sábado, 7 de novembro de 2009

O Muro do Fundamentalismo - Crónica Feminina por Inês Pedrosa

Não posso deixar de publicar esta crónica deliciosa de Inês Pedrosa, que li já há algum tempo, a propósito do fundamentalismo e hipocrisia de muitos dos intelectuais (ou em muitos casos como ela própria refere, e muito bem, a meu ver, pseudo-intelectuais) relativamente à reacção ao novo romance "Caim", verdadeiro agitador de consciências, como, de resto, qualquer obra de arte tem o direito de ser.
Na rádio, antes de ter acontecido em Penafiel a "Escritaria" onde foi lançado este livro, ouvi Pilar del Rio dizer, com força de sabedoria, mais ou menos isto: " A arte verdadeira é mesmo assim... basta lembrar da reacção à brutal pintura do tecto da Capela Sistina no seu tempo."
O que mais me escandaliza cruza-se com o que Inês Pedrosa nos diz, logo no início da crónica. Anda para aí muita gente que não quer que se questione a verdade religiosa, muito menos na literatura de ficção... Há muitos autores que o fazem tanto em texto ensaístico (e são grandes nomes!) como na Filosofia (Nietszche: "Deus está morto") ou na Poesia (a descrença em Deus foi decretada muito cedo pelos poetas modernistas e pós-modernistas, todos eles geniais - tal como Saramago - na Literatura Mundial. É o caso do Pessoa (que tão bem o faz com Caeiro, considerado por Ricardo Reis o maior poeta do século vinte, que afirma que ele é “o mais completo subversor de todas as sensibilidades diversamente conhecidas, e de todas as fórmulas intelectuais variamente aceites”) ou o idolatrado Roberto Juarroz em quase todos os seus poemas ("Só deus não me dói hoje./Será porque hoje ele não existe?") ou de tantos e tantos outros artistas que ao brotarem arte, fazem uso despreconceituado, com capacidade crítica, de elementos culturais e civilizacionais de qualquer domínio, tornando-o tangível ou, pelo menos, mais compreensível pela capacidade de questionamento a que o sujeita, pela subversão que lhe impõe para ver tudo num novo espelho...
Inteira igorância daqueles que se dizem intelectuais e "pessoas da cultura" ( que no fundo reagem como aqueles que não sabem muito bem do que o livro trata, e ignoram, em simultâneo, qualquer um dos mitos bíblicos que tanto defendem, nem mesmo sabendo a diferença existente entre o Antigo e o Novo Testamento) defenderem única e exclusivamente a sua faceta religiosa com um fundamentalismo lastimável quando se fala em "Caim" (ou "José Saramago", que para eles é a mesma pouca vergonha!) arremessando a ideia de que ele não atinge o significado dos textos bíblicos... lendo-os só na sua superfície... Desculpem-me a invectiva mas tenho que a verbalizar: "Seus grandes imb... acham que alguém que escreveu "O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, Memorial do Convento, Ensaio sobre a Cegueira, O Homem Duplicado, Todos os nomes e tantas outras obras valiosíssimas, não consegue perceber muito bem na sua pesquisa religiosa os textos bíblicos sobre os quais quer efabular?!!?? Deixai-me confessar que acho isto de um estado primitivo incrível... Acredito (como tenho a certeza que acreditaria Pessoa) que eram necessários muitos Saramagos neste mundo para cultivar mais inteligência. Deixo algumas linhas de um texto de Pessoa, que extraí de"Ideias Políticas" como forma de abrir o apetite para a crónica da sempre fabulosa Inês Pedrosa:
" Portugal precisa dum indisciplinador (...) Trabalhemos ao menos - nós, os novos - por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. "

O Muro do Fundamentalismo (Inês Pedrosa)

Saramago tem o direito de ler na Bíblia o que lá está escrito.


"Caim", de José Saramago, é um romance, isto é: uma ficção literária. É, além disso, um bom romance, isto é: uma narrativa de grande beleza, que rasga o tecido dos saberes sossegados e ergue um vendaval de perguntas. No lançamento deste romance, no "Escritaria" de Penafiel, evocando o Padre António Vieira, Saramago recordava essa coisa só aparentemente simples: escrever é "conhecer o sítio das palavras". A sua disposição exacta na frase.


Escrever é escolher, e a escolha pressupõe conhecimento das múltiplas possibilidades em jogo. Saramago debruçou-se sobre a Bíblia, o livro que determinou e determina ainda a visão do mundo que nos enforma, e interrogou as escolhas de deus - assim, com a mesma letra minúscula que usa para cada membro da humanidade por ele criada, porque é preciso abandonarmos a maiúscula da reverência quando queremos interrogar genuinamente. E viu-se mergulhado num dilúvio de vozes escandalizadas - algumas, poucas, de forma transparente, e a maior parte delas disfarçando o escândalo nas trincheiras da análise intelectual de segundo ou terceiro grau.

Explicam-nos essas vozes doutas, esforçando-se por conter a ira nos infolios da erudição (às vezes mal; salta-lhes o tom), que a Bíblia não pode ser lida de forma literal: tudo o que lá está é para ser interpretado, deduz-se que pelos doutores que reclamam a interpretação. Talvez por isso, de facto, a Igreja Católica nunca tenha feito grande esforço para publicitar o Velho Testamento, antes pelo contrário: nos meus dez anos de catequese consecutiva só me mandavam ler o Novo Testamento, e por partes.

Quando, em 1991, Saramago publicou "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", a polémica foi alta, mas o escândalo circunscreveu-se às instâncias religiosas propriamente ditas - e a um patético senhor do PSD, então com poder bastante para impedir que a obra fosse considerada num prémio europeu. Agora apareceu outro senhor do PSD, felizmente sem poder, a pôr-se em bicos dos pés para aproveitar a onda.

O escritor leu e releu a Bíblia e verificou uma evidência: que ela é um "manual de maus costumes, um catálogo de crueldades". Aliás, Saramago não foi, nem pretende ser, a primeira alma a ter feito essa verificação: sim, a Bíblia é também, entre outras coisas, esse catálogo. Há cerca de dois anos, Christopher Hitchens publicou "Deus não É Grande - Como as religiões envenenam tudo" e Fernando Savater publicou "A Vida Eterna", dois excelentes livros sobre a questão da maldade divina - ou de como os homens inventaram deus para se matarem uns aos outros. Na época, não vi nenhum dos que agora se assanham contra Saramago contestar as teorias idênticas de Hitchens ou Savater. É curioso que um romance, mesmo antes de ser lido, cause um terramoto que nenhum destes ensaios causou.


Uma vez um padre irritou-se comigo porque eu me recusei a ler, num casamento, aquela célebre carta de São Paulo que começa por dizer que o homem é a cabeça da mulher como Cristo a cabeça da Igreja, e exigi ler um texto do Génesis que a ele lhe parecia "muito carnal". Necessitado de exegese e enquadramento, portanto. Sucede que numa sociedade laica e livre ninguém tem que se fixar às leituras alheias.


A acusação, repetida por intelectuais (e aparentados) de diversos quadrantes, de que, ao escolher a letra da Bíblia, Saramago manifesta um espírito fundamentalista igual ao dos que, em nome da sua Bíblia (no caso, o Corão, que aliás tem muitos enredos e personagens em comum com a Bíblia), se explodem a si mesmos e aos outros, não tem razão de ser.
Há uma diferença radical entre escrever e matar, perguntar e bombardear, exercer a liberdade e proibi-la. Estas mistificações têm um objectivo: o de rasurar como terroristas, loucos ou ignorantes os que pensam de maneira diferente. Isso, sim, é fundamentalismo. Verifico, com preocupação, que esse fundamentalismo permanece muito aceso em Portugal.


Saramago tem o direito de ler na Bíblia o que lá está escrito. Cada palavra existe na frase para dizer alguma coisa - é aquela palavra e não outra que lá está. Todo o livro digno desse nome traça um pacto sagrado com a justeza de cada palavra. Escreveu Walter Benjamin: "A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico da verdade - a sabedoria - está a morrer." A obra de Saramago prova que esta morte não está iminente.
E conseguiu já um feito notável: trazer para o horário nobre da televisão o debate sobre os fundamentos da nossa civilização, o sentido da vida e da morte - em vez da politiquice e do futebol que são os únicos debates constantes neste nosso mundo de crentes.



Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Outubro de 2009

Sobre o mesmo assunto, leia-se (com a minha alegria, caso contrário, não vale a pena...) o artigo de Carlos Reis sobre "Caim" no JL desta quinzena.

1 comentário:

Anabela disse...

doce Pat

achei o post fantastico do principio ao fim! A bem dizer devorei-o e so faltou a cronica do Carlos Reis para completar o triptico a Caim! Em primeiro lugar fiquei orgulhosissima com as tuas palavras criticas em relaçao a obra de Saramago! Achei-as repletas de sentido e tao belamente ditas que so podiam sair de uma alma elevada! A Ines Pedrosa iria adorar saber que as suas palavras estao tao bem acompanhadas! De facto, o comentario dela e´´ magn´´ifico mas em nada supera o teu amiguinha! Quando tiveres tempo coloca a critica do C. Reis e o Post ficar´´a simplesmente perfeito!
Aconselhei o Anselmo dos Minerva Pop a ler este post pois ele ja leu o livro e fez um post dedicado a Cain. Do outro lado do oceano a polemica e´´ igualmente enorme! Nao ´´e fabuloso saber que o HOMEM que provocou isto tudo e´´ afinal lusitano?
Beijos, muitos beijos e esperança... Portugal mediocre melhora graças a almas inspiradas ...como o Saramago... como tu, minha linda amiga!

Anabela