domingo, 14 de fevereiro de 2010

Rodrigo Leão em Concerto - "Mãe"

Era uma música redonda, não virava esquinas, não desaparecia de nenhum prisma daquela sala e qualquer espectador tinha a sensação de lhe poder tocar com um dedo. Um dedo apenas, mesmo que fosse muito fino ou muito curto. Qualquer um pensava que ela se dirigia a si. Que o contava num segredo descoberto, ao ritmo da bateria agressiva, ao sopro da voz que ainda faltava no palco.

Essa música tinha uma espessura cuja sonoridade parecia ter vindo da infância ou dum passado que nunca realizei senão em sonho, senão em choro. Era tão forte que o círculo que desenhavam os violinos e o acordeão não era mais do que uma tristeza instintiva, uma tristeza muitas vezes minha, circularmente bem demarcada, lembrando uma carícia de mãe, mas cantada pela voz de outra mulher que não me conhecia e todavia me dizia. E a tua mão percebia e apertava-me.

Vi que por detrás do seu peito, por detrás do vestido negro de seda, se escondia a tal voz com que cantava tudo. E quando os músicos tocavam as notas previsíveis, as notas ensaiadas para que não saíssem para além daquela sala, os seus olhos negros como o vestido abriam-se e deixava de estar só. Tudo o que trazia dentro dos olhos se esbanjava numa emoção que se julgava não estar lá de início, no momento em que entrava cambaleante em desacerto mudo e atravessava o mesmo espaço que todos os olhos da plateia iluminavam. Mas afinal para lá das suas pernas pouco convictas, por dentro das suas pálpebras fechadas, estava lá a dor embrulhada, estava lá o riso e a lembrança enleando tudo o que vivi. Apenas precisava das luzes dos instrumentos certos para cantar por dentro dos ouvidos dos outros com uma voz que se estendia como uma onda muito alta. Como uma onda que nos levasse até à altura das nossas ilusões.

2 comentários:

Vinho novo disse...

Devo confessar que não conhecia a música, mas após tão inspirada criação, não pude deixar de a procurar e ouvir. Obra deveras bem concebida, sem dúvida!
Triste, melancólica, mas com uns toques ligeiros que a fazem elevar-se acima da depressão.
Quanto ao texto, sublimou a música para uma escrita fluida e original - lido em conjunção com a música, revelam-se ambos em toda a sua força.

Anabela disse...

amiguinha
que belas sensações que retiveste do concerto de ontem! viste a candura daquela alma tão esguia quanto tímida mas que subitamente se metamorfoseava ... aquela voz ,que voz!...
belíssimo texto amiguinha, obrigada
muitos beijos
Anabela