sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Literatura no Feminino


Não posso dizer que prefiro este ou aquele livros, ancorando a minha predilecção no sexo do seu autor... isso seria um autêntico absurdo. A qualidade da Literatura não depende absolutamente do género humano nem tão pouco da orientação sexual de quem escreve (a propósito de rótulos na literatura segundo a orientação sexual, é de leitura imprescindível o capítulo II do livro de Ensaios de Alberto Manguel "No Bosque do Espelho - Uma viagem fantástica ao mundo dos livros" - gostaria até de falar dele num próximo post). Também não quero partilhar da opinião de que há uma escrita no feminino e outra no masculino, no entanto quando leio determinados textos escritos por mulheres, é inevitável o desenho de uma outra espécie de mundo, intelectual e emocionalmente habitado por uma sensibilidade particularmente feminina. Com esses textos que transbordam (uns muito mais do que outros) dessa sensibilidade especial - que de tanto exprimirem com todas as letras e emoções os seus limites e excessos, me fazem reconhecer "a minha mulher" na literatura - mantenho uma relação de total afecto e encantamento. Há também (e todavia) homens, escritores que inscrevem o sentir feminino da mesma forma maravilhosa que as escritoras (quase todos os poetas). Não me refiro, de nenhum modo, à literatura feminista (isto é outro assunto embora se cruze em tantos pontos com este de que falo...). Aliás, em Portugal não se pode falar propriamente em Literatura Feminista (exceptuando as Novas Cartas Portuguesas que tiveram verdadeiro impacto tanto cá como no estrangeiro). O que me interessa, por agora, é deixar algumas chaves de acesso a esse mundo em que se pode descobrir a verdadeira face do feminino, sem disfarces ou imposturas.





De Irene Lisboa, a indagadora obra Voltar Atrás para Quê?







" Ela desatou o pacote de papéis, muito atado, metido numa pasta de cartão, e recomeçou a lê-lo. Já o conhecia. Tinha-o escrito e lido, mas deixara-o adormecer, esquecer quase. Não era uma escritora, não mirava à publicidade. Estava ali um pequeno coração morto, que já não era o seu. Para ela própria se acanhava de o ressuscitar. Tão inútil é viver, reviver um passado longínquo, de raízes secas... Mas por teima e porque andava desasada com a mudança de terra (voltara à cidade, sentia calor, moleza, estranheza), por teima, pura teima, se pôs a relê-lo.
Dois anos, dois anos apenas, ela assim passou, seguidos mas incompletos. Tão longos, tão cheios e tão vazios! Lembrados como nenhuns outros da sua vida.
Lembradas também, ou dentro deles, as rosas-chá e as flores de beladona, os bons-dias e as boas-noites, a Lúcia-lima, a baunilha e as papoilas da índia… que cresciam sem trato num pequeno jardim traseiro da casa e no seu espírito juvenil, sem recheio quase nem obrigações, as suas mais finas particularidades. Para ela, as flores tinham romances, uma vida íntima além de toda a variedade e graça, patentes essas; eram especiais seres idílicos; as flores e também os pássaros, as estrelas… Um dos seus gostos, quando ninguém a via, consistia em se deitar no chão, de olhos para o céu, como se o estivesse bebendo."


Excerto extraído da Contracapa da obra:
“A alma de uma adolescente posta a nu. As alegrias e os sofrimentos, as perplexidades e os deslumbramentos de uma rapariga que se abre para a vida. O mundo secreto um ser- necessariamente, ainda frágil e hesitante – revelado tal qual. Irene Lisboa, com a objectividade, a frieza e a segurança dos grandes mestres, descreve-nos tudo quanto se passa no interior da sua heroína em páginas de uma simplicidade inigualável. E, em páginas pungentes. Mas… quem é a heroína desta espantosa novela? – verdadeira obra-prima da Literatura -, que nos aparece agredida e ferida pelo mundo, pelas pessoas? Indiscutivelmente, a própria autora. Voltar atrás para quê? Tem um sabor único a confissão terrível, que se levou a limites quase insuportáveis e que nos empolga e comove. Voltar Atrás Para Quê? é um grito – que ressoará, para sempre, dentro de quem o ler.”




De Agustina Bessa-Luís ( a criadora do feminino a partir do nada na nossa literatura), A Sibila (noutra obra qualquer se encontra um mundo feminino inigualável):


"Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram vida. Vaidade e magnífico conteúdo espiritual foram os seus pólos; equilibrando-se entre eles, percorreu um extremo e outro da terra, venceu e foi vencida, sem que, porém, as suas aspirações mais inquietantes deixassem de ser, no seu íntimo, as mesmas formas incompletas, chave da transfiguração que os homens eternamente tentam moldar e se legam de mão em mão, como um segredo e como uma dúvida.
Eis Germa, que, embalando-se na velha rocking-chair, pensa e pressente, sabendo-se actual relicário desse terrível, extenuante legado de aspiração humana. Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado, no seu cérebro condensaram-se muitas e muitas experiências que não viveu, as negações e afirmações ocupam vastos espaços da sua alma. Ela move-se ritmicamente baloiçando-se naquela sala onde se recolhem em pilhas as maçãs; todo o ar rescende a maçã que suga da própria pele a frescura e dela dessangra o suco que acrescentará a reserva da polpa viva, ainda por todo o Inverno.
Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila. Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique de facto silenciosa, porque - quem é ela para ser um pouco mais do que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio? Talvez ela fique de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir, porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado e isto é todo o destino, porque... porque...»

(últimos excertos da obra)


De Maria Gabriela LLansol, uma leitura de Um Beijo Dado Mais Tarde (não consegui a capa que queria) ou outro livro qualquer, desde que seja da sua autoria. Transcrevo um texto de "Amigo e Amiga - Curso de Silêncio de 2004" (adquirido de forma desprevenida muito recentemente juntamente com "Uma data em cada mão -Livro de HorasI") para fazer corresponder o excerto à capa que apresento:


" LXX.uma esfinge


Nunca mais desejar que o amor a atormente,atirar com o nome e o pronome cada um para seu lado, jogá-lo para


o meio da matéria das árvores,e declarar que o nome é bebida da terra, como o pronome é jarro devinho sobre a toalha de uma ágape.Era fortíssimo o desejo de repelir os ensinamentos.


Era,
é uma noite de ervas, de corpos nus de sentimentos que se queriam
deitar sobre ervas, fechar-se nelas para a prova dos gostos_______
afinal, sem o amor que perpetua o amor. E que, por vezes, lhe é tão
hostil.


O sonho desejante da mulher era legítimo. A sua realização não
dependia da sua vontade. Mas a sua ___ ou a minha ___, vontade ilumi-
nada não conseguia apagar a luz que entrara em cena _______ luz que
me obrigava a dormir, e a deixar uma decisão definitiva para o dia de
amanhã.


Sendo, afinal, indecidido o destinatário da sua própria carta, veri-
fiquei que o fulgor estava em mim e que, de modo algum,
podia fugir-lhe ou suspendê-lo.
Se o fulgor nõa abolia os fragmentos,
o seu corpo cantante era unidade e unificação,
a força de coesão do Há.


(p.98)



Experimenta-os quando puderes, Anabela, na íntegra e sôfrega. Com tempo, experimente-os, FL, e sinta o pulsar feminino na escrita de todas estas escritoras.

2 comentários:

Leitoras SOS disse...

querida amiguinha

so tu para me dares coisas belas e repletas de sentido! so tu para encheres este vazio que a minha alma sente e que o cinzento dos dias transporta!
Adorei tudo e sorvi sofregamente todos os excertos! Fiquei muito curiosa em relaçao a esta ultima autora talvez porque apreciei imenso os escritos que me leste ao telefone (tao belos e repletpos de sentido). Tambem gostei da Agustina e da Irene... Tentarei le-las pois como te disse achei a Sibila dificil mas comecei tao nova a tentar compreender esta MULHER...
Querida amiguinha, agradeço toda a magia que trazes ao meu dia-a-dia!
Muitos beijos
Anabela

Anónimo disse...

A minha magia, encontro-a nos teus olhos, nessa amizade que trazes nos braços longos como um ramalhete de frésias de fazer inveja. Mil bjs, amiga amiga.

Pat