quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"O homem é um grande faisão sobre a terra" - Herta Müller



" Herta Müller nasceu em 1953 em Nitzkydorf, Roménia. Pertence a uma minoria de origem alemã. Entre 1973 e 1976 faz estudos germanísticos e romanísticos na Universidade de Timisoara. Em 1987 deixa a Roménia, passando a residir em Berlim. "O homem é um grande faisão sobre a terra" é o retrato de uma comunidade que vive entre o embrutecimento, a resignação e uma esperança débil."


Este livro que me ofereceste, o primeiro que li da autora, é tão belo como perturbador...sublinha-se em todas as páginas deste "O homem é um grande faisão sobre a terra" que a escritora muito antes de ser romancista, é poeta. A estrutura fragmentada do romance, com capítulos breves de títulos nominais que revelam toda a atenção que ela dá aos instantes da vida - o leite; a navalha; a lágrima; o açougue; a gaivota; a macieira (...) - despertam o interesse do leitor logo nas primeiras linhas de descrição da aldeia de um dos personagens principais, Windish, onde se concentra a acção de forma quase sufocante.É a vida miserável e conflituosa de Windish e sua mulher e filha,uma família romena desencontrada há muito da felicidade, e a força que resta do desespero do seu quotidiano explorado ao máximo pelo regime ditatorial, que se exibe em páginas e páginas de pura literatura. Ao lado destes personagens vão surgindo personagens-vizinhos que são fotografados com a mesma crueza e poesia, na sua dura rotina, mostrando de igual forma os seus sonhos, medos, taras, violências, mesquinhez, opressões...Enfim, explica-se o pior que o ser humano tem, muitas vezes com uma ironia crescente que desemboca na caricatura, e a sua brutal resistência à humilhação, à exploração constante, à morte lenta decretada pelo próprio homem que se revela um grande faisão que ensombra a terra no seu poderoso voo intimidante,nessa constante investida sem escrúpulos.

Deixando de parte o excelente fragmento "A macieira" ou o referente à infância de Amalie, intitulado "O leite" que já conheces, há tantos outros admiráveis que poderia transcrever... opto por estes que me marcaram muito:

O sapo
(…)
Uma nuvem mancha a lua de vermelho. Windisch encosta-se à parede da azenha. «O ser humano é estúpido», diz o guarda-nocturno, «e está sempre pronto a perdoar». O cão come um pedaço do coirato. «A ela, perdoei tudo», diz o guarda-nocturno. «Perdoei-lhe o padeiro. Perdoei-lhe o comportamento na cidade.» Passa as pontas dos dedos pela lâmina da faca: «A aldeia em peso fez pouco de mim.» Windisch suspira. «Eu nem conseguia olhá-la nos olhos», diz o guarda-nocturno: «Só uma coisa não consegui perdoar-lhe: é que tivesse morrido tão depressa como se não tivesse ninguém. Isso é que não lhe perdoei.»
«Sabe Deus» diz Windisch, «para que é que elas existem, as mulheres?».O guarda-nocturno encolhe os ombros: «Para nós é que não» diz ele. «Nem para mim, nem para ti. Não sei para quem.» O guarda-nocturno faz uma festa ao cão. «E as filhas», diz Windisch, « Sabe Deus, também elas se tornam mulheres.»
Sobre a bicicleta há uma sombra e uma sombra sobre a relva. «A minha filha», diz Windisch medindo mentalmente a frase, «a minha Amalie também já não é virgem.» O guarda-nocturno olha para a nuvem vermelha. As barrigas das pernas da minha filha parecem melões», diz Windisch. « Como tu dizes, já não consigo olhá-la nos olhos. Tem uma sombra nos olhos.» O cão vira a cabeça. «Os olhos mentem», diz o guarda-nocturno, «as barrigas das pernas, essas é que não mentem.» Afasta os pés. «Olha para os pés da tua filha quando anda», diz ele. «Se afastar as pontas dos pés ao andar, então já não há nada a fazer.»
Pp
14, 15


A folha de alface


Amalie lambe um osso de galinha. Na boca rangem-lhe as folhas de alface. A mulher de Windisch segura uma asa de galinha à altura da boca. «Ele emborcou a aguardente toda», diz ela. Chupa ruidosamente a pele amarela: «Com o desgosto».
Amalie pica a folha de alface com os dentes do garfo. Segura a folha à altura da boca. A folha estremece no momento em que fala. «Com a tua farinha não vais longe», diz. Os lábios dela mordem-se com força, como uma lagarta à folha de alface.
«Os homens têm de beber porque sofrem», diz a mulher de Windisch sorrindo. A sombra dos olhos de Amalie dobra-se em azul sobre as pestanas. «E sofrem porque bebem», acrescenta com um risinho. Olha através de uma folha de alface.
O chupão vai-lhe amadurecendo no pescoço. Vai ficando azulado e move-se quando ela engole.
A mulher de Windisch chupa as pequenas vértebras brancas. Engole as minúsculas fibras de carne do pescoço da galinha. «Quando casares, abre os olhos», diz ela. «O hábito de beber é uma doença péssima.» Amalie lambe as pontas dos dedos vermelhas. «E não é nada saudável,» diz ela.
Windisch olha para a aranha negra. «Ser puta é mais saudável», diz ele.
A mulher de Windisch bate com a mão na mesa.
p. 87

1 comentário:

Anabela disse...

amiguinha doce
de facto é caustica a forma como usa a linguagem para exprimir sentimentos. se calhar a vida também o foi para ela, para todos.
sem dúvida deve ser uma excelente escritora. fico duplamente satisfeita porque fui eu que to ofereci e porque é uma obra a conhecer.
muitos beijos