"A mulher que prendeu a chuva" é mais uma micronarrativa de Teolinda Gersão que merece a atenção por proporcionar uma reflexão sobre o poder que os mitos exercem sobre o ser humano. Neste conto que dá o título a esta colectânea, é um mito africano que inebria por completo, durante precisamente 7 minutos, o personagem principal, um viajante em negócios que se hospeda num hotel de luxo lisboeta e ouve a história da mulher que prendeu a chuva, pela voz de uma empregada de limpeza negra, enquanto esta trabalha na sala contígua com uma colega de trabalho. O pensamento mágico cruza-se com um modo de pensar e de agir formatado pelo Ocidente, chocando com este. Este texto faz lembrar que também na Idade Média a mulher era sacrificada por motivos idênticos, sendo vista como a encarnação do Mal. Mais uma vez a mulher ocupa um lugar de destaque na diegese Gersiana.
Sobre a escritora Teolinda Gersão, Vergílio Ferreira disse um dia: «É uma cúmplice, nesta loucura de encher a vida a escrever romances. Como se numa multidão indiferente alguém erguesse a voz para me saudar. Como se num deserto alguém esperasse para lhe passar o testemunho. Como se de repente eu fosse menos louco».
Também eu me sinto feliz e menos louca ao ler estas palavras do grande Vergílio Ferreira.... e sobretudo feliz por pressentir que o mundo da literatura de ficção arrasta cumplicidades tão fortes e amizades tão sinceras como se vê raramente. Como se a linguagem de uns e de outros escritores fosse ela própria pessoas que nos fascinam, pessoas inesquecíveis, com olhares profundos sobre as coisas que acontecem sem palavras que as descrevam. Rostos com quem falamos sem sermos vistos. Verdades brancas.
Sobre a escritora Teolinda Gersão, Vergílio Ferreira disse um dia: «É uma cúmplice, nesta loucura de encher a vida a escrever romances. Como se numa multidão indiferente alguém erguesse a voz para me saudar. Como se num deserto alguém esperasse para lhe passar o testemunho. Como se de repente eu fosse menos louco».
Também eu me sinto feliz e menos louca ao ler estas palavras do grande Vergílio Ferreira.... e sobretudo feliz por pressentir que o mundo da literatura de ficção arrasta cumplicidades tão fortes e amizades tão sinceras como se vê raramente. Como se a linguagem de uns e de outros escritores fosse ela própria pessoas que nos fascinam, pessoas inesquecíveis, com olhares profundos sobre as coisas que acontecem sem palavras que as descrevam. Rostos com quem falamos sem sermos vistos. Verdades brancas.
Mostro um excerto em que estão presentes as duas vozes narradoras das quais se sobreporá a voz africana que abrirá naquele quarto uma geografia exótica, "um pedaço de África intacto, como um pedaço de floresta virgem", onde o primeiro narrador, um narrador europeu, se perdeu.
"Foi então que percebi que falavam . Uma delas sobretudo, era a que falava, a outra limitava-se a lançar interrogações, ou a emitir sons, de quando em quando. Eram duas vozes diferentes, que se manifestavam de maneira desigual.
A chuva, ouvi dizer uma delas. Foi por causa da chuva (...)
Foi por causa da chuva, repetiu.
Não chovia há muito tempo e tudo tinha começado a morrer. Até as árvores e os pássaros. As pessoas tropeçavam em pássaros mortos. (...).
Tudo tinha secado, a terra abria fendas, ouvi a mulher dizer ainda. Gretada de falta de água. A terra tinha feridas na pele. Animais morriam. Pessoas morriam. Crianças morriam. O ribeiro secou. O céu secou. As folhas torciam-se, nas árvores, e depois também as árvores secavam. (...)
Então começaram vozes, nas pessoas da aldeia (...)
Alguém era culpado pela seca. E depois começaram as vozes, na aldeia, de que a culpada era aquela mulher. Outros diziam que não. Ninguém sabia ao certo. Mas a seca não acabava, e tudo continuava a morrer.
Até que chamaram o feiticeiro. Acenderam o lume e queimaram ervas e ele bebeu o que tinha que beber e ficou toda a noite a murmurar palavras que ninguém entendia. Pela manhã vieram os Mais Velhos e ele disse que era por causa da mulher. Foi isso que ele disse e todos ouviram: Aquela mulher prendeu a chuva.
Então os Mais Velhos entenderam o que se ia passar e olharam para o chão, porque tinham piedade da mulher que vivia sozinha, afastada da aldeia. Muito tempo antes o marido tinha-a abandonado e morrera-lhe um filho e ela tinha chorado tanto que o seu corpo tinha secado, os seus olhos tinham secado, toda ela se tinha tornado um tronco seco, dobrado para o chão. Tinha-se tornado bravia como um animal, nunca se ouvia falar, só gemia, e gritava às vezes de noite.
Essa mulher, repetiu o feiticeiro olhando para o chão.
Acendeu o cachimbo e soprou devagar o fumo: Ela prendeu a chuva.
Mas ninguém queria matá-la. E também o feiticeiro disse que não era por sua vontade.
Ficaram parados, como se esperassem. Todos os da aldeia, sentados debaixo de uma árvore. E o tempo também parou, e não passava.(...)
Então um jovem ofereceu-se. Eu vou, disse. Como se fosse igual matar a mulher, ou ser morto.(...)
Ele foi ter com ela à cabana e passou a noite com ela. Dormiu com ela e fez amor com ela. Passou-lhe as mãos no sexo, nos seios, nos cabelos, acariciou-a com ternura e depois apertou-a com os braços, como se fosse outra vez fazer amor com ela, apertou mais e mais, em torno do pescoço até sufocá-la. E depois veio cá fora da cabana, com a mulher morta nos braços e deitou-a na terra e todos caminharam em silêncio em volta. (...)
E então começou a chover, disse a mulher. Então começou a chover."
Teolinda Gersão, A Mulher que Prendeu a chuva, Sextante Editora
"Foi então que percebi que falavam . Uma delas sobretudo, era a que falava, a outra limitava-se a lançar interrogações, ou a emitir sons, de quando em quando. Eram duas vozes diferentes, que se manifestavam de maneira desigual.
A chuva, ouvi dizer uma delas. Foi por causa da chuva (...)
Foi por causa da chuva, repetiu.
Não chovia há muito tempo e tudo tinha começado a morrer. Até as árvores e os pássaros. As pessoas tropeçavam em pássaros mortos. (...).
Tudo tinha secado, a terra abria fendas, ouvi a mulher dizer ainda. Gretada de falta de água. A terra tinha feridas na pele. Animais morriam. Pessoas morriam. Crianças morriam. O ribeiro secou. O céu secou. As folhas torciam-se, nas árvores, e depois também as árvores secavam. (...)
Então começaram vozes, nas pessoas da aldeia (...)
Alguém era culpado pela seca. E depois começaram as vozes, na aldeia, de que a culpada era aquela mulher. Outros diziam que não. Ninguém sabia ao certo. Mas a seca não acabava, e tudo continuava a morrer.
Até que chamaram o feiticeiro. Acenderam o lume e queimaram ervas e ele bebeu o que tinha que beber e ficou toda a noite a murmurar palavras que ninguém entendia. Pela manhã vieram os Mais Velhos e ele disse que era por causa da mulher. Foi isso que ele disse e todos ouviram: Aquela mulher prendeu a chuva.
Então os Mais Velhos entenderam o que se ia passar e olharam para o chão, porque tinham piedade da mulher que vivia sozinha, afastada da aldeia. Muito tempo antes o marido tinha-a abandonado e morrera-lhe um filho e ela tinha chorado tanto que o seu corpo tinha secado, os seus olhos tinham secado, toda ela se tinha tornado um tronco seco, dobrado para o chão. Tinha-se tornado bravia como um animal, nunca se ouvia falar, só gemia, e gritava às vezes de noite.
Essa mulher, repetiu o feiticeiro olhando para o chão.
Acendeu o cachimbo e soprou devagar o fumo: Ela prendeu a chuva.
Mas ninguém queria matá-la. E também o feiticeiro disse que não era por sua vontade.
Ficaram parados, como se esperassem. Todos os da aldeia, sentados debaixo de uma árvore. E o tempo também parou, e não passava.(...)
Então um jovem ofereceu-se. Eu vou, disse. Como se fosse igual matar a mulher, ou ser morto.(...)
Ele foi ter com ela à cabana e passou a noite com ela. Dormiu com ela e fez amor com ela. Passou-lhe as mãos no sexo, nos seios, nos cabelos, acariciou-a com ternura e depois apertou-a com os braços, como se fosse outra vez fazer amor com ela, apertou mais e mais, em torno do pescoço até sufocá-la. E depois veio cá fora da cabana, com a mulher morta nos braços e deitou-a na terra e todos caminharam em silêncio em volta. (...)
E então começou a chover, disse a mulher. Então começou a chover."
Teolinda Gersão, A Mulher que Prendeu a chuva, Sextante Editora
2 comentários:
Doce amiga
esta escritora ficará inevitavelmente ligada a Fermil!
Li dois ou três contos do livro que apresentas, se bem me lembro e gostei muito da escrita da Teolinda. Este que dá o nome ao livro é surpreendente no desfecho. Gosto de contos que atingem por vezes o absurdo da vida, o surreal.
muitos beijos amiguinha
anabela
uma porcaria eu quero o resumo
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