sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MICROCONTOS - Autores Portugueses


A Visão desta semana publicou sete microcontos escritos por sete autores portugueses nascidos do desafio de contar uma história em menos de mil caracteres – Dulce Maria Cardoso, Filipa Martins, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, José Mário Silva, Possidónio Cachapa e Ricardo Adolfo.
“ Grandes escritores ensaiaram o microconto, como Kafka, Cortázar, Jorge Luís Borges, Chekov, H. P. Lovecraft, Ray Bradbury e os portugueses Mário Henrique-Leiria com os contos curtos do Gin-Tonic, ou Jorge de Sousa Braga.”

Neste post transcrevo os três melhores microcontos que a meu ver são mais pungentes e consistentemente literários apesar da limitada extensão a que se submeteram.


No início do ano…

NO INÍCIO DO ANO, uma donzela do Oriente diz ao seu amado esposo:
- Não caminhes em direcção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o amado nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Seguiu assim o homem em direcção a leste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa pela tal amante mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, a amante disse-lhe:
-Não caminhes em direcção ao Oeste. Se o fizeres encontrar´
As a morte.
Mas o homem nada ouviu, pois, nesse momento pensava na sua esposa legítima que o esperava.
Seguiu assim o homem em direcção a oeste – e não morreu. Pelo contrário, foi recebido em casa, com alegria e calor, pela sua esposa.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, ouviu da sua amada esposa, uma donzela do Oriente:
- Não caminhes em direcção ao Leste. Se o fizeres encontrarás a morte.
Mas o amdo nada ouviu, pois, nesse momento, pensava numa outra mulher, numa mulher mais jovem, mais bela, mais inteligente.
Seguiu assim o homem em direcção a leste e depois a oeste e depois a leste e sucessivamente, dias e dias, meses e meses, anos e anos – e não morreu.
A morte surgiu apenas quando o homem já velho e sem forças ficou incapaz de se mover – quer para leste quer para Oeste.

Gonçalo M. Tavares

Micronarrativa com mulher dentro

UMA MULHER LIVRE resolveu escrever um livro em 45 capítulos que pudesse arrumar confortavelmente no bolso. Esta ideia contudo perturbava-a sem que soubesse ao certo porquê. Durante várias noites não conseguiu dormir a pensar nas razões do seu incómodo. Enquanto se esforçava por adormecer, passavam-lhe diante dos olhos imagens do rosto da mãe, ainda jovem, de saias compridas, colares e longos cabelos. Do pai, quase sempre estendido debaixo de uma luz moribunda de Verão, belo como um deus que se consumisse aos poucos. Ela e os irmãos a correrem descalços e nus em volta de uma piscina de plástico com patos e flores. Ela, sozinha, na faculdade, a fechar a porta do quarto depois de uma noite de sexo amigo, daquele que não prende.
A pintar as paredes da primeira casa, da segunda… enquanto os namorados ficavam estendidos, belos como deuses ainda por consumir. A fechar as portas com dor. Uma mulher livre quis escrever um livro com a ligeireza do ar e descobriu que era cega. Como se fosse verão.

Possidónio Cachapa


O Futuro

DERAM-LHES CARTA BRANCA para fazer o que desejassem, como desejassem, sem limites orçamentais. Junto à costa, os terrenos expropriados eram uma espécie de tábua rasa, estendendo-se até ao horizonte longínquo. «Construam o futuro, aqui e agora», pediu-lhes o Presidente, num discurso inflamado, solene, feito para impressionar os Presidentes dos países vizinhos. Então, eles chegaram. Os melhores arquitectos. Os melhores engenheiros. Os melhores empreiteiros. Nos projectos que pousavam em cima das elegantes mesas de vidro, estava o futuro. O Futuro, com maiúscula. Uma cidade perfeita, ecologicamente sustentada, exemplar. A cidade-síntese. A cidade ideal. Então, o Presidente morreu, em circunstâncias misteriosas. A primeira decisão do sucessor foi embargar o Futuro, dirigir as verbas para outros fins. Os alicerces do Futuro ficaram expostos ao vento, consumidos pelo salitre. Ainda hoje podem vistos, junto a costa, por entre enormes extensões de areia, detritos e urtigas.

José Mário Silva

2 comentários:

Anabela disse...

doce amiguinha

agora sim, leio os microcontos e aprecio-os devidamente: de facto estava enganada ou baralhei os textos que li pois achei o texto de Gonçalo M. Tavares magnífico! Li nele a relatividade das escolhas e lembrei-me do "sei que não vou por aí" de Régio. Achei saborosa a escolha entre o oeste e o oriente... e não o eterno dilema entre o norte e o sul. Será possível esta duplicidade ou duplicabilidade de uma vida só? No final este homem morre nos braços da sua mulher ou da sua amante? A vida é estranha...Ou indo para outros horizontes, porque e que só queremos aquilo que não temos e se temos deixamos de querer... é aquela eterna insatisfação!
Quanto ao 2º microconto, achei-o difícil e não o percebi verdadeiramente: porquê 45 capítulos? seria este livro um diário ou uma confidência da sua vida? teria ela 45 anos? Apesar de difícil gosto do texto, fluído na escrita e que pede para ser lido.
O3º microconto que colocaste (mas não o último, anseio por mais!) achei-o mais previsível e ao lê-lo desenhava mentalmente que o desfecho seria aquele.

Obrigada amiguinha, fico à espera de mais... logo que possas pois claro. muitos bjs
anabela

Anabela disse...

a foto que escolheste reproduz um efeito espantoso! o empilhamento cilíndrico de livros e o colorido dos mesmos dá uma sensação de movimento... é espantosa ...