domingo, 21 de fevereiro de 2010

Receita para que não murchem (nem se assista à sua agonia, que é obsceno) amores plantados nas margens do rio vida-vidinha

Magritte, A Leitora Submissa

(Há textos a que me submeto irremediavel e inteiramente. Este foi-me oferecido pela Filomena após a sua leitura de "Materiais para confecção de um Espanador de Tristezas" de Ondjaki. Por ser verdade o que me disse (que esta última obra é um esplêndido instrumento contra qualquer tipo de infelicidade), comprei-o duas vezes. É igualmente verdadeiro o facto deste livro ser inspirador da escrita lúdica e uma obra de arte de referência que deve constar em qualquer
oficina de escrita criativa. O ideal seria juntar estas duas personalidades magníficas: Filomena e Ondjaki. Deixo o poema para não o distanciar muito mais do título que o explica).

Há que ser árvore antiga e ter o tronco oco recheado de silêncios e os ramos carregados de palavras frescas e maduras.
É preciso ter cuidados de peixe para desovar carinhos em covas de abraços ao abrigo da boca do Tempo.
Deve haver um princípio activo de Primavera que alcatife o quarto com flores chamadas desejos, sorrisos, beijos, risos.
Não deve faltar a sabedoria dum perito em desminações de mal-entendidos com ferramentas lógicas.
Há que ser pássaro para estar pronto a levantar voo antes que marés amargas inundem as margens de lodo.

Filomena Teixeira
Já agora deixo um dos meus poemas preferidos desse mesmo livro do mesmo maravilhoso Ondjaki. É óptimo ondjakiar lentamente, soprando o mais levemente possível estas palavras obscenas (ou ondjakiscenas?):
O Obsceno, A Obscena
era que: obsceno, ou obscena, eram palavras bonitas.
adoro apreciar um corpo pela obscenidade - fica bonito
até excitar a comoção.
já vi uma boca obscena que era um poema vivo.
uma mão obscena já me desconcentrou a existência.
línguas obscenas trazem paz ao caos de um orgasmo.
mais até:
uma vez, uma nuvem obscena fez o arco-íris corar.
o céu ficou lindo.

6 comentários:

Vinho novo disse...

Ah, que palavras tão maravilhosas!
Como, não raramente, as melhores coisas são as mais pequenas!
Como é preciso apreciar os pormenores que a vida nos oferece!
Como é bom apreciar o cheiro das rosas na harmonia do pôr-do-sol!
Ah, que sublimes fusões ocorrem ao espírito!
Mas para saber apreciar, é também preciso saber ler, com a entoação adequada, com os tempos certos, as pausas no sítio.
O primeiro texto agradou-me mais - uma infusão de espírito e vida. O segundo parece-me mais físico, vivo ainda, mas mutante.

Anabela disse...

Doçura:

O texto da Filomena é muito bonito e de facto parece um texto de Ondjaki embora menos simples, ou aparentemente menos simples que os de Ondjaki!
A dada altura entras tu a ondjakiar...que palavra ousada e harmoniosamente arrojada inventaste tu doce amiga para caractrzar todo um universo repleto de ternura! Ondjaki, mais um "Professor Ternura"(soube recentemente que era dessa forma tão bonita tratavam Munthe...)
Em Ondjaki a beleza do mundo vem sempre ao de cima...ou melhor Ondjaki exalta o próprio mundo e o que é espantoso nele é que não são necessárias viagens fabulosas... O belo está ao lado dele, nas mãos que acaricia, no ácaro que não vemos, nos elementos ~da natureza, a mãe-natureza!Acho que nunca o vi escrever palavras de amargura... Nele tudo resplandece calma, ternura, amor!
E tu, minha doce PROFESSORA TERNURA,PROFESSORA AMANTE DA VIDA, PROFESSORA AMIGA,... conseguiste trazer-me uma vez mais um ~sentimento de gratidão pela vida. O livro de Ondjaki é um verdadeiro espanador de tristezas, tal como tu própria...
Aliás é bem verdade que alguns poemas dão mesmo vontade de sorrir. Obrigada pelo duplo presente: pelo post e pelo livro que tão carinhosamente me ofereceste e devoro sem cessar.É que, sem ternura, não vale a pena viver!
Muitos beijos
Anabela

Anabela disse...

Doçura:

queria ter dito mas o turbilhão de ideias fez-me momentaneamente esquecer: até nas palavras menos bonitas ele vê beleza! Não é impressionante achar que a palavra OBSCENO pode revelar beleza e até uma certa excitação? O remate do poema é absolutamente brilhante: a nuvem obscena provoca o arco-íris e dessa obscenidade resplandece um céu que eu antevejo maravilhosamente lindo!
Quanto à pintura que inteligentemente colocaste no post é reveladora de uma quase obscenidade transmitida por aquele olhar que está literalmente grudado numa qualquer palavra obscena! De facto Ondjaki tem razão... acho que começo a gostar desta palvra tão obscena quanto bela...
Beijos
Anabela

Anónimo disse...

Penso que estes textos e posts, vêm provar (mais uma vez) que as palavras podem ter os significados e sentidos que lhe quisermos dar e consigamos sentir. Experimentem, por exemplo, neste contexto subtituir a palavra obsceno por outras ainda mais "fortes", ou então românticas. O resultado é sempre interssante e significativo.

....FL.....

Vinho novo disse...

Uma ideia interessante, FL. Valerá a pena experimentar. Talvez palavras como "mórbido", "moribundo", "asqueroso" aplicadas a conotações positivas, ou palavras como "beijo", "exuberante", etc. conotadas negativamente.

Vinho novo disse...

A respeito (ou talvez não) da proposta de FL:
O mórbido

Quantas folhas caídas não foram mórbidas no seu chão?
Como é mórbido o lento escorrer do mel!
Dizem que é uma palavra feia, é apenas
Suave como a morte.
O cheiro de trovoada é mórbida sensação - e que sensação!
E apreciar o aroma do vinho, que mórbida embriaguez!
Não é também mórbido o velejar das folhas ao vento? E uma poça de água salpicada pelos saltos de uma criança no cimento?
Oh, que vigor dá, descobrir mórbidos cantos escondidos em mórbidos monumentos habitados apenas pelas palavras mórbidas do vento!