam passar
Num silêncio pesado de amantes
Desavindos.

Parecíamos um casal de velhos ilegais e sem família,
De leões amargos e cativos
Lambendo e exibindo ao sol as suas feridas.

Não sabia sequer como pedir-te
Que fosses pelo mundo em pobre serventia
A levar-me aos enterros, à casa dos amigos atrasados
Que não te ouvem sequer quando tens sede.
Vergonha de mim próprio, ao usar-te em casamentos
Como parente e pelintra.

A primeira vez que te raptaram
Eu quase endoideci à chuva da manhã
Ao olhar o teu lugar vazio na rua.
Senti-me tão pequeno e nu o sexo murcho
Olhado assim parado pela vizinhança.

Eras a minha Europa e eu não via o toiro em fuga.
Ou nada disso: Morrias
Sem que eu te visse o rosto, as quatro rodas tristes,
O volante ardido pelo sol baço da vida.
Tu eras o país que me fugia.

Como primeira morte de paixão funesta
Eu não tinha respiração para regressar ao mundo
Não sabia andar, criança de mim mesmo
Às cegas, cobria-me de insultos.



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