quarta-feira, 28 de abril de 2010

A ARTE DE MORRER LONGE - MÁRIO DE CARVALHO

O novo livro do fabuloso Mário de Carvalho está nas livrarias e abre uma nova classificação na literatura (só um autor como ele teria esta ousadia e sentido de humor!): cronovelema (uma mélange de crónica, novela e poema ). Que tal? Deixo um excerto desta novidade literária:
A esmagadora maioria dos vizinhos de Lisboa não tomou conhecimento daquelas pavorosas ocorrências que, aliás, lhe provocariam horror e repulsa. Tampouco um certo jovem casal desavindo, morador ao Lumiar, convencido, por esses dias, de que a sua "comunhão de vida" (luminosa formulação legal) estava a dar as últimas. Antes da fase do divórcio, de que anteviam maçadas burocráticas e tortuosidades jurídicas, ocupavam-se com os termos da sua própria separação física e material.

Ela ficava muito séria, sorrindo, numa sua maneira peculiar de conflituar as feições, contrastando lábios e olhos, para bom entendedor; ele tamborilava com os dedos e fingia regressar a si, após sobressaltos de distracção, como se não estivesse, na verdade, a fazer nada de importante. E assim se aplicavam naquela noite, sobraçando livros, discos e bebelôs, elaborando listas, tratando-se com uma cortesia glacial, depois de terem jantado cada um para seu lado. Subentendiam que cada qual amesendara com seu par, quando, em boa verdade, ela tinha vindo do balcão despovoado dum centro comercial e ele duma tasca escondidinha com bifanas a um euro.


Chamavam-se Arnaldo e Bárbara, andavam pelos trinta anos, eram empregados de escritório, e cada qual estaria, segundo informação mais aludida que confessada, "interessado" n'outrem.


Classificavam e inventariavam sem penosidade, com a segurança superior com que vemos os funcionários das finanças somar talõezinhos de despesa, ou receitas de farmácia com IVA a 5% e 11%. Como é isto possível? Como não se distraem? Como não se enganam? Como não se enfadam de morte? A alma humana regurgita destas misteriosas potencialidades.


Ao cabo de duas noites, foi deixado em dúvida apenas um bibelô cinético, um equilibrista de arame que, ao menor impulso, oscilava durante horas, sobre dois blocos de mármore fingido. Ambos reivindicaram o artefacto, lembrando diversos familiares ofertantes, ambos acabaram, generosamente, por renunciar à sua posse e por pouco não engrossavam a voz, mais para impor a recusa que a exigência.


Tratando-se de duas assoalhadas, e de vidas novas, com poucas heranças, das que atravancam as casas de velhas cómodas desirmanadas, pilhas de quadros escondidos atrás de sofás e tapetes persas tão autênticos como os chineses de Arraiolos, dir-se-ia que a partilha não era muito trabalhosa. Por exemplo, para espíritos menos conscienciosos, não se imporia anotar numa folha pautada os nomes dos discos, autores, intérpretes, editor e data, nem proceder de forma semelhante com os livros, que se contavam pelos dedos. Mas ambos se compraziam em mostrar-se zelosos e, sobre o brio profissional, dominava o gosto de enumerar a que não faltava uma feição competitiva.


Havia oito dias que dormiam separados, mas Bárbara não aceitou o hábito, consagrado por gerações burguesas, de pernoitar ela no quarto e ele na sala. Tiveram de discutir com alguma veemência, mas ela impôs que se revezassem, noite sim, noite não. Um casal apressado e menos diligente procederia, decerto, de outro modo, mas convém aqui lembrar aquele célebre incipit sobre as parecenças das famílias felizes e a singularidade das infelizes. Em termos subjectivos, eles considerar-se-iam razoavelmente infelizes, de maneira que não será indelicado arrolá-los nessa categoria, literariamente mais dotada.

1 comentário:

Ana Jacinto disse...

Boa tarde,gostaria de saber qual a relação do titulo com a historia. Obrigada