sábado, 19 de março de 2011

O ABUTRE - KAFKA

«A mais indiscutível virtude de Kafka é a invenção de situações intoleráveis. Para a impressão perdurável bastam-lhe uns breves apontamentos. A elaboração, em Kafka, é menos admirável que a invenção. Homens, há apenas um em toda a sua obra: o homo domesticus - tão judeu e tão alemão -, desejoso de encontrar um lugar, nem que seja o mais humilde, numa qualquer ordem; no universo, num ministério, num asilo de lunáticos, na prisão. O argumento e o ambiente são o essencial; não as evoluções da fábula nem a penetração psicológica. Daí a primazia dos seus contos sobre os seus romances; daí o direito de afirmar que esta compilação de narrativas nos dá integralmente a medida de um tão singular escritor.»

Jorge Luis Borges

O conto O Abutre, curto, impressionante, de mestre:

«Era um abutre que não parava de me dar bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias e começava agora a atacar os próprios pés. Investia sem parar, levantava voo, esvoaçava inquieto à minha volta, em círculos, e retomava o seu trabalho. Apareceu então um senhor que ficou a observar aquilo durante algum tempo, até que me perguntou porque é que eu suportava as investidas doabutre: «Mas se estou indefeso...», justifiquei-me. «Ele apareceu e quando começou com as bicadas é claro que o quis enxotar. Na verdade, até tentei estrangulá-lo, mas um bicho destes tem imensa força. E depois também já tentou saltar-me para a cara, por isso preferi sacrificar os pés, que agora já estão quase despedaçados.» «Como pode permitir que o torturem dessa maneira», insistiu o senhor, «um tiro e acabou-se o abutre.» «Acha que sim?», perguntei. «E então não me pode tratar disso?» «Com todo o gosto», disse o senhor. «Só tenho que ir a casa buscar a espingarda. Consegue esperar mais uma meia hora?» «Isso é que eu já não sei». respondi, e mantive-me assim, paralisado pela dor, durante algum tempo, até que disse: «Por favor, tente lá, seja como for.» «Está bem», disse o senhor, «vou apressar-me». Durante a conversa o abutre tinha ficado sossegado, à escuta, olhando ora para mim, ora para o senhor. Pude então ver que percebera tudo, pois levantou voo, dobrou-se para trás tanto quanto podia, para ganhar balanço, e, como um lançador de dardo, espetou com toda a força o bico dentro da minha boca. Em queda, pude ainda sentir, liberto, como ele se afogava, sem hipótese de salvação, no oceano transbordante e sem fundo do meu sangue.»

1 comentário:

Anabela disse...

..li amiguinha...saboreei...e apreciei imenso....com mais intensidade por saber que o Gonçslo se inspirou nele...o que eu aprendo contigo minha amiga do coração...bjinhos