domingo, 31 de janeiro de 2010

The XX - nova banda londrina

 Ana Bela Ana,
Deixo-te uma música desta nova banda que actuou há poucos dias na Casa da Música com bilhetes esgotadíssimos. O cd tem o mesmo nome da banda e herdei-o há bem pouco tempo de muitos dos objectos musicais que o Paulinho colocou um pouco de parte. Desta vez tive sorte porque gostei do som minimalista de todas as músicas do álbum e tenho investido algum tempo a ouvi-las cá em casa. Há qualquer coisa de muito íntimo nestas músicas, conseguida através das vozes masculina e feminina que se cruzam com imensa sensualidade sobre uma linha sonora de instrumentos que me parece prosseguir límpida, repetitiva e com um toque de mistério. Não me canso de as ouvir. Vê se gostas, tu também, querida amiga. (Aviso-te que só não deves ver os elementos da banda ao mesmo tempo que ouves as músicas pois eles têm um aspecto gótico de que não gosto e, presumo, te desagradará a ti também...).

http://www.youtube.com/watch?v=kHZVGqqf3gg

o escafandro e a borboleta

                                         Jean-Dominique Bauby, O escafandro e a borboleta, Livros do Brasil, 1999.

Ana Bela Ana,
fiquei muito feliz quando abri a porta do nosso blogue e vi que arranjaste tão bem a nossa entrada...O
quadro de Vieira da Silva concede-nos arte q.b. para ficarmos felizes neste sítio. Que bela surpresa teres conseguido compor tudo o que eu estraguei desastradamente! Mil obrigadas amiga!

Deixo-te o sítio do trailler deste belíssimo filme que vi hoje e nos lembra que a imaginação pode superar quase tudo. Este filme francês foi filmado numa perspectiva nova, fazendo-nos sentir que somos nós próprios a personagem principal, Jean-Dominique Bauby, pois é a nossa visão a própria câmara. Vemos todas as terceiras pessoas, todo o enquadramento cénico com o olho (o único que escapou ao AVC que ele sofreu) de Jean. Aos poucos, esta personagem vai-nos mostrando tudo o que lhe restou - a memória de um passado que amava e que lhe escapa como cinzas. Resta-lhe a esperança de escrever um livro sobre ele próprio (um escafandro onde ele se sentia aprisionado) e a borboleta (o seu espírito livre e imaginativo). É realmente um filme diferente que valeu a pena ver.
"Jean-Dominique Bauby, nascido em 1952, pai de dois filhos, era redactor-chefe da revista francesa Elle quando foi vítima de um locked-in syndrome, uma doença rara, que o deixou lúcido intelectualmente, mas paralisado por completo, só podendo respirar e comer por meios artificiais e mover o olho esquerdo.

Com este olho piscava uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Com ele chamava também a atenção do seu visitante para as letras do alfabeto, formando palavras, frases, páginas inteiras. Assim escreveu este livro: todas as manhãs, durante semanas, decorou as suas páginas antes de ditá-las, depois de as ter corrigido mentalmente durante a noite.(...) Bauby faleceu a 9 de Março de 1997, mas deixou este seu testemunho impressionante, bem escrito, e melhor traduzido, do que é ter um intelecto vivo dentro de um corpo morto."



http://www.youtube.com/watch?v=N4yY1yedPEc


quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Biblioteca - Gonçalo M. Tavares

Anabela,
como deves imaginar, já devorei a "Biblioteca" de Gonçalo M. Tavares que de forma tão amiga me cedeste na Feira do livro Cupertino Miranda. Dedica curiosamente este livro a Jacques Brel (gostava de saber porquê...) e num texto preliminar a que dá o nome de Breve nota diz o seguinte:



"O ponto de partida deste livro é a obra dos autores - nunca aspectos biográficos. Uma ideia ou apenas uma palavra mais usada pelo escritor (por vezes, mesmo associações inconscientes e puramente individuais) estão na origem do texto. Mas cada fragmento sege o seu ritmo próprio.
O percurso de leitura poderá ser determinado pelo acaso ou pela vontade dirigida (e não apenas pela sequência da paginação). Agrada-me a ideia de que alguém possa ler alguns destes fragmentos hoje, e outros daqui a alguns anos."

Adorei este fragmento com que me deparei casualmente na letra h, quando procurava vorazmente Harold Bloom:


Hans Magnus Enzensberger



Um homem, com os pés dentro de uma caixa, faz um discurso sobre a rapidez no mundo.
Outro homem, com a cabeça numa caixa, faz um discurso sobre a clareza no mundo.
Um terceiro homem, com uma caixa em redor das ancas, faz um discurso sobre a necessidade de a sedução ser uma prática tão considerada socialmente como a simpatia.
Entretanto, no canto da sala, uma caixa sem homem nenhum permanece imóvel e muda (como seria de esperar). Mas essa caixa perturba. Porque traz um mistério.




Magnus Enzensberger (11 de novembro, 1929 11 de Novembro de 1929 em Kaufbeuren) é poeta, ensaista, tradutor e editor alemão. É também escritor sob o pseudônimo de Andreas Thalmayr, Linda Quilt, Elisabeth Ambras e Serenus M. Brezengang.
Enzensberger estudou
literatura e filosofia nas universidades de Erlangen, Freiburg, Hamburgo e também em Sorbonne, Paris, recebeu seu doutorado em 1955.
Trabalhou como redator na rádio de
Stuttgart e exerceu a docência até 1957, com o volume de poesias Verteidigung der Wölfe (Defesa dos Lobos).
Entre
1965 e 1975 foi membro do Grupo 47. Em 1965 criou a revista "Kursbuch" e desde 1985 edita a série literária Die andere Bibliothek.
Publicou entre outras obras Zigue Zague, O naufrágio do Titanic, Outra Europa.


Também gostei muito do texto para Virginia Wolf. Ora, lê:

Virginia Wolf

Numa festa 1, 2, 3 homns passeiam com os seus quilos e os seus membros.A mulher traz uma rosa que ontem lhe ofereceram. Tem os olhos verdes e as rosas vermelhas. Uma mulher inteligente, mas tem pele, como as outras. O seu cabelo é uma pintura que os homens observam demoradamente. Todos os outros penteados parecem falsificações.

Ela vai começar a falar. Os homens que passeiam os sapatos que o dinheiro lhes deu param para ver a mulher que o dinheiro não lhes dá. Tem os olhos verdes e as rosas vermelhas.

Histórias de Amor - Robert Walser


A contracapa diz muito:

"Robert Walser escreveu cerca de mil narrativas curtas. Volker Michels, um profundo conhecedor da obra de Walser, escolheu oitenta dessas narrativas que têm a ver com o amor e ordenou-as cronologicamente. No seu conjunto, estes textos evidenciam a grande variedade expressiva de Walser e o modo pouco convencional como encarava o erotismo e o amor. Robert Walser revela um amplo amore mundi, que envolve as raparigas e os pássaros, as nuvens e as mulheres distantes, as flores e os campos e os enamorados que neles passeiam. Com alguns achados verbais insólitos e abundantes diminutivos, Walser capta aquilo que transforma a mente dos apaixonados num mundo perturbado e intenso. São histórias repletas de humor corrosivo, que umas vezes põem em causa a hipocrísia moral, outras são irónicas imitações da literatura amorosa ou burlescas recriações dos sonhos da adolescência.
Robert Walser nasceu em Biel na Suiça, em 1878. Entre 1904 e 1933, publicou uma vasta e original obra poética e romanesca que entusiasmou a crítica (são exemplos Walter Benjamin e Max Brod) e alguns dos principais escritores de língua alemã, como Hesse, Kafka e Musil. Em 1929 ingressou voluntariamente num manicómio. Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seus habituais passeios."
Mais ainda diz este conto:
A única Mulher

Conheço uma importante musa que nada sabe de poesia, mas que é ela própria um poema, o que para um poeta é muito importante. Quem é insolente com ela apenas se depara com o seu magnífico espanto. Já lhe dediquei o meu canto uma ou duas vezes, mas por ora fiquei sempre aquém. Ela afugentou-me e eu ri-me alegremente, como se ela tivesse concedido uma noite ao poeta, e ele respondesse com frieza, porque a sua fantasia já lhe tivesse oferecido a visão do corpo dela. Nunca mais voltarei a amar. Ela fez de mim uma criança que admira o mundo, que segue a mais bela doutrina e teme a Deus. Os sapatos dela não são maravilhosos. Mas gosto bastante do guardanapo com que ela brinca. Nunca poderei voltar a vê-la, e no entanto sou feliz, ainda que na verdade não devesse ser. Fui um sem-vergonha com ela, porque a sua presença me deixava a tremer e porque queria dar uma ilusão de superioridade e porque achava tolo e quase odiava este estremecimento, este amor. Mas quando estamos longe um do outro, brinco com ela e afago-a, salto como um doido, como um rapazinho tonto. Seria bem capaz de a esquecer aí uns quatro anos, mas depois tudo voltaria outra vez. É espantoso saber isto! Nunca tinha reparado no poder que uma rapariga tem. Toda a lealdade e tudo o que em mim há de bom fica prostrado por terra diante do vestido da única mulher. Estou tão alegre como só me sinto de manhã cedo, e no entanto é meia-noite, e escrevo estas linhas como se não as fosse dar a ler a ninguém.

Deux Personnages - Picasso

De cada vez que a página se virava sem mão, as duas mulheres pasmadas com o mistério vivo, aproximavam-se mais e mais dela até poderem tocar as palavras que se contavam numa voz enflautada. Contavam-se na história da eternidade conquistada por duas amigas que, num fim de tarde, presas no tráfego cinzento de uma cidade confusa de solidão humana, liam em coro sucessivos poemas. Sem se darem conta, tombaram para dentro do livro que inclinavam abruptamente sobre o volante muito negro, muito frio. Nessa queda, esmurraram os joelhos na palavra terra e ao tentarem levantar-se agarrando as mãos de algumas letras, transformaram-se elas próprias em tinta, desaparecendo para sempre num traço fino e arqueado, que mais parecia uma larva à espera de qualquer metamorfose. Essa página do livro tornou-se incorruptível. Nem a água nem o fogo conseguiram alguma vez destrui-la. E as duas mulheres, temendo-a e desejando-a como a um vinho, passaram também elas a ler em coro, fechadas num quarto em que ninguém as podia ouvir, esse poema que acreditavam ser mais do que um poema, até se tornarem elas próprias histórias desse canto que nunca ninguém mais ouviu.


"O homem é um grande faisão sobre a terra" - Herta Müller



" Herta Müller nasceu em 1953 em Nitzkydorf, Roménia. Pertence a uma minoria de origem alemã. Entre 1973 e 1976 faz estudos germanísticos e romanísticos na Universidade de Timisoara. Em 1987 deixa a Roménia, passando a residir em Berlim. "O homem é um grande faisão sobre a terra" é o retrato de uma comunidade que vive entre o embrutecimento, a resignação e uma esperança débil."


Este livro que me ofereceste, o primeiro que li da autora, é tão belo como perturbador...sublinha-se em todas as páginas deste "O homem é um grande faisão sobre a terra" que a escritora muito antes de ser romancista, é poeta. A estrutura fragmentada do romance, com capítulos breves de títulos nominais que revelam toda a atenção que ela dá aos instantes da vida - o leite; a navalha; a lágrima; o açougue; a gaivota; a macieira (...) - despertam o interesse do leitor logo nas primeiras linhas de descrição da aldeia de um dos personagens principais, Windish, onde se concentra a acção de forma quase sufocante.É a vida miserável e conflituosa de Windish e sua mulher e filha,uma família romena desencontrada há muito da felicidade, e a força que resta do desespero do seu quotidiano explorado ao máximo pelo regime ditatorial, que se exibe em páginas e páginas de pura literatura. Ao lado destes personagens vão surgindo personagens-vizinhos que são fotografados com a mesma crueza e poesia, na sua dura rotina, mostrando de igual forma os seus sonhos, medos, taras, violências, mesquinhez, opressões...Enfim, explica-se o pior que o ser humano tem, muitas vezes com uma ironia crescente que desemboca na caricatura, e a sua brutal resistência à humilhação, à exploração constante, à morte lenta decretada pelo próprio homem que se revela um grande faisão que ensombra a terra no seu poderoso voo intimidante,nessa constante investida sem escrúpulos.

Deixando de parte o excelente fragmento "A macieira" ou o referente à infância de Amalie, intitulado "O leite" que já conheces, há tantos outros admiráveis que poderia transcrever... opto por estes que me marcaram muito:

O sapo
(…)
Uma nuvem mancha a lua de vermelho. Windisch encosta-se à parede da azenha. «O ser humano é estúpido», diz o guarda-nocturno, «e está sempre pronto a perdoar». O cão come um pedaço do coirato. «A ela, perdoei tudo», diz o guarda-nocturno. «Perdoei-lhe o padeiro. Perdoei-lhe o comportamento na cidade.» Passa as pontas dos dedos pela lâmina da faca: «A aldeia em peso fez pouco de mim.» Windisch suspira. «Eu nem conseguia olhá-la nos olhos», diz o guarda-nocturno: «Só uma coisa não consegui perdoar-lhe: é que tivesse morrido tão depressa como se não tivesse ninguém. Isso é que não lhe perdoei.»
«Sabe Deus» diz Windisch, «para que é que elas existem, as mulheres?».O guarda-nocturno encolhe os ombros: «Para nós é que não» diz ele. «Nem para mim, nem para ti. Não sei para quem.» O guarda-nocturno faz uma festa ao cão. «E as filhas», diz Windisch, « Sabe Deus, também elas se tornam mulheres.»
Sobre a bicicleta há uma sombra e uma sombra sobre a relva. «A minha filha», diz Windisch medindo mentalmente a frase, «a minha Amalie também já não é virgem.» O guarda-nocturno olha para a nuvem vermelha. As barrigas das pernas da minha filha parecem melões», diz Windisch. « Como tu dizes, já não consigo olhá-la nos olhos. Tem uma sombra nos olhos.» O cão vira a cabeça. «Os olhos mentem», diz o guarda-nocturno, «as barrigas das pernas, essas é que não mentem.» Afasta os pés. «Olha para os pés da tua filha quando anda», diz ele. «Se afastar as pontas dos pés ao andar, então já não há nada a fazer.»
Pp
14, 15


A folha de alface


Amalie lambe um osso de galinha. Na boca rangem-lhe as folhas de alface. A mulher de Windisch segura uma asa de galinha à altura da boca. «Ele emborcou a aguardente toda», diz ela. Chupa ruidosamente a pele amarela: «Com o desgosto».
Amalie pica a folha de alface com os dentes do garfo. Segura a folha à altura da boca. A folha estremece no momento em que fala. «Com a tua farinha não vais longe», diz. Os lábios dela mordem-se com força, como uma lagarta à folha de alface.
«Os homens têm de beber porque sofrem», diz a mulher de Windisch sorrindo. A sombra dos olhos de Amalie dobra-se em azul sobre as pestanas. «E sofrem porque bebem», acrescenta com um risinho. Olha através de uma folha de alface.
O chupão vai-lhe amadurecendo no pescoço. Vai ficando azulado e move-se quando ela engole.
A mulher de Windisch chupa as pequenas vértebras brancas. Engole as minúsculas fibras de carne do pescoço da galinha. «Quando casares, abre os olhos», diz ela. «O hábito de beber é uma doença péssima.» Amalie lambe as pontas dos dedos vermelhas. «E não é nada saudável,» diz ela.
Windisch olha para a aranha negra. «Ser puta é mais saudável», diz ele.
A mulher de Windisch bate com a mão na mesa.
p. 87

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Olhos que passam com o tempo


Picasso, Figuras à Beira-Mar

O meu primeiro namorado tinha olhos claros. Tinha olhos claros até de noite, quando o medo do fim descia das paredes do meu quarto e, com a humidade tão própria das casas costeiras, se infiltrava nos lençóis e começava a percorrer a minha espinha dorsal como um incómodo metálico. Nesses lençóis que a minha mãe esticava ao máximo no meu colchão, até parecerem um pedaço de lago gelado, é que eu escondia os meus sonhos. Os meus sonhos a transbordar do azul dos olhos do Zeca. Os meus sonhos tão grandes que pareciam não caber naqueles olhos pequenos demais para tanto azul. Grandes de curiosidade de saber como era beijar de olhos fechados e boca dentro de outra boca. Assim desaparecia o medo.
Muitas vezes, a minha irmã mais velha não sabia que o Zeca estava deitado entre nós. Em noites de saudade, mal surgia a claridade dos seus olhos a palpitar num canto do tecto, eu metia-o entre as duas. O colchão era enorme. E mal lhe sentia a desconfiança no corpo a virar-se repentino, como se a espreitar-nos sem licença, apertava a mão ao Zeca o mais que podia e parava com as carícias, deixava fugir os beijos cheios de saliva por entre as cabeças, agora estátuas… suspendia a respiração até à última resistência para que a minha irmã mais velha não notasse nada de anormal ali mesmo, nas barbas dela. Mas o certo é que algumas vezes ela me dizia, numa voz enrouquecida de sono, coisas. Pareces maluca. Ou então, enfurecida de sono. Vais já pela janela fora se não sossegas. E eu sabia que era tudo ciúmes por saber que estávamos muito apaixonados um pelo outro.
(...)

O meu pai também não me deixava sonhar com o Zeca. Costumava levantar as persianas num esticão drástico mal pressentia o meu sorriso dentro dos lençóis. Dizia sempre numa espécie de revolta que a vida não era um sonho. Na cabeça dele era preciso muita luz para que eu, cega logo pela manhã, não distinguisse mais a cor clara dos olhos dele a contemplarem-me desmedidos, em baba, a desejarem-me. Aliás, adivinhava sempre na expressão do meu pai, o segundo em que as palavras “ tens que fazer pela vida ” saiam disparadas dos seus lábios, esbranquiçados de espuma nos cantos pela autoridade irritada com que falava com os outros, como a rolha sob pressão de uma garrafa de champanhe.
Para ele nunca atingi definitivamente a idade para começar com namoros. Dizia este plural quase irado. (...)

Passava as ruas que se cruzavam em pura geometria a correr. Corria sempre muito e havia momentos que mesmo com os olhos fechados sabia o caminho que me levava àqueles olhos. Eram segundos emocionantes os que eu adivinhava o chão e as suas irregularidades sem ver nada. Passava-me ao lado, como um cheiro entranhado, toda a textura da arquitectura do meu percurso. As cores das plantas rasteiras, dos gatos e dos cães que em pobreza uivavam, do arvoredo alto em dança, dos rostos e corpos dos outros, tornavam-se todas no azul que me esperava, deitado ao comprido a contemplar as gaivotas no céu, mesmo por cima dessa duna ventosa onde nos amávamos até à última réstia do entardecer. A vida é um sonhar. Um sonhar que se cumpre. Não é o trabalhar para comprar o pão ou o suor em sacrifício a escorrer pela testa.

O Zeca não tinha palavras. Só os gestos do seu olhar contavam. Gestos que pareciam ondas, cada um com uma rebentação diferente. Mas eu lia as palavras bem gordas que ele tinha por detrás das pupilas radiosas sem que ele desse conta. Conseguia sempre saber o que me diria, não fosse a timidez.
Todos os dias eram amarelos como a areia. Nesse amarelecer visitavam-nos pássaros corpulentos com fome de peixe vivo. Plumas cinzentas de olhos negros que comunicavam com uma linguagem quase ausente, mas que dava sentido àquele deserto ventoso cheio de silêncios. Como intrusos de patas negras debicavam os grãos de areia à procura do nosso desejo. Gaivotas ciosas. Eu tinha-lhes medo. Mais medo do que do segredo que o Zeca me obrigara a guardar nessa tarde. Um segredo sangrento que enterrámos na duna mais alta, o mais fundo possível para o meu pai nunca o poder encontrar. A partir desse segredo, um peso caminhou em direcção ao meu peito, instalando-se por detrás do pulmão direito a lembrar que o nosso amor se tinha instalado seriamente no meu corpo, como um órgão novo, uma peça que prendesse para sempre o meu ventre ao corpo forte dele. E senti que o amor existia em mim doutro modo, como se tivesse sido transportado de uma praia para um campo de batalha. E na eminência de ter de se defender a todo o instante da palavra morte. Mesmo quando quem existia era sobretudo a alma.
Os dias eram canções. Sempre as mesmas gaivotas com um cheiro a maresia nas penas grossas. Sempre o mesmo ondular de corpos cada vez mais nus, num espaço unicamente velado pelo bater do azul do mar na areia molhada da dura baía atlântica. O vento arrepiava. Obrigava a abraços mais fortes. A vestir a roupa com mais pressa depois da sofreguidão dos corpos que se esvaziavam e enchiam imitando as ondas. Cada vez mais era eu própria aquela areia.
Pelo anoitecer entrava em casa como uma fortificação em concha austera. Todos os ruídos eram o mar, todas as conversas eram líquidas e lembravam beijos e o sexo, como uma estrela-do-mar, molhado, a inundar tudo o que tocava. E olhava muitas vezes o céu através dos cortinados claros que logo se tornavam no azul dos olhos do Zeca. Então ria-me mesmo sem estar a dormir.
Não controlei parte do segredo como devia por isso o meu pai desconfiou. E não tardou em seguir-me até à duna, armado da sua dureza de pai. Foi então que viu o que algumas pessoas lhe disseram com palavras desajustadas ao que sentia por mim. Ao longe, o desenho da minha felicidade transposta pelo corpo pendido do Zeca.
Nessa noite permitiu que eu namorasse. Nessa noite exigiu que eu casasse. Eu não dormi porque não tinha palavras que chegassem para construir a ordem do meu pai em sons perceptíveis. Não sabia atirá-las como um íman ao Zeca, como uma rede de caça, como notas dissonantes da canção que ele adorava.
Foi a partir dessa exigência cujas palavras nunca fui capaz de pronunciar na totalidade que o Zeca deixou de ir à duna. E eu já não corria para ir ao seu encontro. Tornei-me pesada sobre o alcatrão.Um rochedo na areia. Leve e muda em casa.
(...)

Aos Amigos - Herberto Helder


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.




Para ti querida Anabela,

este poema que ajudou a criar uma imagem poderosa da tarde cheia de livros e amizade que hoje passámos juntas. Que as palavras de Herberto Helder sejam verdadeiros encantamentos para ti como o são para mim, sempre que as leio e sinto que "o poema cresce tomando tudo em seu regaço".

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Todas as cartas de amor são ridículas...


Até as do próprio Fernando Pessoa...

Deixo-te uma carta de amor do genial Pessoa totalmente reduzida ao mimo que o amor imprime na linguagem até dos seres humanos mais geniais (o amor torna-nos mais parecidos uns com os outros). Vê lá se não achas deliciosas estas palavras que seguem um circuito circular inesgotável (como o próprio amor) e parecem ser escritas propositadamente para ser lidas num sussurro bem juntinho ao ouvido de Ofélia:



Terrivel Bebé:


Gosto de suas cartas, que são meiguinhas, e tambem gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha de um meliante de um cevado e (...) e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma crença, despia-a, e o papel acabava aqui mesmo, e isto parece impossível de ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim.


Fernando

domingo, 17 de janeiro de 2010

Eric Rohmer

A propósito da morte de Eric Rohmer, o canal 2 exibiu ontem à noite, em homenagem ao realizador, dois filmes. Só tive oportunidade de ver o primeiro filme, A minha noite com Maude, mas apreciei o existencialismo imposto à história. De facto, trata-se de um filme que se desenrola em torno da problemática do amor ou amores e insere-se numa série de 6 filmes sob a temática comum de contos morais. Os diálogos são profundos e filosóficos, como convém ao cinema da Nouvelle Vague.A este propósito deixo um dos diálogos do filme mais difíceis de interpretar e em que os personagens se debruçam sobre o pensamento de Blaise Pascal, que para além de cristão era matemático. O filme assume que a vida pode ser perspectivada tendo por base o triângulo de Pascal, implicitamente representando os triângulos amorosos, e que essa existência é dolorosa e triste. A esse propósito transcrevo uma frase que gostei e retive:

"Os jansenistas são tristes".

Eric Rohmer foi pioneiro da nouvelle vague

Cineasta que morreu na segunda-feira, aos 89 anos, deixou legado de filmes autorais, de caráter intimista, sempre focado em relações amorosas e com forte viés filosófico A morte do cineasta francês Eric Rohmer, na segunda-feira, em Paris, aos 89 anos, encerra um importante capítulo da história do cinema.Nascido Jean-Marie Maurice Schérer em 21 de março de 1920, em Tulle (França), Rohmer foi um dos maiores nomes do cinema e figura central da nouvelle vague – “nova onda”, movimento do final dos anos 1950 criado por jovens críticos como Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e François Truffaut (1932-84) que questionava o cinema clássico francês.Rohmer era conhecido por seu estilo intimista, com filmes sobre desencontros amorosos que colocavam a palavra no centro da ação cinematográfica. Seus diálogos tomavam a forma de divagações filosóficas. Em artigo publicado em sua edição eletrônica, o jornal Le Monde classificou a obra de Rohmer como uma “concepção muito francesa da arte”.“Clássico e romântico, inteligente e iconoclasta, leve e sério, sentimental e moralista, ele criou o ‘estilo Rohmer’, que sobreviverá a ele”, disse o presidente francês, Nicolas Sarkozy, em nota oficial, acrescentando que Rohmer foi um “grande autor, que continuará dialogando conosco e nos inspirando por anos e anos”.– Cada um de seus filmes era um jogo compartilhado, com regras próprias, em que cada ator fazia sua parte – disse Serge Toubiana, diretor da Cinemateca Francesa.Camus e Renoir foram influências.

Rohmer venceu o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra no Festival de Veneza, em 2001, e foi indicado ao mesmo prêmio pelo filme Os Amores de Astrée e Céladon em 2007, ainda inédito no Brasil. O diretor foi indicado uma vez ao Oscar, por melhor roteiro, em 1971, por Minha Noite com Ela. Venceu também o Urso de Prata, no Festival de Berlim, pelo filme A Colecionadora, em 1967.Em texto publicado segunda-feira, o Le Monde lembra ainda sua “sutileza espiritual, seu gosto pela impertinência e pela liberdade”, classificando o diretor como “representante do cânone do cinema francês” e, ao mesmo tempo, um “clássico contrariado”. Antes de se dedicar à direção de filmes, Rohmer foi crítico de cinema e comandou a revista Cahiers du Cinéma de 1957 a 1963. Rohmer era considerado o mais conservador do grupo. Nas críticas que escreveu, defendia o cinema clássico de Hollywood e foi um dos primeiros a reconhecer a importância do britânico Alfred Hitchcock.–Há em todos os meus filmes algo que não é leve – afirmou Rohmer em entrevista de 2007.Cita entre suas influências o norte-americano Howard Hawks, o francês Jean Renoir e o italiano Roberto Rossellini. Na literatura, enumera entre seus preferidos o escocês Robert Louis Stevenson e o norte-americano Herman Melville. Lembra-se também de O Estrangeiro (1942), de Albert Camus, livro que inspirou sua ideia de um “presente no passado”.– É um pretérito simples, só que no presente. Não marca a continuidade da ação, mas o momento da ação – disse.Rohmer tem três principais ciclos: os Contos Morais; Comédias e Provérbios (ambos com seis filmes cada um); e Contos das Quatro Estações.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Dicionário técnico-literário dos Bloom Books – 38

PALAVRAS CRUZADAS EM TELA, paulo Barreiro


Para ti,Pat, e retirado do sítio:
http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=1648

[14-01-2010] | Gonçalo M. Tavares
Solidificar – Método inimigo da literatura Bloom. Solidificar é imobilizar. Pelo contrário: derreter e evaporar.Tornar toda a matéria do texto inagarrável.
Construir o indíce-de-agarrabilidade de uma frase tal como pode existir o indíce de agarrabilidade de um objecto (objecto com pega/objecto sem pega).

É evidente que uma chávena de chá com pega se agarra mais facilmente.

É evidente também que uma frase não deverá ter uma pega de modo a que alguém a agarre com uma única mão.

As frases da literatura Bloom não têm pegas para preguiçosos. Ou se agarra a frase com as duas mãos ou a frase cai.

Para agarrares em certos objectos necessitas das duas mãos e de toda a tua atenção. Eis uma frase Bloom.

Festa do Livro

Festa do Livro - Onde o Livro é uma festa!
Local - FUNDAÇÃO DR. ANTÓNIO CUPERTINO DE MIRANDA
Data – 7 a 28 de Janeiro
Horário – segunda a sexta das 13 às 20 horas | Sábados e Domingos das 10 às 20 horas

A Festa do livro em números
- 800 m2 de área de exposição
- Editoras nacionais e estrangeiras – presentes mais de 150
- Visitantes esperados - 50 000
- Títulos - Mais de 100 mil
- Exemplares disponíveis - mais de 500 mil
- Preços - Livros desde 1,00€ sendo o preço médio dos livros em exposição de 5,00€.

Contextualização da ideia
Este evento pretende exactamente evitar que os livros tenham como destino final a guilhotina e permitir que o grande público tenha uma última oportunidade de os adquirir a um preço simbólico antes da destruição anunciada.

Programação de actividades paralelas
Desta festa faz parte um leque de iniciativas tais como: Concertos, apresentação de Livros e Sessões de Autógrafos.

9 de Janeiro
16 horas - Sessão de autógrafos com Júlio Magalhães.
17 horas – Teatro Musical da Academia de Música de Vilar do Paraíso.

16 de Janeiro
Coro de Vozes Brancas e Coro Juvenil da Academia de Música de Vilar de Paraíso.

23 de Janeiro
11h30 – Coro Infantil da Academia de Música de Vilar de Paraíso.
- Apresentação do Livro “PORTO PORTO” de João Pedro Mésseder e Helena Veloso.
- Contadores de Histórias – João Petiz

Dia 28
18 horas - Tiago Manuel apresenta Tom Maccay, Tim Morris e Max Tilmann seguido de Sessão de Autógrafos.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

MULHERES CORRENDO, CORRENDO PELA NOITE - Herberto Helder

Alfredo Coelho, Quatro Cavalos
Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando, correndo.


É o som delas batendo como estrelas
nas portas. O céu por cima, as crinas negras
batendo: é o som delas. Lembradas,
correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando.
As grandiosas patas brancas abertas no som,
à porta, com o céu lembrando.
Crinas correndo pela noite, lenços vivos
batendo como magnólias levadas pela noite,
abertas, correndo, lembrando.


De repente, as letras. O rosto sufocado como
se fosse abril num canto da noite.
O rosto no meio das letras, sufocado a um canto,
de repente.
Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços
sufocados, lembrando letras, levando
lenços, letras - nas patas
negras, grandiosamente abertas.
Como se fosse abril, sufocadas no meio.
Era o som delas, como se fosse abril a um canto
da noite, lembrando.


Ouço: são elas que partem. E levam
o sangue cheio de letras, as patas floridas
sobre a cabeça, correndo, pensando.
Atiram-se para a noite com o sonho terrível
de um lenço vivo.
E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
a cabeça branca, as patas lembrando
pela noite dentro.
O rosto sufocado, o som abrindo, muito
lembrado. E a cabeça correndo, e eu ouço:
são elas que partem, pensando.


Então acordo de dentro e, lembrando, fico
de lado. E ouço correr, levando
grandiosos lenços contra a noite com estrelas
batendo nas patas
como magnólias pensando, abertas, correndo.
Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando
de lado, com as patas
no meio das letras, o rosto sufocado
correndo pelas portas grandiosas, as crinas
brancas batendo. E eu ouço: é o som delas
com as patas negras, com as magnólias negras
contra a noite.


Correndo, lembrando, batendo.

Herberto Helder, in Poesia Toda
Apetece-me dizer pouco perante estas palavras indestrutíveis. Mulher - cavalo, mulher-magnólia ... uma força-frágil.
Só a poesia nos concede estas metamorfoses tão contrárias... só na poesia posso conceber "as patas de um cavalo" como uma imagem poética!
Um poema para nunca esquecer. ..
Um poema que faz sonhar com muitas imagens de mulheres correndo...
Não há pintura que supere, nem tão pouco ilustre, este poema.
"É o som delas batendo como estrelas nas portas"

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Casa da Música - Transmissões ao vivo e em directo


Através do site desenvolvido pela Casa da Música, no Porto, o visitante tem a possibilidade de assistir a concertos em directo com imagens e sons de qualidade. Durante a transmissão dos concertos pode também aceder a informações sobre o seu programa, bem como às biografias dos músicos e maestros em palco. Para 2010 já estão agendadas vinte transmissões em directo das actuações dos agrupamentos residentes da Casa da Música e dos concertos dos ciclos de jazz e piano. Para quem tem interesse nas actividades desenvolvidas pela instituição, o site disponibiliza registos áudio, vídeo, fotográfico e literário para consulta.




Notícias Sábado' 2009, 9 de Janero 2010

sábado, 9 de janeiro de 2010

O Fazedor de Viúvas - Valter Hugo Mãe

Encontrei a felicidade em algumas das dez histórias que a Dom Quixote publicou em Novembro de 2009 sob o título, precisamente, "Em Busca da Felicidade". Oito dos contos são totalmente inéditos.

De Dulce Maria Cardoso, vencedora em 2009 do prémio da União Europeia para a Literatura, pode-se ler A Mosca e o Copo de Vinho Rosé; de João Tordo, o mais recente vencedor do Prémio literário José saramago, Elsa; de José Luís Peixoto, autor com romances traduzidos em mais de 18 línguas que tem sido bastante elogiado nacional e internacionalmente, Como Imagino a Primeira Vez & Que Fizermos Sexo; de Lídia Jorge, vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de escritiores e o Prémio Correntes d' Escritas, o conto Representação do Mundo; de Maria Antonieta Preto, finalista do prémio de conto da Associação Portuguesa de Escritores, Acende a Felicidade; de Maria do Rosário Pedreira, escritora que trabalha em três vertentes(literatura juvenil, ficção e poesia) Sem Perdão; de Ondjaki, poeta e prosador membro da União de escritores Angolanos, O Cheiro do Mundo; de Patrícia Reis, autora que integrou os 50 livros finalistas do Prémio Portugal Telecom, A Felicidade Deles; de Pepetela, vencedor do Prémio camões em 1997, Letras Perigosas; e finalmente de Valter Hugo Mãe, vencedor do Prémio José Saramago 2006 e autor de mais de dez títulos de poesia, O fazedor de viúvas, conto que destaco neste post.


O Fazedor de Viúvas


"(…) todos o conheciam como o fazedor de viúvas. era o fazedor de viúvas porque se metia com mulheres casadas que, breve tempo depois, enterravam os maridos. ninguém podia garantir que as incentivasse a livrarem-se deles, ao menos não até a dona hortência ter sido presa e saído de casa em braços do polícia tito mata aos berros aflitos, que ele, o zequelino cutelo, é que lhe tinha deixado um veneno para ratos nas mãos, que ele, o fazedor de viúvas, é que tinha posto louca, uma mulher tão simples enganada por um homem tão perigoso.era o que ele queria. Não queria mais nada. só que elas matassem os maridos. como se depois disso lhes perdesse o desejo, ou, de certeza, nem desejo algum lhes tivesse, só as queria deitar em perdição. Sim, porque sabia que andara com esta e com aquela e, ainda que viúvas em liberdade sem o azar da dona hortência, ele já não as queria. Mal o cornudo fosse à terra, ele desaparecia de beira delas. a minha avó, que pouco opinava sobre a amizade do meu avô com tão suspeito homem, no dia em que a dona hortência foi presa disse alto à entrada da sala, esse homem é um assassino, não o quero em minha casa. o meu avô silenciou-se como se fosse culpado e ouviu, comigo, o bater da porta da frente. A minha avó saíra para ver a algazarra na praça. (…) pp. 131, 132

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MICROCONTOS - Autores Portugueses


A Visão desta semana publicou sete microcontos escritos por sete autores portugueses nascidos do desafio de contar uma história em menos de mil caracteres – Dulce Maria Cardoso, Filipa Martins, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, José Mário Silva, Possidónio Cachapa e Ricardo Adolfo.
“ Grandes escritores ensaiaram o microconto, como Kafka, Cortázar, Jorge Luís Borges, Chekov, H. P. Lovecraft, Ray Bradbury e os portugueses Mário Henrique-Leiria com os contos curtos do Gin-Tonic, ou Jorge de Sousa Braga.”

Neste post transcrevo os três melhores microcontos que a meu ver são mais pungentes e consistentemente literários apesar da limitada extensão a que se submeteram.


No início do ano…

NO INÍCIO DO ANO, uma donzela do Oriente diz ao seu amado esposo:
- Não caminhes em direcção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o amado nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Seguiu assim o homem em direcção a leste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa pela tal amante mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, a amante disse-lhe:
-Não caminhes em direcção ao Oeste. Se o fizeres encontrar´
As a morte.
Mas o homem nada ouviu, pois, nesse momento pensava na sua esposa legítima que o esperava.
Seguiu assim o homem em direcção a oeste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa, com alegria e calor, pela sua esposa.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, ouviu da sua amada esposa, uma donzela do Oriente:
- Não caminhes em direcção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o amdo nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Seguiu assim o homem em direcção a leste e depois a oeste e depois a leste e sucessivamente, dias e dias, meses e meses, anos e anos – e não morreu.
A morte surgiu apenas quando o homem já velho e sem forças ficou incapaz de se mover – quer para leste quer para Oeste.

Gonçalo M. Tavares

Micronarrativa com mulher dentro

UMA MULHER LIVRE resolveu escrever um livro em 45 capítulos que pudesse arrumar confortavelmente no bolso. Esta ideia contudo perturbava-a sem que soubesse ao certo porquê. Durante várias noites não conseguiu dormir a pensar nas razões do seu incómodo. Enquanto se esforçava por adormecer, passavam-lhe diante dos olhos imagens do rosto da mãe, ainda jovem, de saias compridas, colares e longos cabelos. Do pai, quase sempre estendido debaixo de uma luz moribunda de Verão, belo como um deus que se consumisse aos poucos. Ela e os irmãos a correrem descalços e nus em volta de uma piscina de plástico com patos e flores. Ela, sozinha, na faculdade, a fechar a porta do quarto depois de uma noite de sexo amigo, daquele que não prende.
A pintar as paredes da primeira casa, da segunda… enquanto os namorados ficavam estendidos, belos como deuses ainda por consumir. A fechar as portas com dor. Uma mulher livre quis escrever um livro com a ligeireza do ar e descobriu que era cega. Como se fosse verão.

Possidónio Cachapa


O Futuro

DERAM-LHES CARTA BRANCA para fazer o que desejassem, como desejassem, sem limites orçamentais. Junto à costa, os terrenos expropriados eram uma espécie de tábua rasa, estendendo-se até ao horizonte longínquo. «Construam o futuro, aqui e agora», pediu-lhes o Presidente, num discurso inflamado, solene, feito para impressionar os Presidentes dos países vizinhos. Então, eles chegaram. Os melhores arquitectos. Os melhores engenheiros. Os melhores empreiteiros. Nos projectos que pousavam em cima das elegantes mesas de vidro, estava o futuro. O Futuro, com maiúscula. Uma cidade perfeita, ecologicamente sustentada, exemplar. A cidade-síntese. A cidade ideal. Então, o Presidente morreu, em circunstâncias misteriosas. A primeira decisão do sucessor foi embargar o Futuro, dirigir as verbas para outros fins. Os alicerces do Futuro ficaram expostos ao vento, consumidos pelo salitre. Ainda hoje podem vistos, junto a costa, por entre enormes extensões de areia, detritos e urtigas.

José Mário Silva

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ODE TRIUNFAL de Álvaro de Campos para NUNO CANELAS

Nuno Canelas, Gravura s/ título

Como prometido, ofereço um excerto do poema Ode Triunfal do Engenheiro Naval Álvaro de Campos ao Nuno Canelas para que ele se inspire na sua criação artística que muito aprecio.

Deixo o endereço do seu site para que possam conhecer a sua obra num clicar de rato:
http://web.mac.com/nunocanelas/Site_2/site_de_nuno_canelas.html


Ode Triunfal


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.



Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!




Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
há Platão e Virgíllo dentro das máquinas e das luzes eléctricas
porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.



Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
(...)



Álvaro de Campos



segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ondjaki e Max Richter


Devaneio por entre a poesia de Ondjaki que sabiamente me ofereceste e acompanha essa minha leitura a música de Max Richter. Como pude estar cega durante tanto tempo? Como pude desconhecer este compositor? Obrigada amiguinha por não me manteres na ignorância!
Para ti, lindíssima amiga, uma música linda de Max R. a acompanhar a chuva que cai e o poema que teima em ficar... do meu Ondjaki...










SEM TRÉMULOS BARULHARES, A CHUVA


convidei uma chuva silenciosa
a fazer aparição num poema.

[tive que pedir licença ao assobiador. ele acedeu].
era uma chuva quase triste,
vivia consumida de se esvair.
"chego sem fazer barulho pra ninguém
se lembrar de me evitar".
era uma chuva quase bonita.
tinha muita tendência poética
-isto me parecia óbvio.
tinha também alguma incapacidade para entender
o desejo humano
de pisar um chão seco.
depois de o assobiador eixar aquela aldeia
calculei que ninguém mais fosse acariciar
aquela chuva.
era uma chuva carente
-isso me pareceu óbvio também.
lhe atribui este lar provisório
e logo se verá
o daqui pra frente.
isso me espanta nas coisas
que não pertencem ao foro das pessoas:
a chuva aceitou ficar.
vive actualmente
na leitura [mesmo que desatenta]
de um poema.

o barulhar dessa chuva
é uma espécie de pequena mentira.

dizem que as crianças lhe conseguem escutar.
dizem que os gambozinos lhe pressentem
e nela, por vezes,
se deixam vislumbrar.

dizem.


Ondjaki, Materias para confecção de um espanador de tristezas

A Última Colina - Urbano Tavares Rodrigues



É muito agradável a leitura de todos os contos d' "A Última Colina" de Urbano Tavares Rodrigues, este escritor tão sensível à poesia das coisas. Como se pode ouvi-lo dizer neste breve videoclipe, cheio de serenidade e ternura, são várias os estilos cultivados nos diversos contos, desde aqueles de pendor mais realista como "Judas", onde se questionam os problemas sociais mais actuais até àqueles que tocam o onirismo e o realismo mágico (os meus preferidos) nos quais se constroem personagens que explicam a beleza e a essência da vida como por exemplo o narrador do conto “O Cavalo da Noite” (conto editado para um público infanto-juvenil, pela Dom Quixote, na colecção “Moinho de Vento” com ilustrações de Raffaello Bergonse muito fieis ao texto). Vale a pena conhecer os contos mais recentes (2008) deste nosso querido e valeroso escritor.


"Apareceu de madrugada e ninguém sabia de onde vinha. Era um cavalo tão preto que parecia azul, da cor das noites profundas. Tinha corrido sem destino pelas planícies do Alentejo. Quando avistou a brancura do «nosso» monte, parou. Veio depois bater com a pata à porta grande da cozinha.

Fui eu que o ouvi primeiro, relinchou, aproximou de mim o focinho e lambeu-me a testa e os cabelos. Tinha nos olhos muito pretos uma água de amizade. (...)"

O Cavalo da Noite

domingo, 3 de janeiro de 2010

Max Richter - Written in the Sky


Fiquei recentemente muito entusiasmada com Max Richter, compositor que o Paulo me apresentou por saber que poderia bem fazer-me esquecer (por me lembrar muito) do meu adorado Phiplip Glass, possibilitando-me, assim, dar-lhe um pouco de descanso. As faixas de piano são fabulosas e por isso não posso deixar de te oferecer uma de que gosto muito (a começar pelo título que transpira a emoção da escrita... ou da música (???) - "Written in the sky")


Na semana passada encontrei um comentário a este CD de Max Richter no Actual (suplemento do jornal Expresso) que transcrevi para ti por saber que gostas de ler acerca do que ouves. Aqui vai, querida amiga:

"Lançado em 2002 e agora reeditado, o primeiro álbum em nome próprio do músico e compositor Max Richter sobrevive aos anos passados. Gravado com a BBC Philharmonic Orchestra, "Memoryhouse" segue um conceito usado e muito abusado nos anos 1990, o da banda sonora para um filme imaginário. Sucede que Richter fá-lo com uma eloquência e precisão (da recorrência de motivos sonoros aos títulos funcionais) que impelem o ouvinte a "uma consulta infrutífera, do Internet Movie Data Base. O filme que se ouve em "Memoryhouse" é guiado pelo minimalismo. Paisagens devastadas, geladas e monocromáticas pairam no ar das 18 faixas. A palavra-chave é "memória": esta é uma obra que evoca um século XX europeu em estado de pós-guerra, repleto de fantasmas que ditam a vida dos sobreviventes. Chuva cai durante "November". Um estertor de "voz" a uivar sufoca em "Sarajevo". Há um tecto de nuvens cor de chumbo que nunca levanta deste álbum, nem quando esporádicos loops rítmicos entram num frenesim larvar. Uma obra austera, pungente e invernosa, de um compositor de carreira breve mas consistente."
Jorge Manuel Lopes

Aqui te deixo a faixa que anuncia o álbum do post, mas vale bem a pena ouvir todas as músicas dele:

http://www.youtube.com/watch?v=q0CVMpaQoVY

Andrew Bird - Tables and Chairs


Ana Bela Ana, sigo o teu exemplo e para abrir o ano de 2010, deixo uma música de um CD magnífico de Andrew Bird que ouço, nestes dias carregados de inverno, vezes sem conta e entendo como um livro dividido em partes... sinto-lhe um fio condutor (com o som belíssimo do violino que tanto me encanta!) que nos leva a diferentes recantos de uma mesma história. Vê se a entendes assim (que lindo som o do xilofone...) e ouve-a vezes sem conta, com o frio e a chuva à espreita lá fora. Sonha muito, muito, linda amiga, tanto ou mais, se possível, do que mereces...

http://www.youtube.com/watch?v=UjKpHnF_sRg


Já agora, dá uma espreitadela a um concerto de Andrew Bird e à interpretação deste mesmo tema.

 http://www.youtube.com/watch?v=RfoOvJuQuC0

A entrevista de Eduardo Lourenço ao JL

Amiguinha, gostei bastante desta última edição do JL que pede a diversas personalidade portuguesas uma opinião sobre o que de melhor se pasoou nesta década que agora findou (2000-2009).
Destaco em primeiríssimo lugar a entrevista que foi feita ao sábio Eduardo Lourenço que me surpreende sempre! Vou deixar aqui algumas palavras saborosas que retive da entrevista a propósito do seu próprio balanço:




"O HOMEM É O VÍRUS DO COSMOS"


"NINGUÉM PODE EXISTIR SENÃO EM FUNÇÃO DESSA CRENÇA, DO POSITIVO SENÃO A HUMANIDADE SUICIDAR-SE-IA. VIVEMOS EM FUNÇÃO DESSA IDEIA DE QUE O AMANHÃ É MELHOR DO QUE O HOJE. MAS ESSA É UMA HISTÓRIA DE LOUCOS, CONTADA POR LOUCOS. NÃO MELHORÁMOS"
(a propósito da frase de Nietzche: A alegria é mais profunda do que o que eu penso à noite)

La última entrevista a García Lorca

Li uma notícia que achei particularmente curiosa, sobre a última entrevista que García Lorca deu antes de ser fusilado.  http://www.laopinioncoruna.es/cultura/2010/01/03/ultima-entrevista-garcia-lorca/347503.html

Decido transcreve-la e partilhá-la contigo, amiguinha....


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Dos meses antes de su muerte, el escritor confesaba sus inquietudes al ilustrador Bagaría: "Execro al hombre que se sacrifica por una idea nacionalista sólo porque ama a su patria con una venda en los ojos"
El 10 de junio de 1936, en las páginas del diario'El Sol' se publicaba el resultado de un encuentro entre dos de las personalidades más populares de la cultura de la España republicana: el bohemio periodista y caricaturista Luis Bagaría y Federico García Lorca. Bajo el título de 'Diálogo con García Lorca', el texto ha pasado a la posteridad como la última entrevista realizada al poeta, si bien hay que aclarar que el texto -recuperado en el libro 'Caricaturas republicanas' editado por Rey Lear-, reproduce más bien un intercambio de impresiones en el que ambos personajes se preguntan el uno al otro acerca de cuestiones diversas

 SALVADOR RODRÍGUEZ (INTRODUCCIÓN Y TRASNCRIPCCIÓN)
A CORUÑA Al paso de los años, aquella entrevista ha ido adquiriendo un valor insospechado. No debemos olvidar que tan sólo un mes y ocho días después de su publicación estallaba la Guerra Civil: el 19 de agosto de 1936 Federico García Lorca era asesinado y, para evitar que le ocurriese lo mismo, a Luis Bagaría no le quedaría otra salida que emprender el camino del exilio, primero a París y después a La Habana, donde falleció en 1940.

Obviando las preguntas que Lorca también efectuó a su amigo (comprobará el lector que el estilo dista mucho de lo que hoy pudiera considerarse lenguaje periodístico), a continuación transcribimos un extracto de las más interesantes opiniones y reflexiones vertidas por el malogrado literato en aquel diálogo entre camaradas celebrado y difundido a poco más de dos meses de la muerte del dramaturgo y poeta granadino:



-Luis Bagaría: ¿Crees tú, poeta, en el arte por el arte, o, en caso contrario, el arte debe ponerse al servicio de un pueblo para llorar cuando él llora y reír cuando este pueblo ríe?

-García Lorca: Este concepto del arte por el arte es una cosa que sería cruel si no fuera, afortunadamente, cursi. Ningún hombre verdadero cree ya en esta zarandaja del arte puro. En este momento dramático del mundo, el artista debe llorar y reír con su pueblo. Hay que dejar el ramo de azucenas y meterse en el fango hasta la cintura para ayudar a los que buscan las azucenas. Particularmente, yo tengo un ansia verdadera por comunicarme con los demás. Por eso llamé a las puertas del teatro y el teatro consagró toda mi sensibilidad.


-L.B.: ¿Crees tú que al engendrar la poesía se produce un acercamiento hacia un futuro más allá, o al contrario, hace que se alejen más los sueños de otra vida?                                



-G.L.: La creación poética es un misterio indescifrable, como el misterio del nacimiento del hombre. Se oyen voces no se sabe dónde, y es inútil preocuparse de dónde vienen. Como no me he preocupado de nacer, no me preocupo de morir. Escucho a la naturaleza y al hombre con asombro, y copio lo que me enseñan sin pedantería y sin dar a las cosas un sentido que no sé si lo tienen. Ni el poeta ni nadie tiene la clave del mundo. Quiero ser bueno. Sé que la poesía eleva, y siendo bueno con el asno y con el filósofo, creo firmemente que si hay un más allá tendré la agradable sorpresa de encontrarme con él. Pero el dolor del hombre y la injusticia constante que mana del mundo, y mi propio cuerpo y mi propio pensamiento, me evitan trasladar mi casa a las estrellas.



-L.B. : ¿No crees, poeta, que sólo la felicidad radica en la niebla de una borrachera, borrachera de labios de mujer, de vino, de bello paisaje, y que al ser coleccionista de momentos de intensidad se crean momentos de eternidad, aunque la eternidad no existiera y tuviera que aprender de nosotros?



-G.L.:Yo no sé en qué consiste la felicidad. Si voy a creer al texto que estudié en el Instituto, del inefable catedrático Ortí y Lara, la felicidad no se puede hallar más que en el cielo; pero si el hombre se ha inventado la eternidad, creo que hay en el mundo hechos y cosas que son dignos de ella, y por su belleza y trascendencia, modelos absolutos para un orden permanente.



-L.B.: ¿No crees que tenía más razón Calderón de la Barca cuando decía 'Pues el delito mayor/del hombre es habr nacido' que el optimismo de Muñoz Seca?



-G.L.: El optimismo es propio de las almas que tienen una sola dimensión: de las que no ven el torrente de lágrimas que nos rodea, producido por cosas que tienen remedio.

-L.B.: ¿No crees Federico, que la patria no es nada, que las fronteras están llamadas a desaparecer? ¿Por qué un español malo tiene que ser más hermano nuestro que un chino bueno?



-G. L.: Yo soy español integral, y me sería imposible vivir fuera de mis límites geográficos; odio al que es español por ser español nada más. Yo soy hermano de todos y execro al hombre que se sacrifica por una idea nacionalista abstracta por el solo hecho de que ama a su patria con una venda en los ojos. El chino bueno está más cerca de mí que el español malo. Canto a España y la siento hasta la médula; pero antes que esto soy hombre de mundo y hermano de todos. Desde luego, no creo en la frontera política.


A continuacion Bagaría inquiere a Lorca por las dos 'cosas' que, a su juicio, 'tienen más valor en España: el canto gitano y el toreo'. Al respecto de este último, responde el poeta:


-G.L.: El toreo es, probablemente, la riqueza poética y vital mayor de España, increíblemente desaprovechada por los escritores y artistas, debido principalmente a una falsa educación pedagógica que nos han dado y que hemos sido los hombres de mi generación los primeros en rechazar. Creo que la de los toros es la fiesta más culta que hay hoy en el mundo. Es el drama puro, en el cual el español derrama sus mejores lágrimas y sus mejores bilis. Es el único sitio donde se va con la seguridad de ver la muerte rodeada de la más deslumbradora(sic) belleza.



-L. B.: ¿Qué poetas te gustan más de la actualidad española?

-G. L.: Hay dos maestros: Antonio Machado y Juan Ramón Ramón Jiménez. El primero, en un plano puro de sinceridad y perfección poética; poeta humano y celeste, evadido ya de toda lucha, dueño absoluto de su prodigioso mundo interior. El segundo, gran poeta,turbado por una terrible exaltación de su yo, lacerado por la realidad que lo circunda, increíblemente mordido por cosas insignificantes, con los oídos puestos en el mundo, verdadero enemigo de su maravillosa y única alma de poeta