sexta-feira, 16 de julho de 2010

O GERÂNIO - FLANNERY O'CONNOR

Foi uma leitura aconselhada por Gonçalo M. Tavares numa revista que desfolhei no balcão de um restaurante, (já muito desejada por mim, quando deparei com o livro de capa verde, repleta de penas de pavão e o nome de uma flor masculina - gerânio - com uma sonoridade nasal da qual me pareceu sair um odor magnífico de verão). Gonçalo M. Tavares apontou o nome desta autora, considerada uma das melhores autoras da literatura norte-americana, e deste livro em particular, dizendo: "Aconselho, e muito". E eu também.

Destaco excertos de dois belos contos (O 1º conto fascina pelo modo como se explora a cidade, um dos temas de que muito gosto; no 2º conto, A Colheita, um belo exemplo de um intratexto - um texto dentro do texto. Nota 5!): 

" O velho Dudley gostaria de ter explicado Nova Iorque a Rabie. Se lha pudesse ter mostrado não lhe teria parecido tão grande – não se teria sentido oprimido cada vez que saía à rua. Não é assim tão grande, teria dito. Não te deixes abater por ela Rabie. É como outra cidade e as cidades não são assim tão complicadas.
Mas eram. Nova Iorque era elegante e agitada num instante, suja e mortiça no seguinte. A filha dele nem sequer morava numa casa. Morava num prédio – no meio de uma fileira de prédios todos iguais, cinzentões e vermelhos, enegrecidos, cheios de gente de voz áspera que ficava pendurada para fora da janela a olhar para outras janelas e outra gente como aquela que olhava também. Dentro do prédio podia subir-se e podia descer-se e havia um sem-fim de corredores que faziam lembrar fitas métricas desenroladas com portas de centímetro em centímetro. Recordava-se de ter ficado espantado com o prédio na primeira semana. Acordava na expectativa de os corredores terem mudado de sítio a meio da noite, espreitava pela porta e lá estavam eles, estendidos como canis corridos. As ruas também eram assim. Perguntava-se a si próprio onde iria parar se caminhasse até ao fim de uma delas. Numa noite sonhou que assim fazia e ia ter à ponta do prédio – a lado nenhum."

In O Gerânio

Flannery O'Connor e auto-retrato

“«Lot Motun», registou a máquina «chamou pelo seu cão. Ao «cão» seguia-se uma pausa abrupta. Miss Willerton produzia sempre o seu melhor trabalho na primeira frase. «As primeiras frases», costumava dizer, ocorriam-lhe num ápice! Num ápice!» e estalava os dedos, «num ápice!» E era a partir delas que construía as suas histórias. «Lot Motun chamou pelo seu cão», saira-lhe automaticamente, e, ao reler a frase desde o início, decidiu que «Lot Motun» não só era um bom nome para um rendeiro, como chamar pelo seu cão era um excelente gesto para por um rendeiro a fazer. «O cão espetou as orelhas no ar e aproximou-se de Lot com um ar comprometido.» Miss Willerton concluiu a frase antes de se ter apercebido do seu erro: escrevera «Lot» duas vezes num parágrafo. Era desagradável ao ouvido. A máquina de escrever arranhou em marcha atrás e Miss Willerton aplicou três «X » sobre «Lot». Por cima destes escreveu a lápis: «dele». Agora estava pronta para recomeçar . «Lot Motun chamou pelo seu cão. O cão espetou as orelhas no ar e aproximou-se dele com um ar comprometido.» Também ficaram dois cães, pensou Miss Willerton. Hummm… decidiu que isso não lhe afectava os ouvidos da mesma maneira que dois «Lots»
Miss Willerton tinha muita fé naquilo que designava por «arte fonética». Defendia que o ouvido era tão importante para o leitor como a visão. Gostava de exprimir assim a ideia. A vista desenha uma imagem, dissera uma vez a um grupo da União das Filhas dos Colonos, que pode ser pintada em abstracto, e o êxito de um empreendimento literário (Miss Willerton gostava da expressão «empreendimento literário») depende da abstração criada na mente e da qualidade tonal (também lhe agradava o termo «qualidade tonal») captada pelo ouvido. Havia algo de preciso e acutilante na frase «Lot Motun chamou pelo seu cão», seguida de «O cão espetou as orelhas no ar e aproximou-se dele com um ar comprometido», que rematava o parágrafo com o desfecho que se impunha.
«Puxou as orelhas curtas, magras, do animal e rebolou com este na lama.» Talvez, meditou Miss Willerton, estivesse a exagerar. Porém, ao que sabia, seria razoavelmente expectável que um rendeiro rebolasse na lama. (…)”


In A Colheita



1 comentário:

Anabela disse...

Doçura
adorei os trechos que escolheste, especialmente o segundo. Não consigo perceber como tu que se trata de um intratexto, mas agradaram-me muito aqueles pensamentos, interpostos no texto, de Miss Willerton! como se afinal a história a ser contada fosse banal e os pensamentos dela é que merecessem ser a história a ser contada!
Que estranho... nunca me havia apercebido que o narrador podia ludibriar desta forma o leitor!
És tão perspicaz amiguinha!
Fiquei com mais vontade ainda de a ler... afinal não é assim tão frequente uma mulher nas letras...
Fico ainda pacientemente à tua espera...
muitos, muitos beijos