terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Noventa anos após o paradoxo de Valéry

Retirei este excerto do sítio: http://www.pnetliteratura.pt.
Trata-se de um texto que Luís Carmelo publicou,  muito interessante e sobre uma das obras de Valéry (sobre o qual pouco ou nada sei).
Espero que te entusiasme... muitos beijos.


O rosto da Europa é a figuração feliz de um perfil que representa a imagem da Eurásia a despedir-se do mundo, ou seja: do mar e das lendas que ele prolonga. Este olhar inebriado sobre o grande gravitas é o território preferido pelos maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa. Aliás, a expressão "rosto da europa", na língua portuguesa, pertence a este último.
Neste meio diagrama meio metáfora, utilizado por Pessoa na Mensagem, a Europa surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado sendo a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto (que fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito). Para o poeta, "Este rosto que fita é Portugal".

É também na Mensagem que Pessoa identifica o mito como esse “nada que é tudo”, com se fosse “o corpo morto de Deus/vivo e desnudo” que “aportou” em Portugal; e conclui, seguidamente: “As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós”.

Deste modo, o rosto de Pessoa converte-se num mundo inteiro onde terá aportado (e aportar significa encontrar no porto, no cabo, no rosto mais extremo) uma missão, cuja origem se situa no paradigmático Ulisses e no herói fundador Viriato, propagando-se, depois, naquilo que Deus "fadou", já que "o homem e a hora são um só", ou seja, já que o homem providencial e mitológico que espreita do rosto europeu se confunde com o ‘telos’, com o eschaton, com o limite último (o "teu ser é como aquela fria madrugada/E é já o ir a haver o dia").
Estamos aqui numa espécie de limbo entre a metafórica da neblina do cabo e o dia pleno da vida (metaforizando o prenúncio de um qualquer ‘ser universal’).

É precisamente este limbo que Paul Valéry em, La Crise de l’esprit (escrito em 1919, vinte anos antes da Mensagem de Pessoa), designa por paradoxo. Diz o autor: “A minha impressão pessoal sobre a França” (...) “é a de crermos, de nos sentirmos universais - quero dizer: homens do universo... Observem o paradoxo: ter por especialidade o sentido do universal”. No seu ensaio, Valéry também encara a Europa - no seu todo – como um rosto, um cabo, uma cabeça que tem olhos e que vigia o horizonte: “um apêndice ocidental da Ásia que olha naturalmente para Oeste. A sul orla um mar ilustre cujo papel foi maravilhosamente eficaz na elaboração” de um propósito, ou de um projecto.
Sobre a tese de Valéry, Derrida escreveu em O outro cabo: "A Europa reconheceu-se sempre a si mesma como um cabo", fosse a ponta extrema do continente, "a oeste e ao sul (o limite das terras, a ponta avançada da finisterra, a Europa do Atlântico ou das orlas grego-latinas-ibéricas do Mediterrâneo)", enquanto ponto de partida para a descoberta e para invenção; fosse o próprio "centro desta língua em forma de cabo, a Europa do interior, apertada, isto é, comprimida ao longo de um eixo greco-germânico, no centro do centro do cabo".
A Europa confundiu a sua imagem, continua o autor, com a "ponta dianteira de um falo" que comandou o mundo, que erigiu uma obra e a espalhou sob a forma da cultura. Contudo, quer face ao cumprimento da empresa mítica e – portanto – impossível de Pessoa, quer face ao ter sido da múltipla empresa europeia no mundo, é necessário ter em conta que, hoje em dia, a cultura do rosto se tornou subitamente numa cultura do rizoma e de imprevisto labirinto.

O limite do rosto já não se exercita e desafia no contacto distante com o outro, fosse ele o Preste João ou o Négus da Abissínia; o rosto da actualidade já está em todo o lado, cindindo com ele mesmo no quadro de um globário instantâneo. Nesse sentido, Derrida, na sua obra sobre o rosto de Valéry, recorda-nos e sugere-nos um novo étimo para o dever. Trata-se do "dever de responder ao apelo da memória europeia, de lembrar o que se prometeu em nome da Europa, de re-identificar a Europa" como "dever sem denominador comum com tudo o que geralmente se entende sob este nome". É um dever que exige que outros cabos e rostos se abram dentro do mais antigo rosto actuante do mundo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Apenas te deixo um dos poemas que deixa os alunos rendidos no estudo da Mesagem de F. Pessoa, o qual está referido neste post:

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mãe sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita e Portugal.

Mil bjs a muitas saudades