terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Olhos que passam com o tempo


Picasso, Figuras à Beira-Mar

O meu primeiro namorado tinha olhos claros. Tinha olhos claros até de noite, quando o medo do fim descia das paredes do meu quarto e, com a humidade tão própria das casas costeiras, se infiltrava nos lençóis e começava a percorrer a minha espinha dorsal como um incómodo metálico. Nesses lençóis que a minha mãe esticava ao máximo no meu colchão, até parecerem um pedaço de lago gelado, é que eu escondia os meus sonhos. Os meus sonhos a transbordar do azul dos olhos do Zeca. Os meus sonhos tão grandes que pareciam não caber naqueles olhos pequenos demais para tanto azul. Grandes de curiosidade de saber como era beijar de olhos fechados e boca dentro de outra boca. Assim desaparecia o medo.
Muitas vezes, a minha irmã mais velha não sabia que o Zeca estava deitado entre nós. Em noites de saudade, mal surgia a claridade dos seus olhos a palpitar num canto do tecto, eu metia-o entre as duas. O colchão era enorme. E mal lhe sentia a desconfiança no corpo a virar-se repentino, como se a espreitar-nos sem licença, apertava a mão ao Zeca o mais que podia e parava com as carícias, deixava fugir os beijos cheios de saliva por entre as cabeças, agora estátuas… suspendia a respiração até à última resistência para que a minha irmã mais velha não notasse nada de anormal ali mesmo, nas barbas dela. Mas o certo é que algumas vezes ela me dizia, numa voz enrouquecida de sono, coisas. Pareces maluca. Ou então, enfurecida de sono. Vais já pela janela fora se não sossegas. E eu sabia que era tudo ciúmes por saber que estávamos muito apaixonados um pelo outro.
(...)

O meu pai também não me deixava sonhar com o Zeca. Costumava levantar as persianas num esticão drástico mal pressentia o meu sorriso dentro dos lençóis. Dizia sempre numa espécie de revolta que a vida não era um sonho. Na cabeça dele era preciso muita luz para que eu, cega logo pela manhã, não distinguisse mais a cor clara dos olhos dele a contemplarem-me desmedidos, em baba, a desejarem-me. Aliás, adivinhava sempre na expressão do meu pai, o segundo em que as palavras “ tens que fazer pela vida ” saiam disparadas dos seus lábios, esbranquiçados de espuma nos cantos pela autoridade irritada com que falava com os outros, como a rolha sob pressão de uma garrafa de champanhe.
Para ele nunca atingi definitivamente a idade para começar com namoros. Dizia este plural quase irado. (...)

Passava as ruas que se cruzavam em pura geometria a correr. Corria sempre muito e havia momentos que mesmo com os olhos fechados sabia o caminho que me levava àqueles olhos. Eram segundos emocionantes os que eu adivinhava o chão e as suas irregularidades sem ver nada. Passava-me ao lado, como um cheiro entranhado, toda a textura da arquitectura do meu percurso. As cores das plantas rasteiras, dos gatos e dos cães que em pobreza uivavam, do arvoredo alto em dança, dos rostos e corpos dos outros, tornavam-se todas no azul que me esperava, deitado ao comprido a contemplar as gaivotas no céu, mesmo por cima dessa duna ventosa onde nos amávamos até à última réstia do entardecer. A vida é um sonhar. Um sonhar que se cumpre. Não é o trabalhar para comprar o pão ou o suor em sacrifício a escorrer pela testa.

O Zeca não tinha palavras. Só os gestos do seu olhar contavam. Gestos que pareciam ondas, cada um com uma rebentação diferente. Mas eu lia as palavras bem gordas que ele tinha por detrás das pupilas radiosas sem que ele desse conta. Conseguia sempre saber o que me diria, não fosse a timidez.
Todos os dias eram amarelos como a areia. Nesse amarelecer visitavam-nos pássaros corpulentos com fome de peixe vivo. Plumas cinzentas de olhos negros que comunicavam com uma linguagem quase ausente, mas que dava sentido àquele deserto ventoso cheio de silêncios. Como intrusos de patas negras debicavam os grãos de areia à procura do nosso desejo. Gaivotas ciosas. Eu tinha-lhes medo. Mais medo do que do segredo que o Zeca me obrigara a guardar nessa tarde. Um segredo sangrento que enterrámos na duna mais alta, o mais fundo possível para o meu pai nunca o poder encontrar. A partir desse segredo, um peso caminhou em direcção ao meu peito, instalando-se por detrás do pulmão direito a lembrar que o nosso amor se tinha instalado seriamente no meu corpo, como um órgão novo, uma peça que prendesse para sempre o meu ventre ao corpo forte dele. E senti que o amor existia em mim doutro modo, como se tivesse sido transportado de uma praia para um campo de batalha. E na eminência de ter de se defender a todo o instante da palavra morte. Mesmo quando quem existia era sobretudo a alma.
Os dias eram canções. Sempre as mesmas gaivotas com um cheiro a maresia nas penas grossas. Sempre o mesmo ondular de corpos cada vez mais nus, num espaço unicamente velado pelo bater do azul do mar na areia molhada da dura baía atlântica. O vento arrepiava. Obrigava a abraços mais fortes. A vestir a roupa com mais pressa depois da sofreguidão dos corpos que se esvaziavam e enchiam imitando as ondas. Cada vez mais era eu própria aquela areia.
Pelo anoitecer entrava em casa como uma fortificação em concha austera. Todos os ruídos eram o mar, todas as conversas eram líquidas e lembravam beijos e o sexo, como uma estrela-do-mar, molhado, a inundar tudo o que tocava. E olhava muitas vezes o céu através dos cortinados claros que logo se tornavam no azul dos olhos do Zeca. Então ria-me mesmo sem estar a dormir.
Não controlei parte do segredo como devia por isso o meu pai desconfiou. E não tardou em seguir-me até à duna, armado da sua dureza de pai. Foi então que viu o que algumas pessoas lhe disseram com palavras desajustadas ao que sentia por mim. Ao longe, o desenho da minha felicidade transposta pelo corpo pendido do Zeca.
Nessa noite permitiu que eu namorasse. Nessa noite exigiu que eu casasse. Eu não dormi porque não tinha palavras que chegassem para construir a ordem do meu pai em sons perceptíveis. Não sabia atirá-las como um íman ao Zeca, como uma rede de caça, como notas dissonantes da canção que ele adorava.
Foi a partir dessa exigência cujas palavras nunca fui capaz de pronunciar na totalidade que o Zeca deixou de ir à duna. E eu já não corria para ir ao seu encontro. Tornei-me pesada sobre o alcatrão.Um rochedo na areia. Leve e muda em casa.
(...)

1 comentário:

Anabela disse...

Docura
que lindo texto! tão expressivo e repleto de cheiros e sensações. adorei sentir o teu mar, o olhar dele tão penetrante, o odor ...dei por mim a respirar profundamente como se quisesse sentir a tua maresia! as imagens são magnificas e poderosas, o contraste das palavras que usas para descrever a rudeza das dunas e a fluidez do Zeca é impressionante ... fiquei encantada e voltei novamente a relê- lo... e fiquei novamente orgulhosa pois no meu íntimo sei que és igualmente extraordinária na escrita, tal como o és como PESSOA...
fico à espera do texto completo pois notei alguns parêntesis que me levam a acreditar que houve cortes e que há mais... aguardo,amiguinha e dou- te tempo... mas quero mais!
adoro-te amiguinha e sinto que deixaste em mim um sabor a mar... obrigada
amabela