segunda-feira, 21 de junho de 2010

«Na verdade, eu também tive os meus toques de dislexia, ou algo que se lhe parecia, não foi só o Leandro. Por exemplo, embirrei que a palavra sacerdote deveria ler-se saquerdote, mas como, ao mesmo empo, suspeitava que devia estar enganado, se a tinha de pronunciar (tratando-se de termo tão «erudito» esses casos não podem ter sido muitos, ainda que menos seriam hoje, quando os sacerdotes são tão poucos), arranjava-me de maneira a que se percebesse mal o que dizia para que não tivessem que corrigir-me. Devo ter sido eu quem inventou o chamado benefício da dúvida. Ao cabo de algum tempo consegui resolver a dificuldade com os meus próprios meios e a palavra passou a sair-me direitinha da boca. Uma outra que me vinha retorcida (isto são histórias da época da escola primária) era a palavra sacavenense. Além de designar um natural de Sacavém, povoação hoje engolida pelo dragão insaciável em que Lisboa se tornou, era também o nome de um clube de futebol que não sei se terá conseguido sobreviver aos atropelos do tempo e aos purgaórios das segundas e terceiras divisões. E como a pronunciava eu então? DE forma absolutamente chocante que escandalizava quem me ouvia: sacanavense. Ainda recordo o meu alívio quando fui capaz, finalmente, de inverter as posições das mal-educadas sílabas.»

in Pequenas Memórias, José Saramago

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