terça-feira, 12 de janeiro de 2010

MULHERES CORRENDO, CORRENDO PELA NOITE - Herberto Helder

Alfredo Coelho, Quatro Cavalos
Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando, correndo.


É o som delas batendo como estrelas
nas portas. O céu por cima, as crinas negras
batendo: é o som delas. Lembradas,
correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando.
As grandiosas patas brancas abertas no som,
à porta, com o céu lembrando.
Crinas correndo pela noite, lenços vivos
batendo como magnólias levadas pela noite,
abertas, correndo, lembrando.


De repente, as letras. O rosto sufocado como
se fosse abril num canto da noite.
O rosto no meio das letras, sufocado a um canto,
de repente.
Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços
sufocados, lembrando letras, levando
lenços, letras - nas patas
negras, grandiosamente abertas.
Como se fosse abril, sufocadas no meio.
Era o som delas, como se fosse abril a um canto
da noite, lembrando.


Ouço: são elas que partem. E levam
o sangue cheio de letras, as patas floridas
sobre a cabeça, correndo, pensando.
Atiram-se para a noite com o sonho terrível
de um lenço vivo.
E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
a cabeça branca, as patas lembrando
pela noite dentro.
O rosto sufocado, o som abrindo, muito
lembrado. E a cabeça correndo, e eu ouço:
são elas que partem, pensando.


Então acordo de dentro e, lembrando, fico
de lado. E ouço correr, levando
grandiosos lenços contra a noite com estrelas
batendo nas patas
como magnólias pensando, abertas, correndo.
Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando
de lado, com as patas
no meio das letras, o rosto sufocado
correndo pelas portas grandiosas, as crinas
brancas batendo. E eu ouço: é o som delas
com as patas negras, com as magnólias negras
contra a noite.


Correndo, lembrando, batendo.

Herberto Helder, in Poesia Toda
Apetece-me dizer pouco perante estas palavras indestrutíveis. Mulher - cavalo, mulher-magnólia ... uma força-frágil.
Só a poesia nos concede estas metamorfoses tão contrárias... só na poesia posso conceber "as patas de um cavalo" como uma imagem poética!
Um poema para nunca esquecer. ..
Um poema que faz sonhar com muitas imagens de mulheres correndo...
Não há pintura que supere, nem tão pouco ilustre, este poema.
"É o som delas batendo como estrelas nas portas"

3 comentários:

Anabela disse...

doce amiguinha

adorei o poema!
De facto concordo com a tua apreciação: mulher-cavalo, mulher-magnólia, uma força-frágil! E dei por mim a reler o poema de ritmo contagiante e semelhante ao cavalgar das éguas! Também notei (alertada por ti minha amiga!) que o poeta brincou com uma meia dúzia de palavras e com elas criou este Universo em busca do NADA, sim corre-se para o NADA...

muitos beijos e obrigada pelo poema

anabela
PS: gostei da imagem que decidiste colocar!

Anónimo disse...

Gostei que gostasses, minha querida amiguinha...Mts bjs e saudades.

Patrícia

José Luís Rodrigues disse...

O incontronável poeta. O maior de todos o que há do género. Por sinal natural da Madeira. Parabéns pela postagem belíssima. Vou seguir o seu blogue, basta dizer que tem poesia...