quarta-feira, 30 de março de 2011

LUIGI PIRANDELLO - UM, NINGUÉM E CEM MIL


O último romance publicado por Luigi Pirandello foi este, tão original e humorístico como comovente no tratamento da questão da identidade. A revelação inusitada, feita pela sua mulher, de que o seu nariz pendia levemente para o lado direito da sua face, vai desencadear nesta personagem atitudes muito estranhas, atirando-o paulatinamente para o mundo da loucura e para uma problemática situação financeira.
Um, Ninguém, Cem Mil rompeu de originalidade o panorama literário no século XX, tendo sido considerada pela crítica uma das suas melhores obras na medida em que nela se sintetiza e compreende todo o seu universo ficcional. Aconselho-a vivamente e deixo um excerto do início da obra para aguçar o interesse:

« 1. MINHA MULHER E MEU NARIZ

- Que estás a fazer? – perguntou-me minha mulher, ao ver que me demorava inusitadamente diante do espelho.
- Nada – respondi-lhe -, estou a olhar para o meu nariz, para dentro desta narina. Quando carrego, sinto uma dorzinha.
Minha mulher sorriu e disse:
- Julgava que estavas a ver para que lado te pende.
Voltei-me, como um cão a quem tivesse pisado a cauda:
- Pende? A mim? O nariz?
E minha mulher, placidamente:
- Claro que sim, querido. Olha bem para ele: pende-te para a direita.
Tinha vinte e oito anos e até então sempre considerara o meu nariz, se não propriamente bonito, pelo menos muito decente, tal como todas as outras partes da minha pessoa. Pelo que me fora fácil admitir e alimentar a ideia que habitualmente admitem e alimentam todos os que não tiveram a infelicidade de lhes calhar em sorte um corpo disforme: que só um tolo se envaidece das suas feições. Por isso, a descoberta súbita e inesperada daquele defeito irritou-me como um castigo imerecido.
Talvez minha mulher tenha visto mais fundo que eu naquela minha irritação, e acrescentou de imediato que, se eu tinha a convicção de não ter defeitos, devia perdê-las, pois, assim como o nariz me pendia para a direita, também…
- O que mais?
Ah, muito mais! As minhas sobrancelhas pareciam dois acentos circunflexos sobre os olhos, ^ ^, as minhas orelhas estavam mal colocadas, uma mais saliente que a outra; e outros defeitos…
- Mais ainda?
Mais ainda, sim: nas mãos, o dedo mindinho; e nas pernas (não; tortas, não!), a direita era um bocadinho mais arqueada que a outra; à altura do joelho, um pouquinho.
Depois de um exame atento, tive de reconhecer que todos esses defeitos eram reais. E só então minha mulher, tomando certamente por desgosto e desânimo o espanto que senti logo a seguir à irritação, para me consolar me exortou a não me afligir tanto, pois mesmos com esses defeitos ainda era, no conjunto, um homem bonito.»

In Um, Ninguém e Cem Mil, Cavalo de Ferro

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