segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Gonçalo M. Tavares - O Senhor Juarroz

Elogiar Gonçalo M. Tavares com as palavras que o nosso Prémio Nobel da Literatura lhe dedica no seu blog é a melhor forma que arranjo para confessar toda a admiração e amor literário que sinto quando o leio (qualquer um dos seus textos me deixa ficar num canto qualquer onde me encontre – casa, escola, café, … - de olhos incrédulos com as suas ideias e expressão escrita inusitadas… ainda para mais é para mim uma alegria, verdadeira alegria, saber que ele é da minha geração, nascido no meu distrito de Aveiro, admirador de tantas figuras literárias que também eu admiro… tão próximo de mim em tudo que é inevitável comprar e ler tudo o que vem dele.). Eis as palavras de Saramago que justificaram a aquisição do seu “O Caderno”, obra onde compila os textos escritos para o referido blog, de Setembro de 2008 a Março de 2009.



Março de 2009-08-14
Dia 2
“A nova geração de romancistas portugueses, refiro-me aos que estão agora entre os 30 e os 40 anos de idade, tem em Gonçalo M. Tavares um dos seus expoentes mais qualificados e originais. Autor de uma obra surpreendentemente extensa, fruto, em grande parte, de um longo e minucioso trabalho fora das vistas do mundo, o autor do Sr. Valéry, um pequeno livro que esteve durante muitos meses na minha mesa-de-cabeceira, irrompeu na cena literária portuguesa armado de uma imaginação totalmente incomum e rompendo todos os laços com os dados do imaginário corrente, além de ser dono de uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade, de tal maneira que não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento desfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o Prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.”
pp.209, 210

Também eu tenho pena de não poder dar um abraço de felicitações ao grande Saramago por estas palavras inteligentes que tanto gostei de ler.

Da colecção que intitulou O bairro apetece-me pensar n’ O Senhor Juarroz (o poeta argentino autor do poema “A veces me parece …”).
Gonçalo M. Tavares construiu um projecto de um bairro com os nomes de intelectuais de diversos domínios da cultura universal, não se cingindo apenas à literatura, ( Sr. Rimbaud; Sr. Balzac; Sr. Henri M.; Sr. Corbusier; Sr. Calvino; Sr. Valéry; Sr. Lorca; Sr. Breton; Sr, Wittgenstein; …). Apresenta Pessoa como vizinho de Juarroz e de Pirandello (que fantástico!). É assim que se apropria de nomes de valor incontornável, reconstruindo-os em histórias cheias de humor e ironia, num imaginário que não descura algumas das mais características linhas temáticas das suas obras, reinventando-lhes personalidades. Assim, obtemos de todos esses senhores com "esses" maiúsculos, dados novos, instaurados no universo “deslogicizado” próprio deste autor português incomparável, que os ligam para todo o sempre em ruas vizinhas e os rememoram de maneira única. Apetece-me dizer: Parabéns Sr. M. Tavares pelo seu bairro tão bem arquitectado de palavras. O Sr. M. Tavares supera, afinal, qualquer outro senhor do bairro. Esta é a verdade.

Seleccionei três dos vinte e oito pequenos textos geniais do caderno O Senhor Juarroz que passo a inscrever nesta página (por ordem de preferência):


O relógio

O senhor Juarroz pensou num relógio que em vez de mostrar o tempo mostrasse o espaço. Um relógio onde o ponteiro maior indicasse no mapa o local preciso onde a pessoa se encontrava num determinado instante.
- Então, e o ponteiro pequeno? Que indica? – perguntou a esposa.
- A localização de Deus – respondeu o senhor Juarroz.




A Biblioteca
O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais fácil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a sua biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: Já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática capaz de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a
2/ 9/ 30/ 93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei!, e apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e desistiu desistir do jogo. Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.



Os nomes e as coisas

Para mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objectos.
Metade do seu dia de trabalho passava-o assim a atribuir nome às coisas.
Por vezes, ficava tão cansado com essa tarefa inaugural, que passava a segunda parte do dia de trabalho a descansar.
Quando adormecia os novos nomes das coisas misturavam-se, nos sonhos, com os antigos nomes, e por vezes o senhor Juarroz acordava tão baralhado que deixava cair a primeira coisa que tentava segurar, e essa coisa, da qual por momentos não sabia o nome, partia-se.


De todos os textos, ficaram, com tristeza minha, invisíveis onze dos textos que considero tão geniais como estes, por isso nomeio-os e tiro-lhes os parênteses como se fossem o meu chapéu preferido - O aborrecimento; A gaveta e a utilidade, Viagem longa; Sombras e esconderijos; A música; Duas cadeiras; O árbitro; O cinema; A morte de Deus; A Concentração.

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