quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

PINTAR O TEU ANIVERSÁRIO com 3 pintores


Simon Hemmer, The Fury, 2008



                                Albert Oehlen

Loris Lombardo

O primeiro quadro, de Simon Hemmer, pintor-seguidor-aprendiz de Albert Oehlen, exprime a desintegração (ou a integração, tu decides...) do universo, todo ele em pleno alvoroço destrutivista ou criacionista ( ???) e foi nesta fúria metafísica que encontrei o motivo da oferta desta obra de arte onde a cor prepara a implosão final numa espécie de névoa emergente que impressiona o espectador num contraste cromático que quase vicia o olhar. Podes vê-lo em exposição algures (não fixei o nome da galeria!) na cidade de Amesterdão. Vamos lá um destes dias?

O segundo quadro, de Albert Oehlen, o pintor alemão considerado o grande revolucionário da arte abstracta contemporânea, foi a primeiríssima escolha para a decoração deste post dedicado ao teu aniversário. A obra dele encontra-se em exposição (intitulada “ Realidade Abstracta”) em Paris no Museu de Arte Moderna e é interessantíssima... Na revista Vogue de Dezembro (na edição espanhola) Oehlen dá-se a conhecer numa interessante entrevista. A sua trajectória no mundo da pintura é diversificada, recheada de mudanças e constantes transgressões. Passou do estilo figurativo para o abstracto, da colagem para o chamado “computer painting”, valendo mesmo a pena conhecer as suas obras tão ricas e multifacetadas. Com excesso de humildade (que na voz e nos gestos de alguns “fora de série” me irrita em demasia), Oehlen confessa, logo no início da entrevista, algumas palavras inesperadas :“É impossível pintar pior (…) Não tenho nenhuma garantia de que no final me tomem a sério.”


A pintura que dele escolhi para dar cor ao teu aniversário não tem maior pretensão do que oferecer-te um ramalhete de flores abstractas, num gesto artístico em que leio muita amizade. O corpo da figura humana representada, apesar de parecer masculino, é comprovadamente feminino pelo poder transfigurativo da palavra que o pintor lhe inscreve, à maneira de Magritte. Achei isto genial. Isto e tudo o resto, feito de tinta e imaginação. Só comprovei uma vez mais que mais do que a beleza de um rosto, o que interessa é o coração e os gestos que o animam.

O terceiro quadro, do pintor napolitano Loris Lombardo, agradou-me por me lembrar de um qualquer nascimento. Talvez devido à expressão de uma forte desprotecção que essa criança exibe e, por extensão, da impotência com que qualquer ser humano se vê confrontado perante a desajustada luta entre o frio e a completa nudez. A meu ver, a primeira roupa devia vir agarrada à pele. Isto seria o ideal para precaver a situação da criança que nasce na pobreza ou que tem uma mãe ou um pai loucos. A morte é, neste aspecto, mais confortável, pois não vamos nus para debaixo da terra… Há sempre alguém com a coragem e a bondade de vestir o morto. Agradou-me a expressão inexpressiva da criança a contrastar com a sua posição cruzada dos braços, funcionando como uma invocação desesperada e agónica e apaziguando toda a falta de expressividade humana. Adoro as cores de fundo que pintam o real, a chuva geométrica, multicolor e angulosa e, finalmente, o aspecto estranho de um cabelo vivo que mais parece uma vista parcelar do globo terrestre.

Espero que gostes tanto como eu destas três pinturas, destes três pintores, que te dizem, cada qual à sua maneira, “Parabéns Anabela”!



Uma Flor do outro Mundo - um Poema de Aniversário para 29/12/09



Num só verso pode nascer uma flor do outro mundo.
basta regá-lo com palavras estranhas
bem nas entranhas
deste poema de aniversário.
líquidas
iridiscentes
vítreas
nascem pétalas incertas a empurrar esta data.
são dessa flor estrangeira feita de sílabas
que soletram o nascer. novo ser.
basta cantar-lhe poesia. vê-la neste telescópio
criado mesmo agora para a poder ver:
T E L E S C Ó P I O
e ao espreitar a límpida lente vê
todo o espaço em branco da não escrita
todo o espaço negro que o universo não ocupa
e uma flor do outro mundo
impressa a tinta tão espessa
que o teu nome quase não se lê
por detrás dos estames
deste poema de aniversário.

PARABÉNS ANABELA!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Só para mim, Luís Miguel Nava



«Queria ter o sol só para mim.
tê-lo de forma a dele poder de vez em quando ceder parte apenas a um dos meus mais íntimos amigos


Pat que me faz sentir a melhor das amigas. O poema foi retirado do livro que me ofereceu... Obrigada doce amiga)

domingo, 20 de dezembro de 2009

O Senhor Walser - Gonçalo M. Tavares



A leitura de O Senhor Walser (Robert Walser, o famoso contista suiço), o vizinho mais periférico do bairro de Gonçalo M. Tavares, fez uma das delícias do meu sábado. Este "avatar filosófico" é um verdadeiro concentrado do poder narrativo (e imaginativo) de M. Tavares, que consegue através deste personagem misantropo corroborar a tese de que não há invasão mais violenta do que a da nossa própria intimidade, a do nosso espaço físico privado. A casa novíssima que o Senhor Walser constrói na floresta, esta última anunciada no desenho da capa pelos espessos e concêntricos círculos negros que inviabilizam uma visão perfeita do azul do céu, é invadida contra as maiores expectativas do personagem (que se imaginava a ser visitado por Thereza M., a quem esperava beijar brevemente no seu sofá cinzento ) por uma série de técnicos especializados em diversas avarias e remendos. Um atrás de outro lhe entram em casa, derrubam e constroem paredes a seu bel-prazer, deitam abaixo janelas que tapam provisoriamente recorrendo a cartões que fixam à parede com fita-cola forte, sobem andaimes até ao telhado rumo a uma fenda imprevista, levantam o soalho em vários compartimentos devido a problemas de infiltração, retiram rodapés, etc., etc., etc., passando a noite inclusivamente no seu espaço, já irreconhecível, dormindo no chão e onde lhes parecia mais cómodo de forma a evitar a escuridão que tinham que percorrer durante vários quilómetros, a uma hora já tardia, até ao bairro mais próximo. Mas para além de um enredo promissor, que se impõe por uma focalização inovadora relativamente aos aspectos mais rotineiros e desapercebidos dos "narradores normais" como, por exemplo, a forte sugestividade de uma torneira pousada no soalho, destaca-se a genialidade de uma escrita que faz cintilar o pormenor linguístico nos diferentes modos de expressão, tornando-o tão grande e importante como o motivo central que parece ter estado na génese desta obra. Assistimos, de resto, à celebração da simplicidade e da acutilância da palavra a par de um tema e de um nome da literatura alemã que não quer deixar esquecidos.




O caos imposto pela Natureza (a floresta) e pela sociedade (os vizinhos do bairro) de que aparentemente o senhor Walser se quer afastar acaba por ultrapassar a distância a que o mesmo se colocou, derrubando a barreira entre o saber comum e a intelectualidade esteta ao entrar pela porta da sua casa inaugural, com a forma humana de sucessivos canalizadores, electricistas, carpinteiros e demais técnicos de (re)construção do seu projecto de vida...que pela enorme casa concebida, seria pleno de expectativas discordantes das peripécias aqui descritas. Agradeço à Anabela este belo presente cheio da amizade dela, inscrita numa dedicatória que nunca esquecerei, como incentivo para a cura de alguns dos meus problemas existenciais que facilmente me tornam noutra pessoa, mais triste e ausente...



E agora não posso dispensar palavras deste escritor que nunca deixa de me causar espanto, de resto como a minha amiga Ana Bela Ana. Aqui seguem palavras que valem a pena ler e reler que remetem para o momento anterior à odisseia do ultimar técnico da casa, ainda quando Walser se regozijava de tanto usufruir de todas as suas novidades domésticas e decorativas:

"Na cozinha, Walser passava a mão curiosa pelos ladrilhos de parede. Um ou outro mais para fora e outros (claro) demasiado metidos para dentro, mas no geral todos no mesmo plano. (...) Abriu então a torneira e sem utilizar qualquer copo, inclinando como na infância o pescoço, bebeu a mais saborosa água de que se recordava. Com a mão limpou os ingos que lhe caíam do queixo e quase soltou um urro de contentamente por aquele tempo, finalmente, de clara solidão.Por ali, nem um único ruído de homem.


E os rodapés, por toda a casa, que perfeitos! Mais: que sentido estético! Que entendimento exacto da maneira como cor e forma se devem misturar como se existissem já assim (os rodapés) na natureza, desde o início.


Suspira, então, fundo, Walser, com a sensação de que encontrou algo de que jamais poderá abdicar.


Não se poderá acusar pois como excessivo esse movimento de quase dança com que Walser acaricia mobílias, roda manípulos de portas, se senta e levanta das várias cadeiras. Depois, deixa-se afundar no sofá cor de cinza, para dois, imaginando já a sua companheira, a forma como lhe afastaria os cabelos, como se aproximaria dela. O terreno está conquistado. A sua nova morada!


Walser senta-se então à mesa da sala e escreve a carta que há muitos anos lhe parece indispensável, dirigida a Thereza M. Nas suas linhas descreve, de modo contido, o espaço, e convida-a, com os mais recatados termos, para ua visita. Quanto tempo demorou a escrever aquela carta? Muito. Cada palavra no seu sítio, escrita cada letra como se da sua forma dependesse a própria estrutura da casa, as suas fundações. Que concentração, a de Walser!


Por fim, se bem que a morada estivesse bem clara no exterior do envelope, Walser não se coibiu de a repetir, bem como de desenhar na carta um mapa rudimentar com um enorme X assinalando o local. Queria ter a certeza de que ela - a "sua" Thereza - alcançaria, sem desvios ou equívocos, a porta da sua casa nova." (p. 18)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A Mulher que Prendeu a Chuva - Teolinda Gersão



"A mulher que prendeu a chuva" é mais uma micronarrativa de Teolinda Gersão que merece a atenção por proporcionar uma reflexão sobre o poder que os mitos exercem sobre o ser humano. Neste conto que dá o título a esta colectânea, é um mito africano que inebria por completo, durante precisamente 7 minutos,  o personagem principal, um viajante em negócios que se hospeda num hotel de luxo lisboeta e ouve a história da mulher que prendeu a chuva, pela voz de uma empregada de limpeza  negra, enquanto esta trabalha na sala contígua com uma colega de trabalho. O pensamento mágico cruza-se com um modo de pensar e de agir formatado pelo Ocidente, chocando com este.  Este texto faz lembrar que também na Idade Média a mulher era sacrificada por motivos idênticos, sendo vista como a encarnação do Mal. Mais uma vez a mulher ocupa um lugar de destaque na diegese Gersiana.

Sobre a escritora Teolinda Gersão, Vergílio Ferreira disse um dia: «É uma cúmplice, nesta loucura de encher a vida a escrever romances. Como se numa multidão indiferente alguém erguesse a voz para me saudar. Como se num deserto alguém esperasse para lhe passar o testemunho. Como se de repente eu fosse menos louco».

Também eu me sinto feliz e menos louca ao ler estas palavras do grande Vergílio Ferreira.... e sobretudo feliz por pressentir que o mundo da literatura de ficção arrasta cumplicidades tão fortes e amizades tão sinceras como se vê raramente. Como se a linguagem de uns e de outros escritores fosse ela própria  pessoas que nos fascinam, pessoas inesquecíveis, com olhares profundos sobre as coisas que acontecem sem palavras que as descrevam. Rostos com quem falamos sem sermos vistos. Verdades brancas. 

Mostro um excerto em que estão presentes as duas vozes narradoras das quais se sobreporá a voz africana que abrirá naquele quarto uma geografia exótica, "um pedaço de África intacto, como um pedaço de floresta virgem", onde o primeiro narrador, um narrador europeu, se perdeu.



"Foi então que percebi que falavam . Uma delas sobretudo, era a que falava, a outra limitava-se a lançar interrogações, ou a emitir sons, de quando em quando. Eram duas vozes diferentes, que se manifestavam de maneira desigual.


A chuva, ouvi dizer uma delas. Foi por causa da chuva (...)


Foi por causa da chuva, repetiu.


Não chovia há muito tempo e tudo tinha começado a morrer. Até as árvores e os pássaros. As pessoas tropeçavam em pássaros mortos. (...).


Tudo tinha secado, a terra abria fendas, ouvi a mulher dizer ainda. Gretada de falta de água. A terra tinha feridas na pele. Animais morriam. Pessoas morriam. Crianças morriam. O ribeiro secou. O céu secou. As folhas torciam-se, nas árvores, e depois também as árvores secavam. (...)


Então começaram vozes, nas pessoas da aldeia (...)


Alguém era culpado pela seca. E depois começaram as vozes, na aldeia, de que a culpada era aquela mulher. Outros diziam que não. Ninguém sabia ao certo. Mas a seca não acabava, e tudo continuava a morrer.


Até que chamaram o feiticeiro. Acenderam o lume e queimaram ervas e ele bebeu o que tinha que beber e ficou toda a noite a murmurar palavras que ninguém entendia. Pela manhã vieram os Mais Velhos e ele disse que era por causa da mulher. Foi isso que ele disse e todos ouviram: Aquela mulher prendeu a chuva.


Então os Mais Velhos entenderam o que se ia passar e olharam para o chão, porque tinham piedade da mulher que vivia sozinha, afastada da aldeia. Muito tempo antes o marido tinha-a abandonado e morrera-lhe um filho e ela tinha chorado tanto que o seu corpo tinha secado, os seus olhos tinham secado, toda ela se tinha tornado um tronco seco, dobrado para o chão. Tinha-se tornado bravia como um animal, nunca se ouvia falar, só gemia, e gritava às vezes de noite.


Essa mulher, repetiu o feiticeiro olhando para o chão.


Acendeu o cachimbo e soprou devagar o fumo: Ela prendeu a chuva.


Mas ninguém queria matá-la. E também o feiticeiro disse que não era por sua vontade.


Ficaram parados, como se esperassem. Todos os da aldeia, sentados debaixo de uma árvore. E o tempo também parou, e não passava.(...)


Então um jovem ofereceu-se. Eu vou, disse. Como se fosse igual matar a mulher, ou ser morto.(...)


Ele foi ter com ela à cabana e passou a noite com ela. Dormiu com ela e fez amor com ela. Passou-lhe as mãos no sexo, nos seios, nos cabelos, acariciou-a com ternura e depois apertou-a com os braços, como se fosse outra vez fazer amor com ela, apertou mais e mais, em torno do pescoço até sufocá-la. E depois veio cá fora da cabana, com a mulher morta nos braços e deitou-a na terra e todos caminharam em silêncio em volta. (...)


E então começou a chover, disse a mulher. Então começou a chover."




Teolinda Gersão, A Mulher que Prendeu a chuva, Sextante Editora




terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Tempo e as Coisas - Um olhar sobre o Tempo e a Fotografia


É áspero o tempo
como a palavra que nos agride em indiferença altiva.





Partem-se os vidros 
atirando-lhes um punhado de tempo aos reflexos.

domingo, 13 de dezembro de 2009

O meu ruído preferido - texto produzido na Oficina de Escrita Criativa 5 estrelas


O texto que transcrevo foi produzido na Oficina de Escrita Criativa 5 Estrelas por duas alunas do 10º ano e teve o objectivo de treinar a ironia e o suspense narrativo.Constitui uma amostra de como na escrita se pode desenvolver a criatividade. Este logotipo foi também criado por um aluno na nossa Oficina.

O meu ruído preferido
É como uma motosserra que está mesmo ao lado do meu ouvido, irritante, assustadora.

O estimulante ruído é sempre impertinente e inconveniente a caminho de casa, na estrada que tomo, depois da escola. Ao fim da tarde, lá vem aquele ruído debilitante, que até me faz arredar num salto, quase caindo no chão com um medo tremendo. Porém adoro aquele barulho ensurdecedor que arrepia os nervos como uma aranha a passear-se lenta à flor da pele, quando não me posso mover.
Que fascínio o raio do ruído me provoca… Qual ruído?!?
É, claro, o VRRRUM-VRRRUM de qualquer mota.



Deixo o endereço da oficina de escrita criativa onde este texto mora:


http://escritacriativa75estrelas.blogspot.com/

Os Cantores de Leitura - Maria Gabriela LLansol

Deixo um excerto que cristalizou uma tarde em que tivemos tempo para a leitura cantada:


Eu,
um de nós, talvez a geométrica flor, tenho experimentado
a sensação - que até agora desconhecia -, que estar
vivo e estar só é um sinal de alegria,
semelhante ao tombar da neve.

Se as espirais delicadas do contacto com os outros (cada
vez mais delicadas) se transformam em mais frágeis à medida
que a sensibilidade aos actos de linguagem - e aos
actos -
cresce,

esta face a face sem intermediários humanos com as coisas
pode fazê-las transparecer num espaço máximo.

É talvez uma fase nova da aprendizagem da leitura - será
preciso entrar nesse espaço em que dos flocos já caem le-
tras para usar finamente o privilégio de ensiná-las aos ani-

mais do Mosteiro, chamamento que aqui demos à sua
contemplação. Mosteiro e monstro - e os caminhos
transitáveis entre eles;
por fim, suponho que o nosso cântico de leitura dará nas-
cimento a híbridos.

Maria Gabriela LLansol, Os Cantores de Leitura, Assírio & Alvim,
p. 22

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Dicionário técnico-literário dos Bloom Books – 35

Doce Pat, roubei para ti... só para ti...





Sacrilégio – A evidência de frases sucessivas. A beleza onde não existe a mancha. A mancha onde não existe a breve beleza. A frase que pareça terminar.


Simultâneo – Nada acontece ímpar e um. Qualquer coisa, mesmo que grande, é apenas uma parte. Um elefante, por exemplo, ou um enorme edifício. Não há vidas separadas de outras, que vão do início ao fim como uma experiência química dentro de tubos de ensaio. Mostrar que a vida é simultânea é indispensável. Não existe a história de um homem: srº Jonas ou de uma família. Existem sim homens com outros homens e mulheres, coisas, vegetais, o cão da vizinha e a linguagem que existe no mundo e é dita por anónimos.
Histórias individuais são violência sobre a linguagem. A linguagem é um organismo que gosta de ângulos e percursos subitamente laterais. É mais sensata a história de um segundo que atravessa o mundo, que a história de um homem que se apaixonou por uma mulher e depois veio outro e. A linguagem é mais lateral que longitudinal. Não é imóvel; move-se imobilizando o tempo, o que é diferente.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Noventa anos após o paradoxo de Valéry

Retirei este excerto do sítio: http://www.pnetliteratura.pt.
Trata-se de um texto que Luís Carmelo publicou,  muito interessante e sobre uma das obras de Valéry (sobre o qual pouco ou nada sei).
Espero que te entusiasme... muitos beijos.


O rosto da Europa é a figuração feliz de um perfil que representa a imagem da Eurásia a despedir-se do mundo, ou seja: do mar e das lendas que ele prolonga. Este olhar inebriado sobre o grande gravitas é o território preferido pelos maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa. Aliás, a expressão "rosto da europa", na língua portuguesa, pertence a este último.
Neste meio diagrama meio metáfora, utilizado por Pessoa na Mensagem, a Europa surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado sendo a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto (que fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito). Para o poeta, "Este rosto que fita é Portugal".

É também na Mensagem que Pessoa identifica o mito como esse “nada que é tudo”, com se fosse “o corpo morto de Deus/vivo e desnudo” que “aportou” em Portugal; e conclui, seguidamente: “As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós”.

Deste modo, o rosto de Pessoa converte-se num mundo inteiro onde terá aportado (e aportar significa encontrar no porto, no cabo, no rosto mais extremo) uma missão, cuja origem se situa no paradigmático Ulisses e no herói fundador Viriato, propagando-se, depois, naquilo que Deus "fadou", já que "o homem e a hora são um só", ou seja, já que o homem providencial e mitológico que espreita do rosto europeu se confunde com o ‘telos’, com o eschaton, com o limite último (o "teu ser é como aquela fria madrugada/E é já o ir a haver o dia").
Estamos aqui numa espécie de limbo entre a metafórica da neblina do cabo e o dia pleno da vida (metaforizando o prenúncio de um qualquer ‘ser universal’).

É precisamente este limbo que Paul Valéry em, La Crise de l’esprit (escrito em 1919, vinte anos antes da Mensagem de Pessoa), designa por paradoxo. Diz o autor: “A minha impressão pessoal sobre a França” (...) “é a de crermos, de nos sentirmos universais - quero dizer: homens do universo... Observem o paradoxo: ter por especialidade o sentido do universal”. No seu ensaio, Valéry também encara a Europa - no seu todo – como um rosto, um cabo, uma cabeça que tem olhos e que vigia o horizonte: “um apêndice ocidental da Ásia que olha naturalmente para Oeste. A sul orla um mar ilustre cujo papel foi maravilhosamente eficaz na elaboração” de um propósito, ou de um projecto.
Sobre a tese de Valéry, Derrida escreveu em O outro cabo: "A Europa reconheceu-se sempre a si mesma como um cabo", fosse a ponta extrema do continente, "a oeste e ao sul (o limite das terras, a ponta avançada da finisterra, a Europa do Atlântico ou das orlas grego-latinas-ibéricas do Mediterrâneo)", enquanto ponto de partida para a descoberta e para invenção; fosse o próprio "centro desta língua em forma de cabo, a Europa do interior, apertada, isto é, comprimida ao longo de um eixo greco-germânico, no centro do centro do cabo".
A Europa confundiu a sua imagem, continua o autor, com a "ponta dianteira de um falo" que comandou o mundo, que erigiu uma obra e a espalhou sob a forma da cultura. Contudo, quer face ao cumprimento da empresa mítica e – portanto – impossível de Pessoa, quer face ao ter sido da múltipla empresa europeia no mundo, é necessário ter em conta que, hoje em dia, a cultura do rosto se tornou subitamente numa cultura do rizoma e de imprevisto labirinto.

O limite do rosto já não se exercita e desafia no contacto distante com o outro, fosse ele o Preste João ou o Négus da Abissínia; o rosto da actualidade já está em todo o lado, cindindo com ele mesmo no quadro de um globário instantâneo. Nesse sentido, Derrida, na sua obra sobre o rosto de Valéry, recorda-nos e sugere-nos um novo étimo para o dever. Trata-se do "dever de responder ao apelo da memória europeia, de lembrar o que se prometeu em nome da Europa, de re-identificar a Europa" como "dever sem denominador comum com tudo o que geralmente se entende sob este nome". É um dever que exige que outros cabos e rostos se abram dentro do mais antigo rosto actuante do mundo.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Dicionário de Gonçalo M. Tavares


Posição – Um texto não deverá ter posições, mas sim esconderijos não detectáveis. A posição é uma visibilidade evidente e um texto literário deverá ter apenas indícios de visibilidades. A única evidência será a sua invisibilidade.Mas claro que a invisibilidade total torna impossível o contacto. Diremos que o que se recomenda são invisibilidades intermédias. Ou: visibilidade intermédia. O que deverá permanecer escondido, sem posição visível? O mais importante. O que deverá ser a parte visível? Aquilo que leve o leitor a fazer mais coisas. O texto que trabalha mais é o texto que faz trabalhar mais.E uma personagem não deverá ter uma posição fixa. Se o tiver não é uma pessoa, mas um objecto. Uma personagem não tem posições, mas in-dis-posições: comportamentos em modificação permanente. Uma indis-posição é um momento que não sabemos como terminará. E uma posição nem sequer é um momento. É um não-momento. Um não-acontecimento. 
Na literatura como na guerra: a posição do texto deverá ser um mistério, algo que requer investigação.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Sobre Boris Pasternak - Gonçalo M. Tavares


Foto Uma árvore não é assim tão branca (H.P. Ahnit Nof)



Hoje a Anabela entrou pela minha casa dentro em formato de jornal. Transformou a sua ternura e a beleza do seu pestanejar em cada edição do JL que quinzenalmente recebo, tão feliz, no espaço mais íntimo que tenho.Edito o texto da biblioteca dedicado nesta quinzena ao poeta russo e autor do imortal "Dr. Jivago", que achei mais uma manifestação da inteligência e sensibilidade invulgares de M. Tavares. Obrigada Anabela, pela felicidade que me trazes a toda a hora.

Sobre Boris Pasternak

De um lado, a neve. Do outro, a neve.
Podes partir para um lado ou para outro.
Encontrarás o mesmo.
Se ficares no mesmo sítio, só esperando alguns meses deixarás de ter neve. Se te mexeres, só esperando alguns meses deixarás de ter neve.
Que estranho, pensa ele.
Andando ou ficando parado: tens de esperar.


(Que lindo caminho que Gonçalo M. Tavares constrói para comunicar coisas tão simples como esta: há cicunstâncias em que o único remédio é aguardarmos por um dia melhor...A neve como elemento constrangedor da resolução humana e a perplexidade criada à volta do personagem, que todos nós somos, foram opções estupendas do autor para conseguir um texto, aparentemente redundante, porém essencialmente fascinante.Fico pasmada com o facto das frases serem reproduzidas pelo processo de repetição, ainda que partindo de expressões instauradores de contraste, de forma a causarem a mesma sensação de irresolução, de impotência que um nevão produz naquele que quer decidir-se pelo caminho melhor,quando todo ele é invencível. Boris Pasternak teve na realidade que esperar para ter reconhecimento no seu próprio país pois a obra Dr Jivago foi proibida na URSS por mostrar como se vivia o comunismo. O autor não pode, inclusive, receber o prémio nobel da literatura por razões políticas criadas pelo seu próprio país. Neve e mais neve que até se derreter - em 1989 com a queda do muro - o levou a ver passar como uma paisagem quase toda a sua vida.)


Deixo ainda um poema sublime de Boris Pasternak:


Também a vida é só um instante,
apenas um dissolver-se,
de nós mesmos nos outros,
Como um dom que se faz.

Apenas um rumor de bodas que,debaixo,
irrompe pelas janelas,
nada além de um canto, um sonho,
uma pomba azul-cinzentada.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

75 anos de Mensagem



Doce Pat, o Paulo sugeriu-nos o sítio que deixo de seguida. O Gonçalo M. tavares escreve lá regularmente. Aproveitei a navegação para roubar esta notícia para ti...
http://www.pnetliteratura.pt


Passam hoje, dia 1 de Dezembro, 75 anos sobre a publicação da primeira edição de Mensagem de Fernando Pessoa. Para assinalar a efeméride, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas e a Câmara Municipal de Lisboa promovem uma sessão comemorativa no anfiteatro da BNP com a presença de Eduardo Lourenço, Manuel Alegre e Vasco Graça Moura.
Ler tudo aqui:http://www.bnportugal.pt

A minha irmã é uma embarcação em descoberta

A minha irmã é uma embarcação em descoberta. As suas mãos são brancas e esvoaçam cada vez que fala. Dedos de nuvens vogam sobre a sua voz segura e oscilante. Apontam a rota do sentido absoluto das coisas. Os meus olhos acompanham essa levitação e aí descobrem a explicação do universo. Aí encontram os seus órgãos vitais suspensos lado a lado com os cometas, com as estrelas, com os planetas. E é tudo a mesma pele que brilha nessa escuridade. Nesse buraco fundo chamado medo. É tudo a mesma força transtemporal.
Por dentro da viagem que domina, encontro o instante em que habitei no seu ventre. Não me perguntem como foi isto possível… Sinto-o no espaço da prega rente ao corpo do seu vestido de lã. Num prenúncio do seu umbigo encoberto, que me surge repentinamente, como um ouvido. Acontece-me um umbigo-búzio. É de lá que ouço os meus segredos em maré cheia. Encontro o meu ser primitivamente balbuciante, ainda sob flutuações sem quaisquer palavras. O meu princípio.
Fiz-me da língua frenesi que ela fala. Desse amor que se desprende dos seus lábios, do avesso das suas pálpebras fechadas, vindo de um âmago infinitamente belo, como nunca se viu.

Acerca de Estar Doente - Virginia Woolf

Virginia Woolf, Vanessa Bell

Passo a transcrever uma das frases de maior fôlego de toda a literatura de que tenho memória, carregada de complexidade e genialidade, que aparece no início do ensaio de Virginia Woolf - esta escritora que tanto admiro e nunca me canso de ler- intitulado "Acerca de estar doente". Como vejo verdade no que ela diz e na sua hipocondria, semelhante em tudo à minha...
Para além disto adoro frases assim tão longas e tão perfeitamente compreensíveis (esta tem 166 palavras!) que parecem mesmo auto-representarem-se em forma de diagrama. Gertrude Stein (poeta e feminista genial!) escreveu, um dia: " Não conheço realmente nada mais excitante do que fazer diagramas de frases." Escusado será dizer que quando encontrei este parecer, me rendi aos encantos da frase longa e elegante em que podemos avaliar cada palavra à luz da secreta modificação que cada frase incute no nome, no prazer da descoberta dos antecedentes concretos de cada uma das suas inúmeras orações... o desenho do mapa de um tesouro.

"Considerando como a doença é comum, como é tremenda a mudança espiritual que traz, como é espantoso quando as luzes da saúde se apagam, as regiões por descobrir que se revelam, que extensões desoladas e desertos da alma uma ligeira gripe nos faz ver, que precipícios e relvados pontilhados de flores brilhantes uma pequena subida de temperatura expõe, que antigos e rijos carvalhos são desenraizados em nós pela acção da doença, como nos afundamos no poço da morte e sentimos as águas da aniquilação fecharem-se acima da cabeça e acordamos julgando estar na presença de anjos e harpas quando tiramos um dente, vimos à superfície na cadeira do dentista e confundimos o seu «bocheche... bocheche» com saudação da divindade debruçada no chão do céu para nos dar as boas-vindas - quando pensamos nisto, como tantas vezes somos forçados a pensar, torna-se realmente estranho que a doença não tenha arranjado um lugar, juntamente com o amor, as batalhas e o ciúme, por entre os principais temas da literatura."



Virginia Woolf

Devia Morrer-se de Outra Maneira - José Ferreira Gomes

Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens. Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio". E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen... como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
(Poesia III)
Subscrevo este desejo de metamorfose da morte, como se tivesse sido eu própria a pedi-lo, mesmo que com outras palavras.