domingo, 8 de maio de 2011

PODE FILMAR- SE A POESIA - MANUEL S. FONSECA


Não sei se pode ou não filmar-se a poesia. Pode. Já vi. Deixem-me mostrar. Invento que, em "Atonement", a acesa boca de Keira Knightley, em que logo apetece humedecer a nossa, é apenas a tradução em filme deste resignado verso de e. e. cummings: "se os teus lábios, que outrora amei, tiverem de tocar noutros." A boca de Keira e o verso de cummings anunciam a separação dos amantes, antecipando a dor que há-de vir. Poesia e cinema coincidem ao incendiarem de imagens cada cérebro que tocam. Na poesia, o verbo é tão actor como Nathalie Wood em "Splendor in the Grass".
No poema as palavras levantam-se como a câmara que sobe para ver o mundo do alto do céu no fim de "Perfect World", de Clint Eastwood.Pergunto: que cineasta poderia ter filmado a explosão verbal de Herberto Helder, o nosso maior poeta? Cukor tinha a elegância, mas não a viril vocação animal. Talvez Preminger, o Preminger de "Bonjour Tristesse", se conquistado pelo romantismo doentio de Godard.
Imagino que todos os poemas foram já filmados. Mesmo os de Herberto. Fui ler:
"Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite."
Já vi estes versos no cinema: homens a correr "pelo orvalho parado da noite". Em filmes de guerra de Samuel Fuller, no "Target", de Arthur Penn, em que Gene Hackman é espião em Berlim. Também num velho filme de Fritz Lang, "Man Hunt", irrompe a exacta imagem do verso de Herberto. É um filme de perseguição, presas humanas e nevoeiro espesso. Diga-se: no cinema contemporâneo, só um actor, Matt Damon, tem fôlego para correr pelo orvalho dentro, atravessando as portas da morte e renascendo de todas as perseguições.
Herberto foi ainda mais narrativo nos contos de "Os passos em volta". "Polícia" é a história de um clandestino que sobrevive de expedientes e foge à extradição numa insuportável Bruxelas. Encontra Annemarie, a "criatura  mais só da terra", num sítio onde "as putas e os chuis eram mais do que as mães". Dorme com ela. Leio e penso: Já vi! Mas onde é que vi dois amantes nus a atravessar a cobertores e café, a chuva de uma noite fria? Num dos filmes de longas conversas de Eric Rohmer? Não, foi no "They live by night", de Nicolas Ray: tenho a certeza de que Farley Granger, o actor, se inspirou no herói clandestino de Herberto. E invento: no filme ideal, Juliette Binoche seria Annemarie, a subversiva amante de Bruxelas.  
O filme ideal, o que juntaria a Binoche e Matt Damon, escreveu-o Herberto, antes dos dois nascerem, no poema destes primeiros versos:
"As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira, às vezes, uma planta
de treva."
O cinema arde quando é dito assim.

in Actual, nº 2010, Expresso, 07 de Maio de 2011

Sem comentários: