segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A BIBLIOTECA INFERNAL - UM CONTO

Um pequeno grande livro que aconselho a todos aqueles que vêem na biblioteca um lugar de culto e de prazer. De um autor natural da Sérvia, escritor de uma vasta obra de ficção que tem vindo a ser traduzida em muitas línguas, considerado um dos mais interessantes autores da narrativa contemporânea. Com este livro de contos, editado pela Cavalo de Ferro em Setembro de 2010, ganhou o Worl Fantasy Award, em 2003. A tradução para o portugês é deArijana Medvedec.
Transcrevo um excerto do 4º conto deste precioso livrinho:

"(...) Lá também existem bibliotecas, claro, mas para que é que elas servem quando quase ninguém as usa? Como se nem sequer existissem. Olhe veja outra vez o seu exemplo. Alguma vez pelo menos entrou na biblioteca de uma das muitas prisões em que esteve?
- Nem sabia que existiam, retorqui com sinceridade.
- Eu não lhe disse? Mas não se apoquente, em breve lhe daremos a oportunidade de recuperar o tempo perdido. E muito mais do que isso, aliás. Diante de si está, literalmente, toda uma eternidade de leitura.
Estive a fitar o homem durante um tempo, sem dizer nada.
- É este, então, o meu castigo? Ler?
- A sua terapia.
- Terapia, sim. Não haverá mais nada? - tentei cortar o tom de alívio na minha voz, mas não o consegui.
- Não, não haverá, claro. Ficará sentado na sua cela a ler. É tudo. Não terá mais nenhuma obrigação. Queria, entretanto, chamar a sua atenção para o facto de a eternidade ser um tempo muito longo. A leitura pode aborrecê-lo num certo momento. Isso acontece a muitos dos nossos internos que se tornam, então, extremamente engenhosos. Que truques passam a utilizar para deixar a impressão de que estão a ler, embora não o estejam! Mas nós temos meios para desvendarmos todas essas aldrabices astutas. Nesses casos temos de, infelizmente, aplicar medidas de coacção para os levarmos a voltar a ler. No caso dos mais persistentes e mais teimosos, elas são bastante dolorosas, receio.
- E direitos humanos? Humanidade?
- Nisso não tocamos sequer. Trata-se exclusivamente do bem deles. Não podemos deixar que por causa de preguiça espiritual façam mal a si próprios, não é?
- Talvez - respondi, não completamente convencido.
- É o essencial que deve saber. Em breve aprenderá a conviver com as nossas condições. No início ser-lhe-á provavelmente mais difícil, até se habituar, mas por fim perceberá que a leitura oferece prazeres inigualáveis. Todos o percebem durante a eternidade, alguns mais cedo, outros mais tarde. Espero que entretanto se comporte de maneira madura e sensata, e que não nos obrigue a usar medidas de coacção. Será mais agradável e mais fácil para todos."

Zoran Zivkovic, A Biblioteca, Cavalo de Ferro, p.65

2 comentários:

Teresa Pires disse...

Querida Patita,
simplesmente espectacular este excerto. Fiquei com vontade de ler o livro, que "bela" forma para levar alguém à leitura.Um bom método para utilizarmos com os nossos alunos.
Infelizmente em muitas das nossas escolas as bibliotecas ainda passam despercebidas.
Castiguem-me para eternidade!
Bjs
Teresa

Leitoras SOS disse...

Ainda bem que gostaste, linda amiguinha!Vale bem a pena este livrinho de bolso cheio de histórias que se ligam à biblioteca. A biblioteca comparece, em cada um dos contos, multifacetada. Repara: virtual, particular, nocturna, minimal, requintada e infernal (neste excerto). Mil bjs, minha querida.